Fantasmas de Taiwan



Dragon Inn de King Hu

Num ano em que Hou Hsiao-hsien está novamente filmando no Japão, Edward Yang prossegue em mais um de seus longos silêncios entre um trabalho e outro, Lin Cheng-sheng faz um bom filme, e Tsai Ming-liang volta a realizar uma obra-prima – além da presença de filmes de cineastas menos consagrados –, torna-se cabível o mapeamento de uma ou outra diretriz assumida pelo cinema de Taiwan contemporâneo. Os nomes acima estão todos diretamente ligados a um momento desencadeado pelo que hoje se conhece como a Nouvelle Vague taiwanesa, que, ancorada num movimento literário de inspiração regional e de crítica social (o Shantu Wenshi), transpôs para o cinema as experiências específicas de quem vive(u) a modernização descompassada de Taiwan. O "milagre econômico" do país, fomentado por dinheiro norte-americano, foi do tipo que pula etapas, indo direto para os modos de produção pós-modernos e gerando quadros de alto contraste, notadamente entre a vida campesina e a da grande Taipei – não são nada raros os filmes taiwaneses que abordam a oposição entre a vida arcaica do campo e a "modernização dos sentidos" proposta pela metrópole (do que Hou foi um dos primeiros cineastas a capturar a essência, desde Poeira no Vento, de 1987, até o arrebatador Adeus ao Sul, já em 1996). O marco inicial da Nouvelle Vague taiwanesa – cuja gênese envolve o interesse do CMPC (Central Motion Picture Company, órgão estatal de financiamento criado em 1954 pelo Kuomintang para a produção de filmes de propaganda anti-comunista) em pôr em contato os jovens escritores do Shantu Wenshi com novos cineastas em formação – é That Day, On the Beach, de 1984, um filme de Edward Yang. Mas já em meados dos anos 90, a despeito da ótima repercussão internacional de filmes importantes como O Rio, de Tsai Ming-liang, o CMPC rompe a lua de mel que mantinha com o cinema desde o início dos anos 80 e resolve concentrar seus esforços na produção televisiva1.

Não bastasse a estagnação produtiva decorrente da dificuldade econômica encontrada pelos cineastas – assomada à relativa falta de interesse do público local –, é flagrante o modo como sobre as cabeças dos jovens realizadores da Taiwan de hoje pairam as sombras (num sentido menos construtivo que inibidor) dos principais nomes da Nouvelle Vague. A partir dos filmes taiwaneses que chegaram ao Festival do Rio e à Mostra de São Paulo, é possível diagnosticar tendências e estilos que, se não podem comprovar um semi-esvaziamento de formas e idéias (o que seria um tanto arbitrário afirmar, dado o recorte assumidamente limitado), no mínimo indiciam que as principais influências parecem ter criado uma fórmula (de preservação do plano-seqüência, de narrativa minimalista, de conteúdos relacionados a uma meia-dúzia de universos temáticos como a máfia, o mercado informal, a questão da emigração etc) que antes suscita um sabor de prato requentado do que estabelece um feliz tecido de contigüidade (plástica, conceitual) entre as obras. Filmes como Bons Tempos (The Best of Times, de Chang Tso-chi) e O Desaparecido (The Missing, de Lee Kang-sheng) partem de modelos reconhecíveis de imediato (a saber, Hou Hsiao-hsien e Tsai Ming-liang, respectivamente). E não poderia ser diferente, pois na direção de tais filmes se acham: de um lado alguém que já trabalhou como assistente de Hou, e do outro o ator de todos os filmes de Tsai. Mas eles não conseguem, e isso está nos filmes em maior ou menor grau, desvencilhar-se do que essa matriz pode ter de nociva quando retrabalhada sem a mesma força criativa que a originou, e acabam soando muitas vezes como simples reverberações de uma onda pregressa, que já não chega ao espectador com a mesma potência, com o mesmo impacto sobre os sentidos que, por exemplo, causava Adeus ao Sul.

