Tempos de Lobo, de Michael Haneke
Le temps de loup, França/Áustria/Alemanha, 2003


A ficha técnica de Tempos de Lobo é exibida em silêncio. O procedimento, aparentemente banal, é importante, pois age sobre o espectador como um ritual fúnebre destinado a romper com as sensações do mundo real antes de se entrar em uma fabulação sombria sobre o fim de um determinado mundo (mais que "do mundo"). Que mundo é esse? A civilização européia. Quase todos os filmes de Michael Haneke tratam desse fim europeu. Mostram a degradação violenta de um padrão e de um projeto. Nos anteriores, o tema era aludido, estava por trás das ações, reações e relações dos personagens-símbolos. Em Tempos de Lobo, tudo está explícito. Haneke filma esse mundo em ruínas e o embrutecimento das pessoas por meio da perambulação de uma mulher "recém-enviuvada" e seus dois filhos. Eles procuram ajuda em uma zona rural sob névoas e afetada por falta de água e comida. Encontram apenas uma comunidade que, em busca de solução para o caos, na verdade apenas o evidenciam mais. Em determinado momento, alguém pergunta a outro alguém? "Você é de onde?" Resposta: "Que diferença faz?". Nenhuma. Todos são refugiados. Não importa origem ou classe social. Naquele universo multinacional, todos estão na lama, e até o novo europeu, um menino, projeção da Europa das novas fronteiras, da nova moeda e das novas ambições, apenas vê tudo em silêncio. E não vê à frente. Impotência.

Embora possa parecer disparatada, a visão de Haneke é próxima da de Danny Boyle, outro cineasta que, em registro diferente, mostra a implosão de um projeto de sociedade. Nos dois casos, algo está evidenciado: o homem é um produto histórico-cultural, mas também é um animal nem sempre domável. Em determinadas circunstâncias, joga fora seu aprendizado social. Boyle parte dessa abordagem para fazer espetáculo. O desastre fica agradável de ver. Haneke propõe exasperação. Esforça-se para desagradar porque, crê, não há nada agradável para se mostrar. Tempos de Lobo, nesse sentido, é bastante hanekiano. Na desordem da nova ordem, reina a barbárie. Mata-se, rouba-se. Há intolerância. Tenta-se agir em grupo, mas, como não se entra em acordo sobre a estratégia da ação, a convivência é pura tensão. E não há nenhuma esperança, do início ao final, em relação a melhores tempos. Ao contrário. O desfecho, de aparência otimista, como a acenar com uma possibilidade de solidariedade na desgraça, é cínico à beça e apenas ressalta o ceticismo. Esse é o ponto de vista do cineasta sobre os europeus. Concorde-se ou não, é a visão dele, fruto de sua vivência, de sua cultura, de seu ambiente. Resta nos ver como ele a transforma em estética e conflitos. Pois é. Sua fragilidade está em expor suas idéias sem convertê-las em imagens poderosas. Eduardo Valente acredita que o filme decepciona a todos: tanto aos admiradores de Haneke como quem não o topa. Pode ser. Em relação a Violência Gratuita e Professora de Piano, por exemplo, Tempos de Lobo é cinematograficamente anêmico. Um bocejo.

Naqueles dois filmes, apesar do distanciamento em relação aos personagens e do desprezo revoltado contra a desordem, marcas de seu cinema, Haneke mostrava suas garras. Era capaz de arranhar as sensações do espectador, perturbar o olhar e criar situações tremendamente desagradáveis, sem no entanto explicitar nada, pois movido pelo poder da sugestão. Em Tempos de Lobo, não há nada disso. Pouca tensão, pouca manipulação. Haneke parece ter resolvido criar uma distância ainda maior dos personagens para expor com ainda mais revolta seu desprezo por toda aquela decadência em vias de chegar a um definitivo fundo do poço. Não só tematiza a letargia diante da queda como a reproduz. Pode ser coerência artística, mas resulta em impotência. No entanto, em uma sequência, na qual joga com a incapacidade do espectador de chocar-se com o sofrimento humano, mostra-se brilhante. Filma em primeiro plano o pescoço de um cavalo sendo cortado. Reação inevitável: na sessão de 20 de outubro, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, alguém gritou. Dava até para ouvir o diretor rindo da eficácia de seu golpe. Gente passando fome e devorando-se uns aos outros é suportável, faz parte. Cavalo morrendo, não. Haneke diz pela imagem que, como nada mais choca ninguém, ali teve de apelar. É sua forma de clamar por ordem e civilidade em um mundo onde para ele isso é só utopia.

Cléber Eduardo