Laís Bodansky e Tata Amaral


Tata Amaral e Lais Bodansky realizaram duas das mais contundentes estréias em longa-metragens do cinema brasileiro recente: Um Céu de Estrelas e Bicho de Sete Cabeças, respectivamente. Tata já realizou um segundo longa (Através da Janela) desde então, enquanto Lais tornou-se mamãe. Ambas representam uma mesma geração de realizadores (com pequena diferença nas suas estréias em curta e longa que não justificam que as separemos em termos geracionais) do cinema paulistano, geração esta formada num mesmo ambiente, como veremos na entrevista abaixo. Aqui, elas partem de suas experiências pessoais para, num bate-papo informal e de muitas mais concordâncias do que discordâncias, falar de cinema e do "fazer cinema".

Contracampo: Seria interessante se começássemos com vocês contando um pouco do caminho que as leva originalmente até o cinema, como opção de carreira e de vida.

Tata Amaral: Minha chegada ao cinema foi através da cinefilia, desde os 16 anos eu assistia uma média de 400 filmes por ano. Chegou uma hora, então, que eu quis estudar cinema. Não passei no vestibular, fiz o curso como ouvinte e comecei a trabalhar na ECA (USP) fazendo produção. Através disso, eu acabei me especializando e comecei a trabalhar fora e viver disso. Aí, dois anos depois eu e Chiquinho (Francisco César Filho) inscrevemos um projeto aqui no Prêmio Estímulo de São Paulo, que é o Poemacidade, Ele ganhou, a gente começou, tomou gosto e nunca mais parou. Abrimos uma produtora neste momento, assim que a gente ganhou o projeto, e assim foi.

Contracampo: Havia ali naquela época uma geração muito forte fazendo curta-metragem, não é? Eu não sei se você tem a mesma sensação, mas acho que o curta-metragem é, quase que por natureza, um formato onde a empolgação, a noção de ser parte de uma "galera" são coisas muito fortes. Não sei se você concorda com isso, se você acha que esta energia tem sua importância neste momento.

Tata: Eu acho, eu acho sim. No meu caso específico, isso veio um pouco da ECA. Dessa turma, eu e Chiquinho fomos os primeiros a fazer filmes fora da ECA, mas logo depois veio a Eliana Fonseca e mais uma turma. E essa turma da ECA é um pessoal que até hoje está, quase todo mundo, fazendo cinema e algumas pessoas em especial viraram meus parceiros, como o Edu Santos Mendes, editor de som, o Roberto Moreira, roteirista do Céu de Estrelas e que, aliás, é meu sócio hoje em dia, a Anna Muylaert, o Márcio Ferrari, o Fernando Bonassi (roteirista) também, e várias outras pessoas que vieram deste grupo. A gente começou a fazer curta, em seguida começou a fazer política cinematográfica na ABD, e eu acho que essa solidariedade, essa idéia de "galera" surge muito nas escolas de cinema.

Contracampo: Mas os curtas que você faz com o Chiquinho, e mesmo os de ficção mais adiante, havia neles uma preocupação forte com a questão de um certo retrato social, que certamente estava bem menos presente na maioria dos exemplos do cinema de curta da época, não?

Tata: Tinha isso sim. O História Familiar, que foi o primeiro curta de ficção que eu fiz, aí já sem o Chiquinho porque ele não se interessava em fazer ficção, era uma espécie de resposta a um cinema que se fazia na época, um cinema muito bem produzido, cheio de movimentos de câmera, de produção, e aí eu quis contar uma história entre quatro paredes com dois personagens, o que não deixa de ser o embrião um pouco do projeto do Um Céu de Estrelas. História Familiar é sobre um casal que fica assistindo televisão numa sala, isso num curta de dez minutos. Mas acho que havia alguns filmes com uma certa ênfase social e política de pessoas que nem eram desta mesma turma, me lembro aqui em São Paulo da Hilda Machado, com um curta chamado Joilson Marcou.

