Gremlins / Gremlins 2,
de Joe Dante
Gremlins, EUA, 1984 / Gremlins 2 The New Batch, EUA,
1990
Lembro-me
bem da sessão em que, aos doze ou treze anos de idade, assisti
pela primeira vez a Gremlins 2, a obra máxima de Joe Dante:
filas imensas na entrada do saudoso Cine Brasil, em Belo Horizonte
então um dos maiores palácios (chamar aquilo de sala seria
um crime) de cinema da América Latina , crianças e
adultos acotovelando-se nos corredores, sacos de pipoca e doces espalhados
pelo chão, espera de vinte minutos para arrumar um lugar para se
sentar. Começada a sessão, uma enxurrada de gritos, risadas
altas e histéricas, agitação e euforia; quem quer
que seja o responsável pelo termo "interatividade" deve
ter presenciado aquela sessão de cinema.
Quem
assistiu ao filme no cinema (a versão em video é diferente)
deve lembrar-se bem de um truque de Dante: em determinado momento, a película
derrete alguns gremlins invadiram a cabine de projeção.
Este pequeno tributo a um mestre (William Castle, eternizado na figura
de Lawrence Woolsey [John Goodman] em Matinee) permitiu a toda
uma geração (suponho ter o direito de falar em nome de um
geração falo pelo menos em nome dos companheiros
que presenciaram aquela sessão) experimentar pela última
vez o cinema como uma experiência adolescente e anárquica,
quase um episódio de histeria coletiva. Pois acontece que nesta
sessão alguns gremlins de verdade invadiram o cinema: lá
pelas tantas, do segundo andar do Cine Brasil começaram a voar
algumas galinhas vivas; ao vislumbre daquelas figuras silhuetadas contra
o telão, a platéia veio abaixo.
Nunca
soube dizer (e nunca procurei saber) se tratava-se de mais algum truque
dos administradores da sala (ou de Dante, vai saber!) ou, o que é
muito mais provável, de alguma estrepolia adolescente. Fato é
que, não sei por que razão, sempre que penso no trabalho
de um crítico de cinema lembro de duas coisas: primeiro, da célebre
tirada de Bazin (verdades carregadas em bandejas de prata, etc.) e, depois,
nas pessoas que atiraram aquelas galinhas (um gesto que me pareceu tão
grotesco na época quanto me parece agora extremamente sofisticado).
Em
se tratando dos gremlins e de Joe Dante, não consigo pensar numa
manifestação crítica mais inteligente que o arremesso
das galinhas: estes dois filmes, os maiores sucessos comerciais de sua
carreira, são também os filmes em que ele conseguiu conjugar
com perfeição as principais propostas de seu cinema
uma atitude adolescente, enérgica e anárquica; a subversão
do imaginário norte-americano em forma de fábula infanto-juvenil;
e um fino senso de observação e crítica social.
O
primeiro Gremlins, lançado em 1984, foi rapidamente alçado
à condição de clássico. Reunião de
um grupo de talentos (o roteirista Chris Columbus, o fotógrafo
John Hora, o designer Chris Wallas, o compositor Jerry Goldsmith, entre
outros) sob a égide do "Steven Spielberg apresenta"
epígrafe que então significava a formação
de um verdadeiro clã originário da escola do filme B, cujos
membros estavam acostumados a orçamentos apertados e temática
fantástica , Gremlins partia do princípio mais
caro às ficções paranóicas dos anos 50 e 60
(inscrever a ameaça no contexto mais banal a referência
aqui é o Vampiros de Almas de Siegel) para atualizá-lo
numa forma consciente e crítica.
Disfarçado como uma parábola de natal irônica, com
direito a versão dantiana do velho Scrooge, o filme introduzia
no cotidiano de uma típica cidadezinha americana (uma tal Kingston
Falls, construída nos moldes de A Felicidade Não se Compra,
de Frank Capra, mas nada inocente abrigo para neuróticos
de guerra, yuppies em potencial, viúvas gananciosas e pobreza galopante)
pequenos e terríveis seres que se dedicavam a desnudar todo o horror
intrínseco aos típicos valores que definem a base das relações
sociais do local. Numa sociedade fundada sob o preceito do bem-estar coletivo
e do consumo generalizado, os gremlins surgiam para demonstrar sem muito
esforço subvertendo à sua maneira (genial) toda a
cultura suburbana do American Way alimentada pelo consumo, pelos
eletrodomésticos, pelo álcool e neuroses mil suas
falsas premissas e uma estrutura essencialmente corrompida.
Assustador e sombrio demais para o público infantil, assumindo
sua origem no horror (de onde vinha Joe Dante), Gremlins seria
a aposta mais radical do diretor no território do absurdo, não
tivesse ele mesmo se superado na continuação. Gremlins
2 não se resume apenas a uma boa premissa a transposição
da história original para um grande centro urbano (Nova York),
o exato oposto do espírito comunitário da cidade pequena
, mas potencializa o conceito do primeiro filme numa série
de inversões programáticas. Gremlins 2 é menos
uma típica continuação que um complemento e uma leitura
irônica do primeiro Gremlins.
Destarte
somos apresentados aos vilões, uma versão piorada da nefasta
viúva Deagle: um certo empreendedor milionário que responde
pelo nome de Daniel Clamp (trocadilho óbvio com Donald Trump) e
seus representantes, dedicados a impor sua versão tecnicista e
funcional da humanidade. O logotipo das organizações Clamp
é uma enorme letra "C" que, na tentativa de devorar todo
o mundo, distorce o planeta.
É
óbvio que os gremlins surgirão novamente para fazer estragos.
Tal como os zumbis de George Romero de Dawn of the Dead faziam
em relação ao shopping center, os gremlins de Dante surgem
para subverter toda a lógica que rege o espaço do centro
de negócios (visto como uma aberração ainda mais
grotesca que os próprios monstrinhos). Gremlins 2 é
um filme excessivo, daqueles que não perdem um segundo sequer de
sua duração sem emendar mais uma piada.
Para
compreender o cinema de Joe Dante, é preciso levar em conta sua
premissa ("tornar o ilógico lógico", diz o adorável
inventor abilolado do primeiro filme) e invertê-la. Talvez seja
impossível hoje arremessar galinhas na tela mas Dante permanece
um incansável provocador, alguém que estimula reações
fortes de seu público. Uma arte que ele domina como poucos e da
qual os Gremlins são um patrimônio inesgotável.
Fernando
Verissimo
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