Os Sete Arkadins 1

"Eu queria fazer um trabalho no espírito de Dickens, com personagens tão densos que parecessem arquétipos... Pensei que poderia ter resultado em um filme muito popular, um filme comercial, do qual todos teriam gostado. Em lugar disso... tenho medo de assisti-lo! É terrível o que fizeram comigo neste filme. Ele foi arrancado de minhas mãos de forma mais brutal que jamais arrancaram um filme de qualquer pessoa... é como se tivessem sequestrado meu filho! Trouxeram outro montador
que fingiu ter "salvo" o filme!"
Orson Welles em l' Avant-scène du Cinéma,
nº 291-292 (1-15 de Julho de 1982)

É geralmente conhecido que, por uma variedade de razões, alguns dos filmes de Orson Welles sobrevivem atualmente em duas ou mais versões. James Naremore contou-me ter assistido em uma ocasião na Alemanha a uma cópia de A Dama de Shanghai que incluía tomadas alternativas de certas cenas e montagem algo diferente, incluindo alguns planos que ele não havia visto antes ou desde então. (Isto parece comparável, de modo grosseiro, à versão "italiana" de Esposas Ingênuas de Stroheim, aparentemente enviada ao estrangeiro antes que a versão doméstica estivesse terminada.) Mais conhecidas são as duas versões diferentes de Welles para Macbeth – Reinado de Sangue, com durações de 107 e 86 minutos. (A segunda foi preparada depois que Welles foi solicitado a cortar dois rolos e a redublar o diálogo eliminando o sotaque escocês; ela contém narração em off que inexiste na versão longa, mas não contém a tomada única com duração de um rolo inteiro que antecedeu Festim Diabólico de Hitchcock em um ano.) Ainda mais conhecidas são as duas montagens de A Marca da Maldade – a versão de 93 minutos lançada originalmente e a versão de 108 minutos descoberta em meados da década de 70 que virtualmente a suplantou. Visto que Welles foi banido das etapas finais da montagem, nenhuma delas pode ser considerada definitiva; de fato, é impossível falar de uma versão definitiva de A Marca da Maldade.2

O mesmo é verdade sobre Mr. Arkadin (1955)3. Neste caso, porém, as consequências são muito mais desconcertantes em razão do número de Arkadins dentre os quais temos de escolher – somando o fato de que a versão mais conhecida neste país está muito distante da melhor.

Aqui segue, de forma simplificada, o modo como a trama mais ou menos se desenrola. Em Nápoles, um homem, Bracco (Grégoire Aslan), misteriosamente esfaqueado nas costas, sussurra dois nomes enquanto agoniza: "Gregory Arkadin" e "Sophie". As únicas pessoas que escutam os nomes são Guy Van Stratten (Robert Arden), um contrabandista americano, e sua namorada Mily (Patricia Medina). Com esperança de conquistar uma fortuna através de chantagem em posse destes nomes, Guy vai ao encalço do fabulosamente rico Arkadin (Welles) até um castelo na Espanha e, contra a vontade do homem, corteja sua protegida e amada filha Raina (Paola Mori). Inesperadamente, Arkadin, que afirma sofrer de amnésia, contrata Guy para preparar um relatório confidencial sobre suas atividades anteriores a 1927. Guy conduz entrevistas em toda a Europa e no México, basicamente seguindo a pista de ex-membros da gangue de traficantes de escravos brancos à qual Arkadin pertenceu. Estes incluem Oskar (Frederick O'Brady) e Sophie (Katina Paxinou) no México, e Jakob Zouk (Akim Tamiroff) em Munique; Mily ajuda Guy conversando com um negociante de mercado negro (Peter van Eyck) em Tanger e com o próprio Arkadin em seu iate. Enquanto Guy desvenda o passado de Arkadin, ele aos poucos descobre que seu empregador, com medo de que Raina tome conhecimento de quem e do que ele havia sido, tem provocado o assassinato de seus antigos comparsas, assim como o de Mily. Temendo por sua própria vida, Guy toma um vôo para encontrar-se com Raina em Barcelona à frente de Arkadin, que segue num avião particular. Guy convence Raina a contar a seu pai, por meio do rádio-transmissor do avião, que ela sabe de tudo, quando então Arkadin comete suicídio saltando do avião. Raina, por desgosto, abandona Guy.

* * *

Em 1958 o conselho editorial da revista Cahiers du Cinéma tomou coletivamente a resolução de que Mr. Arkadin – mais precisamente, Confidential Report, título pelo qual eles o conheciam – era o melhor filme de Welles, aquele que pertencia à sua lista dos doze melhores filmes jamais feitos. Na época, não muito depois do aparecimento do filme na Europa, não havia conhecimento público de que Welles tinha perdido o controle sobre a montagem do filme; o diretor comparecera à premiére em Paris, e aparentemente não fizera qualquer declaração sobre suas dificuldades criativas até algum tempo depois. Até mesmo hoje temos menos informações disponíveis sobre a realização e sobre o trabalho de remontagem de Arkadin do que sobre qualquer dos outros longa-metragens narrativos de Welles lançados durante sua vida.