Contracampo: Mas depois você continua exercendo isso, tanto no longa como nos outros curtas (Viver a Vida em especial), essa idéia de uma preocupação com as pessoas, com os dramas humanos mesmo, através de uma inserção forte no meio social, não?

Tata: É, mas imagina, eu fui militante trotskista, então não tem como você esquecer esta preocupação e não pensar nos personagens como inseridos no contexto social. Eu não consigo muito. Acho que talvez o filme mais distanciado disto, mas que ao mesmo tempo não é, é mesmo o Através da Janela, que ao mesmo tempo não é nada distanciado, mas finge que é...

Contracampo: mas, vamos chamar a Lais para nossa conversa um pouco (risos)... Lais, você também começa num ambiente muito semelhante, ligado às escolas de cinema, ao curta...

Lais Bodansky: Pois é, nós estamos fazendo este bate papo bem no meio do Festival Internacional de Curtas de SP, e eu me lembro que o Festival era uma data que eu esperava, torcia para que chegasse logo todo ano. Eram duas datas, aliás: a do Festival, para poder respirar aquilo tudo, ver quem estava vindo, o que estava trazendo, o que vinha de fora; e tinha também uma vez por mês os Curtas Inéditos, no MIS.

Tata: É verdade...

Lais: E aquilo também era, para mim, um frisson maravilhoso. Saber qual era a estréia do mês, quem ia subir ali no palco e apresentar seu curta com a perna balançando... Tinha ainda a faculdade, mas isso era tudo meio que a mesma coisa, uma vivência de cinema muito gostosa e estimulante. Eu lembro que dava uma vontade enorme de você também contar uma história. Lembro de pensar "e eu, qual a história que eu quero contar?, e como esse público vai reagir?" A princípio, quando eu pensava em realizar curta-metragem, meu alcance era aquilo ali mesmo. Fazer aquela sessão, passar naquele Festival já era muito.

Contracampo: Teve um vídeo teu que passou no primeiro Encontro de Escolas de Cinema, na FAAP, em 93...

Lais: É, foi o início do Festival (Festival Brasileiro de Cinema Universitário), que agora já está em qual? No nono, não é? Foi a minha turma que realizou. Era uma época gostosa, e como a Tata disse, eu também me envolvi bastante na política, do curta em especial. E acho que me envolvendo com a política eu comecei a ter também mais consciência artística, de que filme era importante, qual era aquele momento, que história devia ser contada. Quando eu escolhi contar a história do Cartão Vermelho, meu primeiro trabalho em película, eu tinha um pouco esta preocupação de pensar que impacto aquela história poderia ter naquele contexto. De tentar não fazer o óbvio, de tentar não fazer o que já fizeram muitas vezes. Também foi pelo concurso do Prêmio Estímulo, então eu sabia que estava concorrendo com toda uma galera também desesperada por fazer seus filmes. E eu lembro que nas reuniões da ABD se discutia muito isso também: a cara dos filmes, o que é que tinha que se valorizar, se renovar, se o curta é de estreante ou não, e eu participava muito disso.

Contracampo: Mas esta fase a que vocês se referem com todo esse amor e essa energia também foi uma fase de muitas desistências de carreiras no cinema brasileiro, ou de carreiras abortadas até antes de começarem, ali no fim dos anos 80, início dos 90...

Lais: Mas o curta vinha num movimento contrário, era uma produção crescente, com qualidade e sucesso crescente...

Tata: Internacional, inclusive.

Lais: Internacional, pois é. E era daquilo que eu queria ser parte. Não era decadente, era muito legal, de decadente não tinha nada. O que era mais gostoso é que tinha essa sensação de que era uma geração que vinha fazer uma coisa contrária, onde tinha um certo hiato, um vazio, então havia das pessoas uma sensação de "o que é que é isso que está chegando?" O espaço na mídia, por exemplo, do Festival de Curtas na época era muito maior do que hoje. A cobertura, na época, da Folha, por exemplo, era diária, com matérias grandes, intensiva mesmo.Hoje eu não consigo acompanhar o Festival de Curtas pelos jornais como eu fazia na época.

