Shara, de Naomi Kawase
Sharasojyu, Japão, 2003

Tão logo tem início, com um plano-seqüência perturbador em que a câmera começa passeando por um interior escuro e irresoluto, para depois atingir o ar livre sem correção de diafragma, apunhalando os olhos do espectador com uma luz estourada que inibe parcialmente a visibilidade da cena (antítese que antecipa muito do filme), Shara indica sua qualidade peculiar. Ainda sobre o primeiro plano do filme: a imagem está ralentada, um discreto slow-motion que contrasta com a dinâmica movimentação da câmera na mão cria uma atmosfera irredutível a palavras. O restante da cena compõe-se basicamente de longuíssimos planos que apanham de costas dois meninos, que são irmãos gêmeos, correndo por ruas e vielas de um típico vilarejo japonês. A cena termina com o sumiço misterioso de um dos meninos, um dos únicos eventos dramáticos (do ponto de vista de uma construção narrativa convencional) que o filme possui. Nem as personagens do filme nem os espectadores sabem o que aconteceu; a coisa se deu num interstício do tempo, como se o menino tivesse atravessado um portão dimensional invisível. Essa desaparição é o ponto de partida ambíguo de Shara. Ambíguo porque sua função narrativa será criar um vazio a ser preenchido, uma perda que não tem outra tarefa no filme senão preparar Shun, o irmão que sentiu uma parte sua ir embora e que ficará traumatizado com o evento, para um re-transbordamento de vida ao final. Após o fade-out sobre o rosto assustado de Shun sentado no meio-fio, o filme avança no tempo e o encontra já com dezessete anos e um jeito calado, taciturno.

Um fator essencial de Shara é que, assim como em Eureka, de Shinji Aoyama (outro cineasta japonês), não é na confrontação dramática que o trauma inaugural do filme se resolve. O drama permanece como pano de fundo, e o que fica para o espectador é a atmosfera de vida de quem o tenta solucionar. Menos mostrar eventos completos do que tornar perceptível um conjunto de sensações. Menos elaborar ações que componham o estado psicológico das personagens do que flagrá-las em plena apatia ou êxtase momentâneos. Menos narratividade do que sensorialidade. Os planos alongados de Shara, antes de quererem preservar a continuidade do material sensível ou dilatar o tempo para traduzir uma angústia, precisam transmitir uma descontinuidade fundamental: são imagens em que a experiência de exaurir a duração do plano estático (traço marcante nos cinemas modernos, mas também presente em filmes contemporâneos como os de Tsai Ming-liang) cedeu lugar à necessidade de caracterizar um tempo fragmentário. A fratura está ali, no próprio registro contínuo. E são imagens que exigem mais do espectador do que a simples visão e audição (o trabalho de som é primoroso), pois expandem sua provocação sensorial para caminhos desconhecidos. Ao final de Shara, e mesmo durante sua projeção, nos perguntamos até onde uma imagem pode levar os sentidos de quem a acompanha. Tal pergunta certamente é feita quando, na fantástica seqüência do desfile no Festival Basara, uma chuva abrupta e inesperada refresca os espíritos de todos os presentes naquela confraternização popular. Nessa seqüência absolutamente bela, é retomado o sentido ancestral do rito: o poder da repetição, a interseção entre componentes alegóricos e simples hábitos sociais, as pessoas como objeto e sujeito da festa (ao invés do ritual se esgotar na imagem cultural da divindade), a não-separação de papéis (a chuva como que "autoriza" Shun e seu pai a se juntarem aos dançarinos do desfile numa explosão de alegria e espontaneidade).

O procedimento básico de Naomi Kawase em Shara consiste em isolar um dado momento na vida de um grupo de pessoas e filmá-lo ora em tom de reportagem (quando das situações mais prosaicas ou mesmo em parte da seqüência de abertura), ora revestindo o próprio aparato fílmico de um potencial ritualístico que é tornado sinérgico à ação ritual filmada.

Nara, o vilarejo onde o filme se passa (a diretora já havia ali rodado outros dois filmes), é a terra natal de Kawase – o que pode explicar o tratamento "familiar" dado ao espaço. Existe uma relação câmera-espaço muito interessante no filme, uma relação de intimidade. A cineasta se sente à vontade para passear pelos ambientes, mostrando hábitos locais e modos de vida particulares sem qualquer tipo de pudor, o que representa um ganho enorme em beleza e autenticidade. O encantamento pelo simples e a observação atenta do núcleo familiar, contudo, não resultam em planos parados, estáveis. Shara traz a câmera "desvencilhada" explorada em toda sua capacidade expressiva. Os planos estáticos do filme cabem nos dedos de uma única mão; no mais das vezes prevalece uma imagem tremida, instável, em planos que podem acompanhar vastos trajetos das personagens. Um dos dados curiosos da mise-en-scène de Kawase é que quando ela não opta por planos longos, insere jump-cuts nas cenas ou faz breves tomadas de detalhes da paisagem: seu olhar é ao mesmo tempo contemplativo e intermitente.

Shara evoca tanto uma oposição quanto um falso-espelhamento. Quando Shun mostra o quadro que pintou com uma imagem idêntica à sua, espécie de duplo ausente (o irmão), seu pai resolve encarar o assunto de frente e o chama para uma conversa. Mas a fala não flui, e o pai prefere recorrer à escrita e por num papel a antítese mor do filme: escuro e claro. E é nas imagens que Shara define o sentido do trajeto: do escuro para o claro. Da passagem do ambiente escuro ao claro excessivo no plano inaugural, o caminho percorrido por Shara será justamente o de inversão de significado. No final, depois da cena do parto, quando Shun deixa escorrer algumas lágrimas, será mostrado um plano que se estrutura como a imagem espelhada (ou gêmea) do primeiro. A criança nasce ao escrúpulo de um belo fim de tarde, como que pontuando a idéia da transição de luz justo no momento em que Shun se emociona (e se sente aliviado) com a vida que irrompe perante seus olhos. Há uma elipse (um grande plano geral das casas com o sol se pondo ao fundo) e chega a manhã. É então que a câmera começa a se distanciar, abandona a família reunida em torno do recém-nascido, sai da casa, atravessa a rua, retorna ao local do início do filme (o que um flash-back sonoro não deixa de reforçar), entra num ambiente escuro e em seguida sai à procura de uma luz reconfortante (não é mais aquela luz percuciente do início), à procura da leveza: a câmera aponta para o céu com algumas nuvens. Ocorre uma fusão e um plano aéreo (plano que na verdade é a continuação do precedente) cederá espaço aos créditos, subindo cada vez mais e distanciando-se das casas das famílias que o filme mostrou para situar tudo aquilo num mundo sempre maior, sempre mais rico.

Em poucos dias, o festival já apresenta pelo menos dois filmes (além de Shara, há o interessante A Vida Nova, de Philippe Grandieux) em que imagem e som trabalham muito mais em função de potencializar sensações que de enumerar ações. E Shara sai na frente como um filme realmente cativante, uma experiência de intensidade e beleza raras.

Luiz Carlos Oliveira Jr.