Assumindo a realidade de ter se tornado uma referência obrigatória para os cineastas que vieram depois de sua geração, Hou Hsiao-hsien renunciou a um projeto próprio em 2002 para se dedicar à fomentação da produção cinematográfica em Taiwan. Montou um site de divulgação na internet (SinoMovie), deu aulas em cursos para jovens diretores, idealizou um festival anual para encorajar novos projetos, em suma, tornou-se mais que referência: agora é também símbolo de uma luta para tirar o cinema taiwanês de sua estagnação. O próprio Hou, que desde Good Men, Good Women (1995) só filma financiado por produtoras japonesas, encontra-se agora em Tóquio fazendo um filme que celebrará o centenário daquele que o inspirou, como ele mesmo disse, mais espiritualmente que tecnicamente, ou seja, o grande mestre Yasujiro Ozu (o filme terá sua première dia 12 de dezembro próximo, data em que Ozu completaria 100 anos). Tsai Ming-liang, por sua vez, também conta com o financiamento de produtoras/distribuidoras estrangeiras: mesmo para diretores já consagrados, a realidade de fazer cinema em Taiwan não é fácil.

Foi justamente em termos de discutir e sugerir possíveis rumos para o cinema do leste asiático que Hou escreveu um artigo, publicado no primeiro número da revista eletrônica Rouge2, onde defende a necessidade da criação de um mercado cinematográfico comum entre Japão, Hong Kong, Taiwan, Tailândia e Coréia ("Asian-Pacific film industry"). Suas premissas são absolutamente pragmáticas; seu intuito é estabelecer planos de ação para a construção de um modelo produtivo sólido. Se nos anos 90 formou-se uma espécie de mercado de "world cinema", certamente os principais protagonistas desse mercado foram os filmes vindos de Hong Kong, Taiwan e arredores. E Hou vê na criação de um mercado comum justamente a possibilidade de impedir que esse cinema se torne mero produto de exportação para o Ocidente ou que se atenha a um público restrito e se esgote em repetições que visam ao retorno financeiro rápido (como ele afirma acontecer no cinema de ação de Hong Kong). Hou teme, no fim das contas, a própria desaparição do cinema de Taiwan.

E a desaparição (num sentido o mais amplo possível), a bem da verdade, não é só um medo relativo ao futuro próximo, mas antes um dos principais temas do cinema taiwanês, se não o principal. Segundo a frase do grupo de vídeo Zuni Icosahedron que Reynaud usou como epígrafe da introdução de seu livro, "Somente aquilo que está a ponto de desaparecer se torna uma imagem". Tal frase se insere na idéia central dos filmes que representaram Taiwan nos festivais daqui: Adeus, Dragon Inn, A Passarela Se Foi, O Desaparecido, Bons Tempos, Drifters – À Deriva (produção taiwanesa, ainda que dirigida pelo chinês Wang Xiaoshuai). Os dois filmes de Tsai e o de Lee Kang-sheng trazem isso já no próprio título, enquanto os de Chang Tso-chi e Wang Xiaoshuai são menos diretos (embora The Best of Times e Drifters sejam títulos que trazem também uma ausência – implícita –, quer como nostalgia, quer como afirmação da falta de rumo).

São filmes sobre o que está a ponto de desaparecer, ou mesmo sobre o que já desapareceu: o tradicional cinema de rua que é fechado "temporariamente", a retirada de uma passarela sobre movimentada avenida de Taipei, o menino que sumiu num parque de diversões, os jovens que vivem seus últimos dias antes da perseguição implacável dos mafiosos, o casal que buscará a imigração clandestina e desaparecerá dos mapas chineses. No espaço criado entre os pólos de aparição e desaparição, dançam figuras fantasmáticas que visitam há muito tempo o cinema taiwanês. Em Taipei Story (1995), por exemplo, Edward Yang fala não só de uma cidade, mas também dos seus "fantasmas de evasão" (Reynaud). E de onde vêm esses fantasmas? Da sombra pesada que o passado projeta sobre a cidade, do desejo que ronda os habitantes de ir para outro lugar (América, Japão), da história confusa que o país possui (terra de exilados, terra de desapropriados, terra de investimentos estrangeiros), da superstição do povo. E, para os cineastas mais novos, acrescenta-se a sombra projetada pela própria história recente do cinema de Taiwan. Os cinemas de Hou, Tsai, Lin e Yang deixaram mais que uma tradição: criaram uma estética, e até uma iconografia, de que os filmes recentes fazem uso seja como muleta (assegurar a inserção num cinema reconhecidamente "de qualidade"?), seja como reflexo de uma impotência criativa. Não é algo similar ao filão-Dogma, que muito cedo deixou de ser somente dinamarquês para se tornar internacional e que, ao teoricamente fugir dos padrões, criou um dos paradigmas do cinema contemporâneo (o filme realista de temas "fortes" e que chama atenção para seus baixos recursos): qualquer filme que cumpra as regras do Dogma pode receber o carimbo aprovador e se filiar esteticamente ao movimento. A Nouvelle Vague taiwanesa, diferentemente, com suas recorrências temáticas e seus principais autores, não gerou propriamente uma grife, mas sim consolidou estilos que são tomados como aquilo de que não se pode fugir a não ser sob o riso de fracassar – em outras palavras, uma assombração.