O que temos de fato é uma panóplia tantalizante de textos – para os propósitos desta discussão, sete – de vários formatos. Eles vão do estilisticamente convencional ao estilisticamente radical, do apressadamente realizado ao esteticamente intrincado. Não obstante a estranha preferência dos editores da Cahiers, eu não considero Arkadin uma obra-prima em qualquer de suas versões ou encarnações. Mas eu considero o filme em grande parte fascinante e muito dele excitante e belo – me refiro, no caso, a uma combinação dos Arkadins que correspondem aos números 3, 6, e 7 (em ordem decrescente de importância), dentre as provas que proponho submeter para apreciação.

O que é oferecido abaixo não é tanto um mapa de um Arkadin "definitivo" quanto uma exploração de alguns dos processos pelos quais a trama e o filme passaram. É, se preferirem, uma espécie de história de detetive sem um desenlace, mas repleta de pistas. O modo é de investigação histórica experimental, intencionalmente seletiva e sugestiva ao invés de exaustiva, complementada por algumas observações críticas.

Na busca de meu próprio relatório confidencial, beneficiei-me enormemente de três fontes inestimáveis que se somaram aos textos primários: uma tarde passada com um bom número de trechos da cópia de trabalho do produtor – examinadas numa moviola com dois outros estudiosos de Welles, Ciro Giorgini e Bernard Eisenschitz – graças à excepcional generosidade de Fred Junck e Marco Müller; uma entrevista por telefone graciosamente concedida a mim por Patricia Medina; e This is Orson Welles de Orson Welles e Peter Bogdanovich, um livro que edito para a HarperCollins 4. Gostaria também de agradecer a Geoff Andrew, Tag Gallagher, James Pepper, Bill Reed, e Bret Wood por me fornecerem alguns dos materiais primários.

Pré-Textos

1: "Greek Meets Greek" – episódio de meia-hora da série radiofônica londrina The Adventures of Harry Lime, um produto derivado do sucesso da personagem de Welles no filme O Terceiro Homem (1949) de Carol Reed/Graham Greene. Escrito e estrelado por Welles, dirigido por Tig Roe, e provavelmente gravado em 1951, o segmento é bastante indigno de comentário exceto por constituir a fonte do enredo estrutural e dos temas-chave de Arkadin.

2: Masquerade – primeira versão do roteiro de Welles para Arkadin, que data de 23 de março de 1953, ano imediatamente anterior ao início das filmagens. Masquerade difere de todas ou de quase todas as versões posteriores das seguintes maneiras:

(a) A citação de abertura não é um aforisma sobre um rei e um poeta e um segredo fatal, mas uma citação de Emerson:

Commit a crime, and the earth is made of glass. Commit a crime and it seems as if a coat of snow fell on the ground, such as reveals in the woods the track of every partridge and fox and squirrel and mole. You cannot recall the spoken word, you cannot wipe out the foot-track, you cannot draw up the ladder, so as to leave no inlet or clew. 5

Esta citação aparece igualmente nas edições francesa e italiana do romance, embora não esteja aparentemente em inglês em nenhuma delas. Como Richard T. Jameson apontou-me, a mesma citação é declamada por Edward G. Robinson em O Estranho (1946) de Welles.

(b) Exceto pela sequência anterior aos créditos em que se vê o avião sem piloto – que existe em todas as versões do filme mas não no romance – não há flashbacks e nenhuma narração em off. A progressão da trama é estritamente cronológica.

(c) O investigador chama-se "Guy Dumesnil" e é descrito como "jovem e atraente" e "um europeu americanizado" (e não um americano chamado Guy Van Stratten). A personagem Jakob Zouk (interpretado por Akim Tamiroff no filme) chama-se "Jakob Nathansen".

(d) A maior parte das principais cenas do roteiro estão no filme, ainda que algumas sejam ambientadas em países diferentes. O baile de máscaras de Arkadin passa-se em Veneza, não na Espanha ("Esta é claramente uma tentativa de Arkadin de superar o famoso Baile de Bestigui, e é, de várias maneiras, uma duplicação dele... Os canais estão repletos de gôndolas iluminadas transportando os convidados de Arkadin, todos em fantasias da Veneza do século XVIII..."). De forma similar, a loja de penhores e quinquilharias de Burgomil Trebitsch (Michael Redgrave) localiza-se em Marselha, não em Copenhagen. Algumas cenas do filme, tal como aquela de que participa o diretor do circo de pulgas (Mischa Auer), não constam no roteiro.

