O
que fazer, uma vez a perfeição atingida? ou Tautologia do
autor


Adeus Dragon Inn de Tsai Ming-liang
O que fazer, uma vez a perfeição
atingida? Alguns cineastas parecem jamais ter se preocupado com a resposta
a isso, e continuam (ou continuaram) fazendo filmes radicalmente diferentes
daqueles que os alçaram à categoria de grandes realizadores
(impossível deixar de pensar, a esse propósito, em Abbas
Kiarostami, Hou Hsiao-hsien ou, mais longinquamente, Roberto Rossellini
e Luis Buñuel, entre muitos outros). A outros, no entanto, o fantasma
da perfeição assombra tanto que alguns realizadores passam
a acreditar que ser artista é produzir sempre obras idênticas
àquelas que os fizeram grandes. Esse é um problema. Some-se
a isso o fato de que o cinema hoje vive uma época em que seus códigos
de realização já estão quase todos gastos:
tanto no cinema clássico-narrativo quanto no dito "cinema
de arte" já sabemos como será todo o filme a partir
de seus primeiros minutos (o acúmulo de filmes e de cansaço
nos festivais só faz com que percebamos isso com mais rapidez).
Mas o pior: o circuito mundial
de festivais acaba fomentando a feitura de um determinado tipo de filme
"de arte", um amálgama entre perfeição
técnica, humanismo regulamentar, confiança na "verdade-por-trás-da-imagem"
(talvez a conseqüência mais reacionária de um certo
bazinismo decaído), psicologozação e uma certa pessoalidade,
também regulamentar. Assim, seja do Tajiquistão ou do Uzbequistão,
da Turquia ou da Grécia (mas também dos EUA, da França...),
nos vêm os mesmos filmes formatados, de código fácil
e assinalável. Cinema seria assim menos uma evolução
das formas no tempo do que uma repetição de conteúdos
"artísticos" trasncendentes que basta serem colocados
à cena (mas não necessariamente "encenados" se
quisermos com essa palavra nos referir à mise-en-scène)
para que se estabeleça um sentido de "grandeza de obra"
propriamente extracinematográfico porque reside antes nas
intenções do diretor do que nas realizações
que vemos na tela.
Com o desgaste dos códigos
do cinema de autor mais genérico (plano-seqüência, tempos
mortos, personagens física ou psicologicamente perturbados, em
todo caso incapazes de interagirem com o mundo tudo que se cristalizou
a partir de A Aventura de Antonioni), o estatuto do que seja um
cinema voltado para a experiência de novas sensibilidades através
de formatos, temas e relações com o mundo esteve em pleno
processo de reconstrução a partir do começo dos anos
90 (descoberta dos cinemas do oriente [Irã e Chinas sobretudo],
primeira geração francesa pós-neon, florescimento
do cinema independente americano como microindústria), como aliás
quase tudo nos anos 90 é uma espécie de uma retomada de
algo que havia sido deixado para trás pela geração
dos 80 (os anos 90 vão tentar buscar um novo acesso à realidade
para poder existir contra o artificialismo e o solipsismo à eighties).
Se os heróis do final dos anos 80 Kieslowski, Woody Allen
vão sendo deixados de lado para dar lugar a outra ordem
de cineastas Kiarostami, Eastwood ou Hou , é menos
por uma melhora ou um decréscimo da qualidade dos filmes de cada
um, mas antes porque estabelecem com o mundo uma relação
diferente, muito menos centrada na persona do autor ou em sua visão
de mundo do que na abertura que esses realizadores operam para nos possibilitar
olhar o mundo de forma diferente. Enquanto os antigos ídolos filmavam
a angústia existencial como forma de mostrar uma negação
ou uma incompreensão à diversidade do mundo, Kiarostami
perseguia os laços entre real e encenado para nos mostrar o quanto
o mundo ainda é estranho e maravilhoso (unheimlich), Eastwood
questionava os mecanismos de ordem e a palavra oficial (a voz do pai é
sempre o tema profundo de seus filmes) e Hou amalgamava tempo e memória
para tentar decifrar a recente história de seu país. Naturalmente,
o cinema não poderia escapar ileso de tudo isso.