Contracampo: Talvez até porque não tinha muito cinema brasileiro para se discutir nos longas...

Lais: Não tinha, pois é. Cinema brasileiro era o de curta metragem.

Tata: E havia mesmo um hiato. Um marco muito forte, que eu me lembro, foi o prêmio para o Ilha das Flores, em Berlim. Isso em 89, começa a valorização do curta pela imprensa, marca um pouco o surgimento do próprio Festival de Curtas, que era Mostra nem era Festival. Então, acho que é isso que a Lais está falando: a vida cinematográfica se resumia ao curta. Eu nem tinha vontade de fazer longa, curta para mim era o máximo. Você tinha a produção, tinha a discussão, tinha a convivência. Você tinha os meios de produção, quando eu comecei ainda tinha a Fundação do Cinema Brasileiro, que era o braço cultural da Embrafilme, o Prêmio Estímulo em SP, que era praticamente o único no país e que garantia todo ano a produção de dez, doze curtas. E esses curtas começaram a ter uma repercussão tanto dentro do Brasil quanto fora...

Contracampo: O Nelson Pereira dos Santos fez um curta há pouco tempo (Meu Compadre Zé Ketti), e aqui mesmo no Festival de Curtas ele falou como era boa a vida de curta-metragista, no sentido que você ia aos festivais só para mostrar seu curta, receber aplausos, não precisando se preocupar com tudo que envolve recepção do filme pela crítica, lançamento comercial, negociações com distribuidores e exibidores, etc. Então, pegando pela "pequena experiência" que o Nelson tem, queríamos que vocês falassem desta passagem, talvez até traumática (risos), deste universo do curta para a realização de longas.

Tata: No meu caso, eu me lembro de na semana de início de filmagens do Céu de Estrelas ter ido ver o Carlota Joaquina. E o Carlota foi um filme muito importante para o cinema brasileiro, representa um pouco o início de uma reconciliação deste divórcio que estava acontecendo. Então, eu filmei nesse clima de reconciliação, e foi um momento em que existia uma certa boa vontade com o cinema brasileiro, até porque ele tinha praticamente acabado. Estava já esgarçada aquela coisa de falar mal do cinema brasileiro, esses filmes que foram lançados ali no período Collor, de 90 a 95, foram muito prejudicados por isso. Então, eu acho que havia uma boa vontade geral em relação ao longa. Isso eu falo porque eu me sentia filmando num ambiente de alegria. Depois, mesmo na hora de lançar o filme, eu me senti muito bem vinda na cobertura que o filme teve. Inclusive pela geração mais velha, o Cacá Diegues, Nelson Pereira, o Carlão Reichenbach que escreveu uma crítica maravilhosa na revista do Espaço Unibanco, então eu me senti muito acolhida. Por outro lado, havia aquele medo: "caramba, agora tenho que entreter as pessoas por mais de uma hora!" Não é mais dez minutos, e agora... Então, esse oi o maior choque, na verdade. E, claro a gente sente a responsabilidade que é um orçamento maior - que era de R$100 mil no caso, mas era muito mais que os R$15, 20 mil dos curtas. E toda a complexidade que vem junto: foi a maior equipe com quem eu tinha trabalhado na vida, com 24 pessoas no set, então tudo era maior por mais que o filme fosse pequeno. Então eu senti mesmo esse baque, primeiro de tudo de ter que contar esta história longa...