(e) Talvez a maior parte do material disponível aqui mas ausente em todas as outras versões de Arkadin (exceto pelo romance, onde figura de forma um tanto diferente) diz respeito às aventuras de Van Stratten durante sua primeira visita ao México, antes de interrogar Oskar e Sophie. Ele assiste ao funeral de Ki-Ki 6, o velho poodle de Sophie e segue o rastro de Oskar até um "café Kosher" administrado por Sophie, onde ele toca acordeão em troca de gorjetas. Van Stratten atrai Oskar até um barco alugado oferecendo-lhe uma alta remuneração para entreter convidados em um pretenso cruzeiro, quando passa então a torturá-lo, privando-o de heroína, para obter informações. Apenas uma versão resumida desta cena do barco sobrevive no filme.

(f) No filme, há um confronto entre Van Stratten, Arkadin e Raina no quarto de hotel de Guy em Paris; o roteiro ambienta a cena no apartamento de Van Stratten, e Arkadin aparece apenas tardiamente. (Na cópia de trabalho, Welles conduz um ensaio para parte desta cena e, enquanto passa instruções do diálogo a Mori, refere-se ao cenário como Nova York.)

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Filmes e Filmagem:
"um fenômeno de uma época de dissolução e caos"

Eu estava processando os rushes de Arkadin em um laboratório francês. Imagine só que eu tinha de conseguir uma autorização especial para cada pedaço de filme, mesmo que tivesse apenas 20 metros de comprimento, que chegava da Espanha! O filme teve de passar pelas mãos dos oficiais da alfândega, que perderam o tempo deles (e o nosso) carimbando o começo e o fim de todo e qualquer rolo de filme ou de fita magnética de som. A operação levava dois dias inteiros, e o filme corria o risco de ser danificado pela alta temperatura que tínhamos então.
As mesmas dificuldades surgiram no que diz respeito a obter permissão para trabalhar. Minha equipe era internacional: eu tinha um fotógrafo francês, um editor italiano, um engenheiro de som inglês, uma continuísta irlandesa, um assistente espanhol. Sempre que tínhamos que viajar para qualquer lugar, cada um deles tinha de perder um tempo excessivo conseguindo permissões especiais para trabalhar... Complicações similares surgiram quando, por exemplo, tivemos que trazer uma câmera francesa para a Espanha...
Os verdadeiros culpados são os produtores. Eles preferem a segurança de um lucro limitado mas certo de um mercado nacional ou regional às possibilidades infinitamente mais vastas de um mercado mundial, que obviamente acarretaria, de saída, em certos custos suplementares.

Orson Welles, "For a Universal Cinema," Film Culture 1. no.1 [Janeiro de 1955]

Algumas palavras sobre a produção de Mr. Arkadin. Louis Dolivet, o produtor francês, há não muito falecido, foi um bom amigo e mentor político de Welles nos Estados Unidos durante meados dos anos 40. (Ver a biografia de Barbara Leaming, Orson Welles [Nova York: Viking Penguin, 1985], para detalhes.) Dolivet nunca produzira um filme antes de Arkadin e, até onde sei, jamais produziu outro depois. A pouca evidência de que dispomos sugere que a produção de Arkadin foi uma experiência desgastante tanto para ele quanto para Welles e que sua amizade terminou sendo uma de suas vítimas fatais. Para tornar as coisas piores, Paola Mori – o nome artístico da Condessa de Girfalco, que posteriormente viria a se tornar a terceira e última esposa de Welles – teve sua interpretação tão asperamente criticada por Dolivet e por outros, que terminou desistindo de representar, aparecendo apenas em pontas em O Processo e no inacabado Dom Quixote. (Mais uma vez, o material filmado do ensaio na cópia de trabalho é sugestivo: a voz musicalmente acentuada de Mori é distinta da voz com sotaque inglês que ouvimos nos filmes lançados, o que levanta a possibilidade de que a voz "de Raina" foi subsequentemente dublada por outra atriz.7)

Parece que a maior parte do filme foi rodada na Espanha – boa parte em um estúdio de Madri –, ainda com uma pequena parte em locações de Paris e Munique e provavelmente algum pouco material coletado em algum outro lugar da Europa ocidental. (Não se pode levar a sério qualquer dos relatos que sustentam que parte das filmagens foi realizada no México.) Com base em minha entrevista com Patricia Medina e nas claquetes visíveis em certas tomadas não aproveitadas, sabemos que várias cenas foram rodadas, inteira ou parcialmente, em Madri ou nos arredores. Estas cenas compreendem cenários ficcionais tais como um hotel na Cidade do México, as docas de Nápoles, o iate de Arkadin, o interior e cercanias do castelo espanhol, um café em Tânger, uma casa noturna na Riviera, e o interior de uma catedral em Munique!

