A Borboleta Púrpura, de Lou Ye

Purple Butterfly, China, 2003

O filme de Lou Ye, com sua suntuosa aparência de megaprodução histórica, começa com pompa, cenas de multidão, tramas amorosas, que nos fazem começar a esperar ou uma chapa-branquíssima produção do regime chinês, ou um chatíssimo épico histórico à la Indochina, onde o cruzamento entre macro e micro História é nunca menos do que equivocado, óbvio e puramente exibicionista. No entanto, seja pela escolha de uma narrativa pouquíssimo linear sempre intrigante (que numa olhada preguiçosa e impaciente pode ser considerada confusa), seja no tratamento quase pictórico dos quadros e hipnótico dos movimentos de câmera e de personagens, Lou Ye vai tirando seu filme desta vala comum e o tornando cada vez mais sensorial, sensual e incrivelmente atraente aos olhos e ouvidos.

O que no início parece um enfadonho melodrama, se torna um filme político de identidades e contra-espionagem, onde o principal tema é, exatamente, o jogo das aparências (e daí a confusão inicial se justifica completamente). Mas, talvez o que mais impressione mesmo seja a liberdade narrativa que Ye exercita ao longo do filme, especialmente em algumas seqüências que são pura abstração visual, jogos de montagem e trilha sonora pouquíssimo usuais no cinema ocidental deste tipo de gênero - onde justamente o contato entre os personagens, os diálogos e tramas seriam o mais importante. Ye, pelo contrário, faz um filme que é quase todo de climas, onde a violência e a sexualidade estão sempre à flor da pele, e onde ninguém pode ser confiado completamente. Mistura flashbacks e presente sem uma chave visual simples, tornando o quebra-cabeças que é sua trama cada vez mais intrincado.

Tudo isso converge para um final que é puro jogo cinematográfico, começando com uma boa e velha seqüência de revelação de identidades, onde cada um dos personagens finalmente revela (seja um ao outro, seja em alguns casos ao espectador) qual o seu papel no grande jogo a que assistimos. E, depois deste clímax da narrativa, quando tudo parece se resolver, Ye dá mais um pulo no passado e volta ao momento de gênese da narrativa, vendo-o então por outro ângulo, num dos planos-sequência mais impressionantes do cinema recente. Com este final, ele reitera o deleite cinematográfico que é seu filme, que de fato por vezes é auto-centrado demais na sua forma, mas nunca menos do que surpreendente e fascinante na junção da dimensão pessoal da grande História. Ye, com este filme, pode ser considerado mesmo um “smuggler” autêntico, no mais difícil cinema de se burlar hoje, que é o chinês. Faz um filme que parece ser “nacionalista de carteirinha”, mas que é, de fato, muito mais uma celebração do cinema e da arte de contar histórias.

Eduardo Valente