Tudo isso para demarcar o momento
em que já se pode falar de "tautologia do autor", o momento
em que o cinema de autor "um" certo cinema de autor,
seria melhor dizer passa a depender da repetição
de temas e formatos independentemente do vigor para funcionar. É
a época da trilogia Azul/Branco/Vermelho de Kieslowski,
assim como a época em que Angelopoulos passa a fazer filmes exclusivamente
para ganhar a Palma de Ouro (foi esse seu discurso ressentido quando ganhou
o Prêmio do Júri na croisette o vice-campeonato
para Um Olhar a Cada Dia). Logo, os irmãos Coen e
Hal Hartley deixarão de fazer diferença dentro do cinema
americano, repisando continuamente e sem muito esmero seus temas e formas
de preferência. O panorama se completa com o nascimento da figura
do cineasta-universal-de-terceiro-mundo, representada por cineastas chineses
como Zhang Yimou ou Chen Kaige, e reforçada pela ascensão
tardia nos anos 90 de nomes como González Iñarritu no México,
Majid Majidi no Irã ou nosso brazuca Walter Salles.
Não só há
tautologia do autor com seu próprio repertório, mas também
tautologia do próprio cinema de autor. Um é preocupante
porque estabelece um nível de assentamento criativo que não
condiz com grandes artistas, outro porque toma-se um acidente uma
determinada cristalização de códigos pela
essência, e faz confundir pretensos artistas com verdadeiros criadores.
Assim, mesmo que em alguma medida façam parte de um mesmo problema,
há que se distinguir entre filmes como Adeus Dragon Inn
de Tsai Ming-liang, Naquele Dia de Raul Ruiz, Dogville de
Lars Von Trier, O Amor Custa Caro dos irmãos Coen ou Pai
e Filho de Aleksandr Sokúrov, que vampirizam a obra pregressa
de seus próprios diretores, de filmes que copiam procedimentos
canonizados de outros diretores ou subgêneros já instituídos,
tais como Distante de Nuri Bilge Ceylan, O Retorno de Andrei
Zvyagintsev, O Desaparecido de Lee Kang-sheng ou Dogma do Amor
de Thomas Vinterberg. A respeito dos últimos, muita coisa já
foi dita aqui em Contracampo nas críticas e nos balanços,
sobretudo por Filipe Furtado e Eduardo Valente. Mas sobre o primeiro time
(no sentido figurado mas também no literal, pois tratam-se de artistas
que se deve acompanhar), ainda resta muita coisa a dizer.
Como saber separar um cineasta
que renova lentamente seu universo de um realizador tautológico?
Ainda: não seria uma operação puramente subjetiva
a sensação de repetição sem vitalidade? Por
que um filme como História de Marie e Julien, que repete
diversos procedimentos já feitos por Rivette, não é
aqui considerado como um filme de autor tautológico, enquanto Adeus
Dragon Inn, que relocaliza espacialmente um tema caro a seu diretor,
faz de Tsai um diretor que se repete? Confesso aqui não saber responder
completamente a essas questões, e tampouco afirmo ser capaz de
dar provas cabais de que minhas posições são as certas
e definitivas. Naturalmente, o trabalho da expectativa e da atenção
com que se acompanha um cineasta exercem uma força profunda; assim
como é diferente julgar um filme de um realizador que já
fez uma vintena de longas-metragens e avaliar o sexto longa de um realizador
de quem já se viu todos os filmes e se acompanha a carreira desde
o quase começo. Ao menos, peço que o argumento seja considerado
à revelia dos exemplos de filmes: mesmo que não se concorde
que tal ou taloutro filme seja uma realização tautológica
de seu diretor (obrigatório fazer isso numa revista em que todos
menos eu consideram Adeus Dragon Inn nada menos do que obra-prima),
que ao menos considere-se independente disso a possibilidade de uma tautologia
do autor ser um problema sério a ser discutido pelos interessados
no cinema contemporâneo.