Patricia Medina nunca assistiu a Arkadin, de modo que todas as suas memórias detém-se exclusivamente à sua própria participação no filme. Ela estava, na época, sob contrato com a Columbia, e quando Welles telefonara-lhe em Londres pedindo que interpretasse Mily, ela dispunha de muito pouco tempo para filmar porque deveria retornar aos Estados Unidos para representar em outra coisa qualquer (provavelmente Miami Exposé). Welles replicara jocosamente, "Então teremos de matá-la." (o assassinato de Mily, aludido fora-da-tela no filme, nunca foi filmado de qualquer modo.) Medina voou até Madri e todas as suas cenas foram rodadas lá, a maioria num estúdio, em cerca de dez dias.

Sobretudo, ela lembra-se da filmagem como um evento feliz. A primeira cena de que participou transcorria a bordo de um iate junto com Arkadin. Na noite anterior à filmagem, Welles mostrou-lhe o cenário, perguntando zombeteiramente: "Não se parece exatamente com a balsa de Staten Island?" O cenário do iate estava suspenso no ar; era necessário escalar para entrar nele. Depois de Medina ter retornado a seu hotel, Welles telefonou para perguntá-la se havia qualquer coisa no hotel que "pertencesse a um iate." Ela olhou em volta e encontrou muito pouco. Chegando para a filmagem na manhã seguinte, ela descobriu que Welles havia ficado acordado a noite inteira redecorando o cenário com mobília temporariamente surrupiada do saguão do Hilton de Madri, onde o próprio Welles estava hospedado. Ele anunciou que eles só dispunham de tempo para duas tomadas porque a mobília tinha que retornar ao hotel antes que sentissem sua falta. (Um detalhe nesta cena foi improvisado: quando Mily diz "Cale-se!" para um pássaro que pia de modo incômodo numa gaiola, nem o piado ou sua fala constavam no roteiro.)

A participação de Medina na cena que representa a processão de penitentes próxima ao castelo de Arkadin foi realizada inteira em um estúdio. É interessante notar que, apesar de Paola Mori aparecer na mesma sequência, Medina nunca se encontrou com ela durante a filmagem. Se examinarmos a cena com atenção, torna-se evidente que Mily e a procissão nunca aparecem no mesmo plano; a ilusão de proximidade é causada e intensificada pelo movimento das sombras – ostensivamente dos penitentes – projetadas sobre Mily e Guy.

Quando Medina partiu para os Estados Unidos, Welles pediu que ela enviasse uma fotografia sua que pudesse ser ampliada para um cartaz anunciando Mily como uma dançarina de strip-tease. Ela negou-se a fazer isto. Quando chegou a Paris algum tempo depois de fazer a dublagem com Welles, ela ficou perplexa ao ver a fotografia que ele havia encontrado e usado por conta própria. (Quando Van Stratten toma conhecimento da morte de Mily mais tarde no filme, esta fotografia retorna em algumas versões, identificada no diálogo como "a única fotografia disponível tirada antes da morte.") E isto marcou o fim de seu envolvimento, salvo que muito mais tarde ela foi contactada por Dolivet para atuar em algumas cenas adicionais; tomando conhecimento que Welles não as estaria dirigindo, ela recusou.

Mas, de volta aos Sete Arkadins...

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3: Mr. Arkadin, o filme – quer dizer, a versão do filme mais próxima à concepção de Welles. Esta foi disponibilizada nos Estados Unidos através da Corinth Films; devemos a existência original desta versão nos Estados Unidos a Peter Bogdanovich, que a descobriu em Hollywood em 1961, e a Dan Talbot da New Yorker Films, que a adquiriu para a tardia premiére americana e para o lançamento de Arkadin no ano seguinte.

De acordo com o editor do filme, Renzo Lucidi (recentemente entrevistado por Ciro Giorgini), as primeiras quatro sequências desta versão correspondem precisamente às intenções de Welles. Ela começa com a visita de Van Stratten a Jakob Zouk em Munique, e continua numa série de flashbacks narrados em off por Van Stratten, retornando periodicamente ao apartamento-sótão de Zouk 8.

Welles gastou quatro meses montando, produzindo em média (de acordo com Lucidi) dois minutos de filme acabado por semana. Ele foi banido da montagem depois de não obter êxito em terminar o trabalho no natal de 1954, o prazo-limite estabelecido por Dolivet, mas continuou a comunicar suas intenções a Lucidi. Assim que Lucidi terminou de montar esta versão, porém, Dolivet aparentemente pediu que o filme fosse remontado, eliminando a maior parte dos flashbacks – em ordem cronológica depois da sequência de abertura – e esta foi a principal versão lançada na Europa como Confidential Report. (Ver no. 6, abaixo.)

