Vai, e dá-lhes trabalho!



As Bodas de Deus de João César Monteiro

A frase que dá título a este texto é dita para João de Deus (o alterego de João César Monteiro em boa parte de seus últimos filmes) próximo ao final de sua primeira aparição, em Recordações da Casa Amarela. Pode servir de epígrafe para toda a obra de Monteiro (desde Veredas, o filme mais antigo a qual tivemos acesso), mas ela se intensifica nestes filmes finais, onde Monteiro coloca a si próprio no centro do filme.

A frase serve como uma carta de intenções que o cineasta reconfirmará depois em A Comédia de Deus, As Bodas de Deus e no derradeiro Vai e Vem (onde João de Deus vira João Vuvu). São filmes de confronto, onde não se deixará nenhuma figura de autoridade passar sem ser devidamente atacada. À primeira vista as provocações de Monteiro podem até aparentar um elemento de simplismo, mas estão bem longe disso. Até porque elas nunca deixam de estar mirados no espectador e na relação dele com o que está sendo mostrado/atacado. Nem sempre é fácil simplesmente rir dos deboches de Monteiro para com as hipocrisias da Igreja Católica, por exemplo, porque ele acaba dando um jeito de nos implicar no processo. O humor ácido de Monteiro, nunca nos deixa impunes.

Há um gosto particular pelo ataque às figuras de poder, especialmente no que elas têm de mais hipócrita e mesquinho (a dona da pensão em Recordações da Casa Amarela pode ser vista como o exemplo mais claro disso). João de Deus será sempre aquele que está ali para, de alguma forma, desancá-los (assim como a todos os medíocres), mesmo que não possa de fato vencê-los. É um esforço que o cineasta vê como necessário, mesmo que de alcance mínimo. Não é a toa que João acabe parando ou no hospício ou na cadeia ou no hospital em todos estes filmes. Tudo bem, nos diz ele, é o preço a se pagar por ser um homem livre. E haverá de se resistir sempre: talvez a cena mais forte desta série de filmes seja aquela em que. confrontado com um homem enfurecido com ele, João acende um cigarro, o homem lhe retira o mesmo da boca, ele leva um outro à boca, o homem derruba, ele leva outro à boca e ação se repete enquanto João tem cigarros.

Este confronto, como já se disse, também se trava dentro da sala de cinema. Há, em todos os filmes de Monteiro, um ataque sempre direto à ditadura do "gosto médio", que parece dominar atualmente o chamado circuito de arte e dos festivais, onde mais comumente circulam os filmes do diretor. O ataque de Monteiro a este gosto se dá de duas formas principais, uma mais sutil, outra mais direta. A primeira (talvez o movimento mais surpreendente de seus trabalhos) se dá pela mistura constante, em seus filmes, das manifestações mais "grosseiras" da arte popular com a cultura mais erudita. Para Monteiro, a compreensão que faz de seu Portugal passa necessariamente pela mistura de todas estas influências, e o que é mais importante, com o mesmo peso. Assim é que as pérolas de duplo sentido das canções de Quim Barreiros (um Genival Lacerda português, poderia-se dizer, autor por exemplo do verso "Deixa eu cheirar teu bacalhau, Maria") se misturam num mesmo filme com a encenação de uma peça altamente conceitual de Strindberg (no caso, o filme é A Bacia de John Wayne). A mistura de fontes se iguala a uma mistura de registros, pela qual vamos do texto lido pelos atores diretamente do papel (lembrando muito o trabalho de Straub/Huillet) até uma abordagem quase documental dos passeios dos personagens por ruas e botequins de Lisboa.

O mesmo clima documental que cerca os longos passeios dos personagens principais de O último mergulho, que perambulam pelos espaços da noite lisboeta (com direito a ponta de Monteiro mijando em cena), e que acabam numa encenação do balé de Salomé. Ali, a prostituta da vida real se mistura com a figura mítica, e representa a salvação do personagem suicida, sua ligação à vida, que chega pela mistura do que vem das ruas com o mitológico. Mas, talvez seu filme que deixa mais claro esta compreensão de Monteiro do mundo a partir das fontes mais diversas seja realmente Veredas, de fato um grande ensaio sobre um Portugal mítico e imaginário. Nele, Monteiro mistura figuras populares dos rincões portugueses contando os seus "causos", dançando as suas danças típicas (num dos planos mais belos de sua carreira) à encenação de mitos ao som da música medieval, numa episódica narrativa onde paisagens e animais têm o mesmo peso que pessoas e suas falas, e de onde se retira, acima de tudo, a total descrença nas figuras de autoridade, de poder. Monteiro deixa claro, mais uma vez (como se ainda precisasse) que a História do mundo (encarnada na História de Portugal) é uma de abusos constantes sobre os mais fracos.

O segundo ataque de Monteiro ao gosto médio vem pela exposição constante das compulsões de Monteiro, seus gostos irrefreáveis, seus desejos que precisam ser consumados, todos eles devidamente celebrados nos filmes. A franqueza destes filmes em relação ao desejo parece estar sempre pronta para provocar/desarmar o espectador pela exposição que ela abre. Em Recordações da Casa Amarela, João de Deus passa o filme todo a perseguir a bela filha da dona da pensão; já em A Comédia de Deus, ele é um pedófilo colecionador de pelos pubianos. Monteiro não se roga de tirar uso do próprio corpo (magro quase raquítico, ele próprio de certa forma um elemento de agressão) nestes momentos, para criar um desconforto. João de Deus estará sempre acompanhado de belas mulheres apesar da sua estranha figura, mas isto nunca soa a mero luxo do diretor, já que ele também surge como uma figura sempre atraente sedutora pela forma que se articula.

Há um elemento bastante oral nestes filmes de Monteiro (bem menos presente nos anteriores), sempre recheados de frases marcantes. A figura de João de Deus pede por essa oralidade, por esta necessidade de formular um discurso (que, é bom que se diga, também é sempre visual). Dela também surge um gosto pela ritualidade, pela encenação. João de Deus é um solitário, mas raramente está sozinho numa seqüência, precisa sempre estar agindo sobre um outro. De nada vale se vestir a caráter como militar (novamente Recordações da Casa Amarela) se não entrar num quartel depois. Há uma marcada preferência por planos longos e por atuações pouco naturalistas, uma recusa pelo close ou pela fotografia bonita. Nem seus fãs podem ser poupados, todos os filmes parecem estruturados de forma que a certa altura darem travadas, como se a nos puxar o tapete, nos impedir a ficar acomodados diante das imagens (o que seria o horror final nos filmes de Monteiro). Afinal como o plano final de Vai e Vem nos lembra, ele está sempre lá olhando para nós.

Eduardo Valente e Filipe Furtado