Tomemos, por exemplo, cineastas
como Pedro Almodóvar, Abbas Kiarostami ou David Lynch, realizadores
a quem os admiradores estão mais do que acostumados. Seus últimos
filmes, Fale Com Ela, Dez e Mulholland Drive, respectivamente,
tornam caduco ou quase qualquer livro escrito sobre esses
realizadores antes da visão deles. E não são realizadores
que se pode considerar como "absolutamente veteranos", uma vez
que se data o início de suas carreiras como longa-metragistas nos
anos 80. E, em todo caso, ainda não se pode falar de um "cinema
de maturidade" (aquele que simplesmente dilapida à perfeição
aquilo que existia como bruto e fulgurante nas obras de juventude) a partir
do cinema de nenhum desses diretores.
Ao contrário, há
diretores que parecem ter esgotado sua complexidade artística nos
primeiros longas. Se tomarmos Lars Von Trier, por exemplo, e excetuarmos
Os Idiotas, tudo aquilo que ele levou à tela desde Ondas
do Destino não passa de uma reelaboração do tema
da graça e o retrato do "mundo cão" adaptados
para gêneros cinematográficos (o musical) ou teatrais (brechtianismo)
que nada ou pouco contribuem para aquilo que está sendo tematizado
como questão central do filme. Ou Tsai Ming-liang: por mais que
gostemos de seus últimos dois filmes, dificilmente um livro escrito
depois de O Buraco mereceria um adendo de mais de uma página.
Pouco importa como julguemos os filmes, Hora da Partida/Que
Horas São Aí? e Adeus Dragon Inn em pouco ampliam
as preocupações e o estilo de seu realizador em comparação
com seus outros filmes. Não se trata de Yasujiro Ozu fazendo seu
30º filme ou de Im Kwon-taek ou de Jean Renoir fazendo sumas de sua
carreira. São diretores que em dez ou quinze anos de carreira já
dão por encerradas suas pesquisas artísticas e consolidam-se
num palácio de cristal que é certamente bonito e bem acabado,
mas despido de uma relação frontal com o material bruto
do mundo. Dogville é uma cuspadela numa miragem, Adeus
Dragon Inn é um bibelô para dias de chuva. "Pra
que tanta notícia?", perguntava o poeta. Poderíamos,
seguindo o bonde, perguntar: "Pra que tanta beleza?"
Para finalizar, devemos mencionar
um tema recorrente em quase todos os realizadores aqui mencionados, e
ele mesmo fundador do cinema moderno tal como o conhecemos: a incomunicabilidade.
Tema central da obra de Antonioni nos anos 60 e atravessada ao longo dos
anos 70 e 80 por realizadores de talento naturalmente desigual, nos últimos
anos a incomunicabilidade vem sendo o lugar-comum mais utilizado pelo
cinema de arte. Da menina que só consegue comunicar-se com seu
amado limpando o quarto dele em Amores Expressos de Wong Kar-wai
até a impossibilidade de gerações diferentes falarem
a mesma língua em encontros fortuitos (Central do Brasil,
A Eternidade e um Dia), passando naturalmente por aqueles que ocupam
o mesmo apartamento mas não se conhecem (Vive l'Amour).
Poderíamos citar diversos outros exemplos, em filmes que realizam
seu intento com maior ou menor talento. Mas é acima de tudo uma
questão de vigor: quando cineastas estreantes (Nuri B. Ceylan e
Lee Kang-sheng) realizam filmes competentes mas que não adicionam
uma vírgula a tudo que já foi feito antes deles no estilo,
e mesmo assim são catapultados à condição
de realizadores de relevo, é preciso se perguntar se a desculpa
da incomunicabilidade não se transformou no clichê mais pernicioso
do cinema dessa nova década, e se o julgamento de filmes não
é hoje majoritariamente uma tarefa de reconhecer conteúdos
e códigos já qualificados como "de arte" ou dignos
(ou seja, uma mera tarefa de recognição) e aplicar nos filmes
um rótulo de qualidade coextensivo mais a temas do que a tematizações
(porque em toda tematização há o trabalho da encenação,
que é o oposto do trabalho da intenção, esta de que
o inferno está cheio).
A solidão contemporânea,
a dificuldade de comunicação, a separação
entre iguais, a dificuldade que é uma subjetividade encontrar seu
papel no mundo com outras subjetividades, OK, já entendemos. Desde
Antonioni. Mas o cinema precisa ir além disso.
Ruy Gardnier
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