Em This is Orson Welles, Welles mantém que ao menos duas cenas importantes de sua montagem foram eliminadas de todas as versões lançadas de Arkadin. Isto parece ser corroborado pela citação de Frank Brady, em sua biografia de Welles, de uma história sem data do New York Herald Tribune na qual Welles reclama que quatorze minutos de sua versão haviam sido removidos. Para Bogdanovich, Welles citou outra cena de festa e uma cena adicional entre Arkadin e Van Stratten, ambas mostrando Arkadin "como um bêbado russo sentimental, um tanto piegas"; o personagem de Arkadin, ele adicionou, foi inspirado em certa medida por Stalin.

Dada a relativa falta de familiaridade de Welles com as versões lançadas de seu filme – que ele claramente considerava dolorosas de assistir – estas observações podem aludir a um material adicional do baile de máscaras de Arkadin, ou à festa de Natal em Munique (onde de fato vemos Arkadin bêbado). Por outro lado, elas podem referir-se a duas cenas completas das quais não temos mais qualquer registro em quaisquer dos sete Arkadins. Visto que Welles tinha uma queda por revisar seus roteiros durante as filmagens – e até, ocasionalmente, por revisar diálogos durante a montagem e a dublagem – ambas as hipóteses são plausíveis.

Aparentemente, uma das razões pela qual Arkadin demorou tanto – sete anos! – a estrear nos Estados Unidos, foi um processo de 780.000 dólares movido pela produtora européia Filmorsa contra Welles em Nova York, alegando que o comportamento de Welles fora responsável pelo fracasso comercial último do filme. O processo teve início em 7 de abril de 1958, mas os papéis não foram arquivados até 28 de setembro de 1961; no dia seguinte breves notícias foram publicadas nos jornais de Nova York, citando "beber excessivamente dentro e fora do set" como a principal acusação. No Times, Welles chamou as acusações de "boates disparatados, fraseologia capciosa, generalizações nuas, inferências sem sustentação e irrelevâncias patentes," enquanto um de seus advogados mantinha que havia sido a Filmorsa, e não Welles, que havia rompido o contrato. As acusações, em todo caso, foram finalmente retiradas.

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4: Mr. Arkadin, o romance, assinado por Welles mas não escrito por ele - ainda que a versão disponível em inglês seja uma tradução anônima do romance francês escrito (como ghost-writter) por Maurice Bessy que foi baseado, por sua vez, em uma versão do roteiro de Welles, em inglês, que foi escrito em algum momento depois do no. 2. O romance foi originalmente produzido para publicação em série em um jornal francês, e apareceu na França pela primeira vez em forma de livro na época do lançamento francês de Confidential Report.

O romance é dividido em três seções, entituladas "Bracco," "Sophie," e "O Ogro." Narrado em primeira pessoa por Van Stratten, ele guarda semelhança mais próxima com o no. 7 em sua forma geral. O material mais significativo que falta a todas as outras versões diz respeito à mãe de Van Stratten, uma jogadora profissional que, na época do romance, ocupa "um pequeno apartamento de dois cômodos em Beausoleil com Myrtle," uma companheira inglesa de jogatina, e aparece brevemente junto a Myrtle no segundo capítulo.

Embora Lucidi tenha sustentado recentemente que Welles teria escrito o romance, todas as outras evidências disponíveis – incluindo uma conversa que tive com Welles em 1972 – refutam esta história. Uma comparação dos diálogos do romance com os dos filmes sugere em virtualmente todo caso que o primeiro é uma re-tradução de volta ao inglês do diálogo francês adaptado de um roteiro em inglês; o significado das falas geralmente é o mesmo, mas as palavras e frases são quase sempre diferentes.

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5: A versão espanhola do filme. Se a "versão em espanhol" em circulação for idêntica à que estreou em Madri em março de 1955, então esta é provavelmente a primeira versão que estreou em qualquer lugar. Pude assistir a apenas umas poucas partes desta versão – presumivelmente as partes mais significativas – no documentário inestimável realizado por Ciro Giorgini em 1991 para a RAI italiana, Tutta la Veritá su Mr. Arkadin.

