Relato de um cinéfilo após duas semanas perdido num museu



Pai e Filho de Aleksandr Sokúrov

Vendo Dogma do Amor tive a confirmação de algo que eu já desconfiava já há um bom tempo: que o tal Vintenberg tinha me tapeado com Festa de Familia. Exercício saudável este para o critico (ou qualquer outro cinéfilo): perceber que foi tapeado. Uma das coisas que, com o tempo, o "mostrófilo" mais escolado aprende é que uma parte considerável dos filmes da Mostra não passam, no fundo, de pura perfumaria. Filmes pensados para nos tapear, que têm pouco (ou nada) a dizer, mas fazem o que podem para nos convencer do contrário. A lista na Mostra deste ano é enorme, e um relato sobre eles me parece válido.

Uma ligação entre todos estes filmes é um esforço em se associar a alguma idéia de formalismo, formalismo este que é só um nome não-pejorativo para o academicismo que está no cerne de todos eles. O público de festivais, como todo público de cinema, tem seus favoritos. Geralmente ele é um tanto esnobe para assumir isso, mas da mesma forma que há quem adore ir ao cinema para ver longas perseguições de carros ou humor pastelão, nós também corremos o risco de pedir apenas mais do mesmo, e muita gente está mais do que disposta em entregar isso. Não me excluo nem um pouco aqui. Confesso: tenho queda por filmes orientais em geral, pelo tipo de enquadramento, pelos planos contemplativos. Assim como tenho enorme tolerância para aquele tipo de filme francês onde as pessoas falam sem parar, que causa horror em alguns amigos.

Pensando dentro destas tendências para agradar os públicos da mostra (eles são vários e com gostos por vezes completamente opostos), devo confessar que em algum momento da segunda semana quase abri guerra aos planos-seqüências (o mais canhestro de todos se encontra em O Desaparecido de Lee Kang-sheng, numa cena onde um espelho bem posicionado garante que vejamos primeiro um personagem se aproximando e depois ele se afastando). É impressionante. Existe um forte sentimento, em alguns círculos, contra filmes de montagem rápida (parte dele bem justificado, diga-se), e isto parece gerar um desejo pelo tal plano-seqüência que me parece igualmente não justificável. Muitas vezes a montagem rápida degenera em algo publicitário, é verdade, mas planos-seqüências esticados só por serem esticados não deixam de gerar um outro tipo de imagem fetichista desassociada de qualquer tipo de conceito. Pode-se sentir superior por gostar dela, mas não é no fundo muito diferente. Pensar o tempo do plano é algo mais complexo do que esta mera oposição, algo que vai dos planos de alguns poucos quadros de Tsui Hark até os longos planos de um João César Monteiro.

O fetiche do plano-seqüência, é bom que se diga, é apenas uma das muitas modalidades das tapeações dos festivais. Um velho favorito, ao menos desde os sub-neorealistas, o dito filme humanista, esteve como sempre presente para afagar um pouco da culpa da classe média freqüentadora da Mostra. Destaque aqui para Neste Mundo, do Michael Winterbottom que conseguiu nos apresentar um filme ainda mais pavoroso do que A Festa Nunca Termina, do ano passado. O estratagema de Winterbottom é sempre o mesmo: parte-se de um ponto de partida com potencial (uma situação humanitária, um movimento musical, uma adaptação literária, no fundo não importa) e constrói-se a partir dele um exercício formal onde o cineasta se põe a provar o quanto ele sabe filmar e vai espertamente construindo suas seqüências. Se ele tem algum domínio de linguagem para construí-las individualmente, inevitavelmente o todo do filme soa frágil e insosso. Vale dizer que, a julgar por este filme e o anterior, o que poderia haver de interesse no seu cinema morreu, já que Winterbottom vem se revelando cada vez mais insuportável e desesperado nos seus truques. Há algo que resume o filme: ele é rodado em digital com câmera na mão para dar um ar documental (ah, que novidade...), mas ao mesmo tempo em Cinemascope porque em 1:2:35 o filme fica mais vistoso!

O filme novo de Michael Haneke indica outro dos caminhos mais habituais que nos deparamos na Mostra: o do "cinema de autor-piloto automático", que confunde a consistência da obra com mera repetição. Haneke repete o seu velho discurso sobre o nosso mundo cão sem nenhuma grande novidade. Até ai tudo bem, mas não há nenhum esforço em tentar desenvolver mais o que seus filmes anteriores tocavam. Não há sequer esforço de tentar manipular o espectador rumo ao mal estar de sempre. O filme é frouxo e sem energia. Haneke repete algumas situações, parte para alguns truques fáceis (matar um animal, usar créditos sem trilha sonora), em busca de uma gravidade que, ele sabe, não virá. No fundo, ele parece nem estar tentando. Não tem idéia nenhuma, mas como estava na hora de fazer outro filme e sabe que há fãs ávidos por recebê-lo, regurgita algumas idéias e as serve de qualquer jeito.

Mas o pior mesmo, fica reservado para os dois exemplares do cinema russo (que um dia já foi tão vital), exercícios em tapeação dos piores. O Retorno é possivelmente o filme mais ordinário da Mostra, no sentido de que se não tivesse ganhado Veneza não chamaria a atenção de forma alguma. Estão ali todos os elementos de um bom filme de festival que o diretor conseguiu encontrar. A fórmula é seguida sem tesão nenhum. Há bons filmes de ação onde, na cena inicial, sabemos com precisão todos os eventos que estão por vir, mas estes ainda nos são apresentados de forma interessante. O Retorno seria um daqueles onde não só se sabe tudo que vai acontecer como vemos este tudo ser confirmado da forma mais óbvia e preguiçosa possível. Acumulam-se os joguinhos psicológicos do roteiro, os planos compostos com bom gosto, o ar de que se está dizendo algo importante sobre aquelas personagens, as belas imagens, uma fumaça que nunca se torna coisa nenhuma. O júri de Veneza, e a maior parte da imprensa, comprou satisfeita.

Se há em O Retorno a aposta nas belas imagens que supostamente nos devem seduzir e imagens inócuas desprovidas de qualquer razão além de um esteticismo meio bobo, um certo ideal de beleza, Pai e Filho é só isso. A relação pai/filho será no máximo um reflexo desta busca por uma imagem ideal (no que esta idéia tem de pior). Aliás, os atores que interpretam os papeis centrais são escolhidos pelo físico puro, e filmados da forma mais erótica possível. Muito se fez na mídia do conteúdo homoerótico de certas cenas (que existe), mas isto acabou por desviar a atenção do quanto esta opção é reveladora do lado realmente torpe do filme. Sokurov é o mais decadentista dos cineastas, nenhuma novidade nisso (Arca Russa, afinal, só negava todo o séc. XX), mas aqui mais do que nunca ele parece buscar um ideal de arte que é francamente grotesco. Ao longo de Pai e Filho não conseguia deixar de pensar na arte incentivada da Alemanha nazista: Sokurov ia se sentir bem à vontade lá. Todo este ideal de beleza, todo vulto daqueles corpos perfeitos, todo a pictorialidade fácil das imagens que o filme contém apontam para isso. Da minha parte, toda esta beleza me deixou desesperado por um pouco de sujeira, de planos nem tão bem enquadrados, de uma iluminação menos artística, etc. Enfim, de algo que por mais imperfeito que seja, talvez ainda esteja vivo para além do museu.

Filipe Furtado