Em Drifters, filme que traz de volta a tônica da imigração clandestina e do rumo incerto (seu protagonista é um ex-imigrante ilegal que voltou dos EUA e encontra dificuldades de adaptação à rotina) e cujo próprio título evoca o primeiro longa-metragem de Lin Cheng-sheng (A Drifting Life, de 1995), ressurgem algumas das imagens-símbolo do cinema taiwanês: um jovem casal andando de moto, uma família reunida à mesa de refeição num plano longo e estático. Embora Wang Xiaoshuai trabalhe também elementos fora desse contexto específico (um pouco da "ingenuidade" que marca os últimos filmes de Zhang Yimou, um pouco de um sentimentalismo à la Kitano), sua principal influência não é negada: até o recurso das notícias de rádio que contextualizam o filme historicamente e se entranham na narrativa é decalcado de um filme de Hou, A City of Sadness, de 1989 – devemos lembrar também do filme de um outro chinês (Prazeres Desconhecidos, de Jia Zhang-ke) que explora a onipresença da televisão com fins parecidos. A tal iconografia não envolve somente as perambulações de moto ou alguns tipos de composição de imagem, mas parece ainda incluir todo uma série de objetos-fetiche, como os aquários dos filmes de Tsai (presentes em Bons Tempos e O Desaparecido), as feridas no corpo (a cabeça enfaixada do protagonista de Drifters imediatamente remete a Lee Kang-sheng com uma imobilização no pescoço em O Rio), as excreções como expurgação de mazelas sociais ou mesmo existenciais (o vômito está para Bons Tempos assim como a urina está para os filmes de Tsai), os telefones celulares e os jogos eletrônicos etc. Há um painel de signos formado pelo cinema de Taiwan, signos que já são de leitura quase imediata.

Nesse sentido, é curioso reconhecer que o filme de um diretor novo que demonstra maior autonomia – ainda que a influência de Tsai seja óbvia (em um ou outro plano isolado, mais que óbvia) – é O Desaparecido. Estréia de Lee Kang-sheng como diretor, o filme não se cola aos princípios formais do mestre Tsai, ao contrário do que se poderia depreender antecipadamente. É antes a assimilação automática do desencontro como condição existencial a priori nas grandes cidades e do contra-espaço como refugo coletivo (a loja de videogames ligados em rede, no caso de O Desaparecido) o que nos faz lembrar que ao lado de Lee está Tsai Ming-liang. Lee fez um filme de pouca pulsação para um estreante, mas é inegável a existência de seu modo próprio de composição. E é igualmente curioso o fato de Adeus, Dragon Inn (irmão gêmeo de O Desaparecido, porquanto se tratava de um único filme que se dividiu em dois) ser o filme que, a um só tempo, mais confirma e mais modifica o universo de seu autor.

Tsai realizou um filme de auto-imersão. Se no curta A Passarela se Foi ele já demonstrava seu conteúdo de base (a perambulação, os ritmos corporais, o encontro fortuito, a lógica de constante mudança na grande cidade, o espaço aberto contrastando/acentuando o retraimento do indivíduo, a solidão) em sinergismo com uma nova atitude expressiva (o escapismo do plano final das nuvens – primeiro plano de paisagem "pura" filmado por Tsai! – com música não-diegética tocando), Adeus, Dragon Inn incide ainda mais fundo num trabalho de depuração de formas (sentido bastante claro na carreira de Tsai). O filme não mostra personagens guiados por opções de sub-lazer (as termas de O Rio, o fliperama de Rebels of the Neon God, o apartamento vazio que é palco de prazeres fugazes em Vive L’amour), pois o local que os une desta vez é o do entretenimento mais trivial possível, ou seja, o cinema. Mas é o espaço abandonado de um antigo cinema de rua, um porão do mundo que guarda imagens antigas e é sede de relações passageiras ou incompletas (como a da bilheteira com o projecionista). No fim das contas, o cinema onde se desenrola Adeus, Dragon Inn é o mais característico contra-espaço de todas as locações já trabalhadas pelo diretor (pelo abandono refletido nas condições materiais, pela indeterminação de vida dos seus freqüentadores, pelo deslocamento no tempo provocado pelo filme projetado). O filme "em cartaz" é Dragon Inn Gate, de King Hu, feito no final dos anos 60, quando o governo taiwanês oferecia vantagens significativas para os cineastas de Hong Kong. King Hu se beneficiou de tais vantagens para filmar também em Taiwan A Touch of Zen (1971) e um dos episódios de Four Moods (1970), e ainda retornou no começo da década de 80 e realizou mais três filmes (dentre eles All the King’s Men, de 1983). Um dos atores de Dragon Inn Gate é Miao Tien, que fez o pai de Lee Kang-sheng em Rebels of the Neon God, O Rio e What Time is it There?, e que em Adeus, Dragon Inn assiste à sua própria atuação acompanhado do netinho (elemento autobiográfico de Tsai, que aprendeu a gostar de cinema com o avô).