A versão em língua espanhola foi aparentemente filmada de forma simultânea à produção principal. Ela conta com atrizes diferentes nos papéis de Sophie e da Baronesa Nagel (e talvez igualmente com outros atores espanhóis), como parte do acordo firmado para uma co-produção espanhola. Um montador diferente é também creditado, Antonio Martinez. Na sequência anterior aos créditos, diz-se de forma mais vaga que o avião sem piloto foi avistado em algum lugar da Europa ao invés de "sobre a costa de Barcelona"; nos breves relances dos atores exibidos nos créditos, vemos Amparo Rivelles ao invés de Suzanne Flon como a Baronesa Nagel, Irene Lopez Heredia ao invés de Katina Paxinou como Sophie; Robert Arden é inexplicavelmente identificado como "Bob Harden." Quanto às cenas que envolvem Rivelles e Lopez Heredia, a primeira destas tomadas alternativas de Welles (dublado por outra pessoa) com ângulos inversos de Rivelles, no que parece ser uma aproximação grosseira do mesmo cenário (um elegante restaurante parisiense); parece altamente improvável que Welles tenha dirigido estes ângulos inversos. Mas na cena com Lopez Heredia e "Harden," o cenário parece ser o mesmo utilizado nas versões faladas em inglês, e a iluminação e mise-en-scène, embora não exatamente idênticas, são suficientemente wellesianas para sugerir que o próprio Welles tenha dirigido a versão alternativa desta cena 9.

6: Confidential Report – a versão do filme que estreou em Londres em agosto de 1955 e, aparentemente, a principal versão que foi e é exibida em toda a Europa, incluindo a França.

Parece bastante provável que um dos primeiros tratamentos do roteiro de Welles tenha sido usado como um guia na remontagem desta versão, cuja descrição detalhada está disponível em francês na edição de l'Avant-Scène du Cinéma citada no início deste arigo. (Esta descrição inclui anotações sobre material encontrado na cópia de trabalho). Tal como Giorgini demonstra em seu documentário através de uma técnica de split-screen, as diferenças entre esta versão e a de no. 3 são mais que apenas uma questão de sequência cronológica; elas envolvem variações na montagem e nos diálogos e/ou narração dentro das cenas, e algumas vezes podem envolver até tomadas diferentes.

Há ao menos duas breves cenas de Confidential Report que estão ausentes dos números 3 e 7 – uma cena em que Van Stratten conversa com um pianista negro americano em um bar na Riviera enquanto procura Mily e o "brinde da Geórgia" (8) de Arkadin próximo do fim de seu baile de máscaras, no qual ele narra um curioso sonho ambientado em um cemitério. Acontece também que esta é a única versão que contém planos de esculturas de papier-mâché suspensas representando morcegos na sequência de créditos de abertura. (Quanto a que elas podem referir-se no filme, podem tanto ser objetos da loja de quinquilharias de Trebitsch quanto parte da decoração do baile de máscaras de Arkadin; quando questionado a respeito destes morcegos por Bogdanovich, Welles não tinha qualquer lembrança deles.)

Outra diferença importante entre Confidential Report e todas as outras versões é um bloco de narração em off de Van Stratten, transcrita abaixo, que acompanha quatro planos em que vemos ele aproximar-se de uma casa deteriorada na neve (planos visíveis em todas as versões). Não fui capaz de determinar se Welles escreveu or gravou esta narração; se o fez, parece provável que ela foi substituída mais tarde pelo diferente tipo de exposição que ele empregou no no. 3. O final desta narração certamente reduz a força do mais belo movimento de câmera do filme, um recuo para o interior de um túnel escuro de um corredor:

Aqui estou no fim da estrada. Nápoles, França, Espanha, México, e agora Munique. Sebastianplatz 16. No sótão desta casa mora Jakob Zouk, um contrabandista insignificante, um prisioneiro, e o último homem vivo além de mim que conhece toda a verdade sobre Gregory Arkadin. Meu relatório confidencial está completo agora. Meus honorários originais para este trabalho eram de 15.000 dólares, e parece que um pequeno bônus será adicionado - como uma faca em minhas costas. Mas Zouk receberá a sua primeiro, a não ser que eu possa salvá-lo. E então a mim – o maior otário do mundo 10.

7: A principal versão em domínio público que circula neste país em video; é possível que ainda esteja disponível em película. Com a provável exceção da versão em espanhol, no. 5, e as possíveis exceções do programa radiofônico, no.1, e do romance, no. 4, é a versão menos satisfatória de Arkadin de que dispomos. Mas por ser amplamente acessível em video e em razão de ser frequentemente exibido na TV, é mais que provável que seja o Arkadin que a maioria dos americanos conhecem.

Na maior parte, esta qualifica-se como uma versão desastradamente truncada da no. 6, com muitas das perdas significativas ocorrendo no início ou próximo dele. De modo característico, a narração em off que começa após os créditos começa no meio de uma frase, com Van Stratten nas docas de Nápoles (que é onde a no. 4 começa também).

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Uma Tentativa de Conclusão: "Dê ao cavalheiro seu fígado de ganso"

Em seu prefácio à tradução para o inglês do livro Orson Welles de André Bazin, François Truffaut divide todos os filmes de Welles entre aqueles realizados com a mão direita e aqueles realizados com a mão esquerda, adicionando: "Nos filmes à mão direita sempre há neve, e nos realizados à mão esquerda sempre há tiros; mas todos constituem o que Cocteau chamou de 'poesia da cinematografia.'" Arkadin é o único filme de Welles com ambos, neve e tiros, mas eu penso que Truffaut está provavelmente correto em considerá-lo um de seus filmes realizados com a mão esquerda. Seus momentos de poesia são intensos e indeléveis, mas a sensação de caos que passa, embora fundamental a esta poesia, é, por vezes, menos que adequada às necessidades mais prosaicas da narrativa. Eric Rohmer estava certo em classificar o filme como um conto ou uma fábula ao invés de uma história realista ou um thriller, e pode-se argumentar que a relativa hospitalidade da crítica francesa a narrativas não-realistas ajuda a explicar o relativo favorecimento que Arkadin encontrou na crítica francesa.

Críticos anglo-americanos de um modo geral ficaram desconcertados pelos mesmos elementos. Dwight Macdonald, de modo característico, reclamou da falta de atenção dispensada às transações de negócios de Arkadin e à maquiagem visivelmente artificial de Welles para o papel; outros detiveram-se às semelhanças superficiais da trama à de Cidadão Kane para repreender o filme por sua incoerência, suas interpretações, e/ou seus valores de produção.

Eu compartilho algumas destas tendências, embora algumas pareçam deslocadas. No que se refere a toda a falta de realismo do filme, ela ainda tem alguma validade e interesse como uma alegoria da Guerra Fria, como James Naremore sugeriu. Naremore aponta em Robert Arden uma "semelhança fantástica a um jovem, atlético Richard Nixon," e se ligarmos isto à semelhança de Arkadin com Stalin – uma semelhança reforçada pelo hábito de Arkadin de matar antigos associados e testemunhas – a luta dos dois sobre Raina, que podemos dizer que representa a Europa Ocidental em meados da década de 50, é repleta de possibilidades sugestivas e subversivas. O fato que Arkadin e Van Stratten são apresentados como equivalentes morais –- as versões mais velha e mais jovem do mesmo grosseirão inescrupuloso – é central para esta leitura.

A interpretação de Arden como Van Stratten é comumente apontada como abusiva, até mesmo pela maior parte dos defensores de Welles, mas após repetidas inspeções parece-me que é o caráter detestável e odioso do personagem, e não a própria interpretação, o responsável pela maior parte desta atitude. Uma síndrome comparável aplica-se ao George Minafer de Tim Holt em Soberba: em razão de ambas as personagens ocuparem o espaço normalmente reservado aos heróis carismáticos, sentimos que devemos gostar deles e/ou simpatizar com eles, e quando seus respectivos filmes tornam isto impossível, terminamos culpando, a reboque, os atores ou a escolha de elenco de Welles ao invés de aceitar a premissa de que devemos passar maus bocados com estas pessoas.

Isto não é para sugerir que as interpretações em Arkadin estejam acima da crítica. Eu concordo que o filme tem uma interpretação debilitante, mas ela não é oferecida nem por Arden ou por Paola Mori (que pode ser relativamente inábil mas ainda parece bastante adequada às demandas que o roteiro lhe exige).Temo que ela seja oferecida pelo próprio Welles. A falsidade de sua maquiagem e as variações de seu sotaque russo não podem ser racionalizados de acordo com a natureza elusiva da personagem de Arkadin, porque nenhuma norma da qual estes traços possam desviar é jamais estabelecida. Pode-se aceitar a premissa de que o filme apresenta-nos uma galeria de tipo grotescos, mas não um ogro-título cuja face é pouco menos que uma máscara de Halloween. Em diferentes conjunturas, Arkadin é associado a Netuno e a Papai Noel, e em seu próprio baile ele esconde-se por trás de uma máscara; a maior parte da trama é dedicada ao desvendamento de sua identidade original, um bandido vulgar chamado Akim Athabadze. Mas mesmo este último fantasma, visto de relance em uma fotografia desbotada pertencente a Sophie, ganha mais vida em nossas mentes que a própria presença de Gregory Arkadin na tela. (Principalmente por causa da própria Sophie; ela e Zouk terminam provendo a maior parte de qualquer que seja a alma do filme, graças em larga medida a Paxinou e Tamiroff.) Welles parece ter concebido Arkadin como um tecido de paradoxos, mas sua própria interpretação, mesmo contendo algumas falas adoráveis, não conecta ou adota estes paradoxos. No melhor dos casos, apenas alude a eles.