Toda a mise en scène típica de Tsai Ming-liang reaparece aperfeiçoada: as extraordinárias entradas e saídas de quadro; as aproximações ambíguas entre os personagens (como na cena do japonês tentando chegar perto de um homem que acaba de conhecer e que fuma elegantemente, com pose de galã de cinema – ali, semelhantemente à postura de Lee Kang-sheng em relação a Chen Chao-rong em Vive l’Amour, o japonês não sabe se quer ser aquele homem desconhecido, projetar-se na sua figura voluptuosa, ou se quer apenas buscar um contato físico com ele); o estudo de ritmos e deslocamentos corporais mais evidente que nunca; os planos fixos de enquadramento cuidadoso (aliás, uma vez que Tsai até aqui se notabilizou pela câmera baixa à la Ozu, é surpreendente a quantidade de plongés neste filme) e variação de foco tão sutil que carrega o olhar do espectador do primeiro plano para a parte mais profunda do campo com total leveza. Seus simbolismos mais recorrentes também não faltam, a exemplo das inúmeras goteiras e das intermináveis idas ao banheiro para "eliminar água".

Adeus, Dragon Inn radicaliza o processo de desmaterialização iniciado com Hora da Partida/Que Horas São Aí? (cujo plano final é o "fantasma" do falecido pai do personagem de Lee caminhando rumo a um parque de diversões): o filme se evola com a mesma sinuosidade da fumaça de cigarro que a bilheteira observa num plano longuíssimo. E o cinema, afinal de contas, não é mesmo a arte da efemeridade? Não é mesmo uma atividade regida pela fantasmagoria?

Em Adeus, Dragon Inn há um sentimento nostálgico, mas não apocalíptico. Não é o ressurgimento do sintoma que nos anos 80 ameaçava apontar o cinema como doente terminal (dois filmes, um do início e outro do final daquela década, traduzem bem a idéia em questão: O Estado das Coisas, de Wenders, e Cinema Paradiso, de Tornattore). Antes de ser um filme sobre a morte do cinema, Adeus, Dragon Inn é um filme de celebração da sua existência.

Para um cinema que vive atormentado tanto pelas marcas deixadas por seus tempos áureos quanto pelo preocupante prognóstico relativo ao futuro próximo, o "estar a ponto de desaparecer" extrapola o domínio da visibilidade: sua aparição como imagem está na dialética que move a própria história desse cinema. As impressões transmitidas pelos filmes naturalmente não se prestam a uma conclusão sobre o que o cinema taiwanês representa neste atual momento em que se fala de estagnação e dificuldade produtivas. As linhas aqui traçadas são apenas observações de quem muito admira alguns de seus mestres (Hou e Tsai, especificamente falando) e gostaria de conhecer melhor outros deles (Yang, prioritariamente). Numa cinematografia que inclui alguns dos nomes mais importantes do cenário mundial contemporâneo, e cuja incerteza futura amedronta seus protagonistas, resta a fala de um dos personagens de Adeus, Dragon Inn: "Este cinema é mal-assombrado... Fantasmas!".

Luiz Carlos Oliveira Jr.


1. Para um balanço histórico-crítico mais amplo e apurado, é recomendável o livro Nouvelles Chines, nouveaux cinémas, de Bérénice Reynaud (Paris: Editions Cahiers du cinéma, 1999).

2. Ver nota de Fernando Veríssimo na seção Plano Geral.