O momento mais bobo da personagem acontece quando ele informa a Van Stratten em uma catedral de Munique: "Eu não penso mais de forma alguma em você." Considerando o fato que ele já seguiu a trilha de Van Stratten através do Atlântico e de volta, e seguiu-o não apenas até Munique mas até este exato local, seria mais que uma atenuação chamar esta declaração de dissimulada. Talvez as cenas que faltam, às quais Welles alude, poderiam ter providenciado algum contexto a mais para tais anomalias; ou talvez não. De um modo ou de outro, é válido notar o grau em que a obstinada irracionalidade cumpre um importante papel no trabalho de Welles, de Kane e George Minafer a Iago e Othello, da maior parte das personagens de A Dama de Shanghai aos de A Marca da Maldade até todas as personagens de O Processo.

Talvez o principal elemento subestimado de Arkadin seja a trilha sonora maravilhosamente evocativa e rítmica de Paul Misraki, que por vezes cumpre mais o papel de dar forma ao filme que a própria trama, diálogos, ou mise-en-scène. A nostalgia por uma inocência perdida tem um papel tão importante em Arkadin quanto em Kane, Soberba e Badaladas à Meia-Noite (onde também é ligada à neve), ainda que o lugar desta inocência seja menos determinado que o século XIX ou a Idade Média nestes filmes (sem mencionar o bordel de Tanya em A Marca da Maldade). Como o próprio Arkadin, ela está em todo e qualquer lugar, por vezes onde menos esperamos que esteja. Está no natal e no fígado de ganso e na última vez que alguém disse "venha para a cama" para Jakob Zouk. Está na juventude e nos anseios românticos da Baronesa Nagel e Sophie, e numa pequena e mal-ajambrada banda do Exército da Salvação que toca na rua. Mais misteriosa e perturbadoramente, está no súbito, irracional, recuo da câmera para dentro de um úmido corredor de prédio de apartamentos, para o interior de um ventre escuro de esquecimento.

Jonathan Rosenbaum

(Tradução de Fernando Verissimo)


1. Artigo publicado originalmente na revista Film Comment, Janeiro/Fevereiro de 1992; reproduzido em Movies as Politics. Berkeley: University of California Press, 1997.

2. Em 1998, uma terceira versão de A Marca da Maldade foi lançada comercialmente, produzida por Rick Schmidlin com o intuito de recuperar a visão original de Welles. A partir de um longo memorando escrito por Welles a Edward Muhl, chefe de produção da Universal, foi realizada uma nova montagem a cargo de Walter Murch e supervisionada por Rosenbaum. Contracampo publica nesta edição uma tradução em português do memorando (N. do T.)

3. O filme foi exibido no Brasil com o título Grilhões do Passado (N. do T.)

4. This is Orson Welles foi publicado em 1992 pela Harper Collins, nos EUA. Uma tradução para o português foi publicada pela Editora Globo (São Paulo, 1995) como Este é Orson Welles. (N. do T.)

5. Cometa um crime e a terra é feita de vidro. Cometa um crime e parece que uma camada de neve caiu no chão, de modo a revelar na floresta a pista de toda perdiz e raposa e esquilo e toupeira. Você não consegue lembrar-se da palavra falada, você não consegue apagar as pegadas, você não consegue seguir o fio da meada, de modo a não deixar nenhuma pista ou rastro.

6. Curiosamente, Welles tinha um amado cãozinho de mesmo nome em Hollywood no fim de sua vida. (Nota do Autor)

7. Eu soube posteriormente que a jovem Billie Whitelaw fez a dublagem. (N. do A.)

8. O testemunho de Welles a Bogdanovich (This is Orson Welles, p. 237) contradiz Lucidi na medida que Welles lembra de sua versão começando "com uma tomada de uma imensa praia deserta e uma garota nua [Mily] sendo trazida pelo mar" – uma breve tomada que aparece na no. 6 imediatamente após a cena do iate, está ausente das de no. 2, 3, e 7, mas que de fato inicia a no. 5, a versão espanhola, como descobri recentemente. (N. do A. – Junho 1997)

9. Aparentemente ele não a dirigiu. Ver os inestimáveis Orson Welles: Una España Immortal de Esteve Riambau e Orson Welles: España como Obsesion [Valencia: Ediciones Filmoteca, Filmoteca Española, 1993]. (N. do A. – 1995)

10. Reprodução do texto original: Here I am at the end of the road. Naples, France, Spain, Mexico, and now Munich. Sebastianplatz 16. In the attic of this house lives Jakob Zouk, a petty racketeer, a jailbird, and the last man alive besides me who knows the whole truth about Gregory Arkadin. My confidential report is complete now. My original fee for this job was $ 15,000, and it looks like a little bonus will be tossed in – like a knife in my back. But Zouk will get his first unless I can save him. And then me – the world's prize sucker.