Lais: Para mim são mundos completamente diferentes. Claro que eu trouxe da minha experiência com curta, tanto em vídeo quanto em película, muito aprendizado, e sem esta experiência seria uma outra coisa. Mas que é completamente diferente, é. O fôlego que você tem que ter, a projeção – você tem que estar aqui, mas ao mesmo tempo dois anos na frente também. Você está aqui, mas está lá ao mesmo tempo. É uma noção do todo, de muita responsabilidade. E, na primeira vez, ela dá muito frio na barriga. O Bicho foi um filme muito pensado, nas suas várias etapas. No roteiro, na filmagem, na montagem, no lançamento. E era uma coisa que a gente pensava desde o início, não uma coisa que a gente foi pensando conforme ia fazendo. Eu, diferente da Tata, quando eu fiz o curta, já pensava no longa. Eu tenho uma coisa pessoal que é que sempre me forço a fazer pelo menos um trabalho pessoal por ano. Eu trabalho, faço vídeos institucionais, trabalhava no curta das outras pessoas, mas pelo menos uma vez por ano eu penso "e o meu, qual a história que eu quero contar?"

Tata: Eu também tenho isso, nem que seja um vídeo para o Festival do Minuto... (risos)

Lais: Aí, depois que de fazer o Cartão Vermelho, a gente sempre quer dar um passo maior. Só que o passo maior, sempre custa mais dinheiro, então demora mais. Então, eu tinha na minha vida esta planejamento de querer fazer o longa, e o Bicho não aconteceu por acaso. Levamos quatro anos, de muita luta, mas estava planejado. E assim que acabamos o Cartão, começamos a pensar nisso. Eu tinha muito medo que a Lei do Audiovisual não fosse prorrogada, então eu sabia que eu tinha que fazer aquele filme logo, porque a porta podia se fechar, e se eu não passasse por aquela "frestinha", eu podia ficar, como a geração anterior, anos até fazer um filme de longa. E eu lembro que, para conseguir o dinheiro, tive momentos de chorar muito, achar que não ia dar certo...

Contracampo: O dinheiro veio como?

Lais: O filme é uma co-produção, que tem dinheiro da Lei do Audiovisual, da Riofilme, e, quando a gente já ia rodar, veio a co-produção com a Itália, pela Fabrica. Então, o longa vem da minha experiência do curta junto com o questionamento de "será que cinema é só isso dos festivais?", de "será que faz sentido trabalhar assim com o dinheiro público?", etc. Passar filmes também foi essencial, minha grande escola foi fazer o Cine Mambembe (ndt.: Projeto de exibição itinerante de filmes brasileiros em comunidades onde não havia cinemas), conhecer o público, ter proximidade com ele. O Bicho nasceu da vontade de passar na praça um filme e que o público não fosse embora, queríamos entreter e ao mesmo tempo buscar um conteúdo... Então, a gente se cobrava muitas coisas e o filme tinha que chegar nesses resultados mínimos que a gente queria.

Contracampo: Agora, como realizadoras, queríamos saber da diferença para vocês da experiência de um curta, onde você se prepara bastante para aquela semana ou poucos dias de filmagem, em relação ao trabalho no longa, onde você passa meses imerso naquela rotina bastante dura do trabalho no set, dura até mesmo fisicamente falando. Como é para vocês se manterem próximas a cada dia daquele material que vocês querem realizar, manterem a energia.

Lais: Não tem opção, né... A hora que começou você meio que "vai, meu filho..." Você respira fundo, puxa bastante ar, e vai. Eu perdi uns cinco quilos na filmagem do Bicho, eu já sou magra, mas eu vejo as fotos da filmagem e fico assustada... Mas, eu estava muito concentrada e tive muito prazer filmando, coisa que eu não tive na montagem. Lá eu tive uma depressão mesmo, eu saí da euforia da filmagem para a depressão na montagem. Porque o processo de filmagem foi uma delícia, eu contei com uma equipe muito competente. Era o meu primeiro filme, mas não era o primeiro filme do produtor, da assistente de direção, do fotógrafo, então eu tinha um monte de gente me segurando. A Inês, assistente de direção, quando eu estava fazendo o story-board, ela me disse: "Mas, Lais, você está fazendo storyboard para o teu filme por que?" E eu dizia, "não, porque tem que fazer, tem a equipe, etc", e ela me disse, "não, não TEM QUE nada, eu estou vendo que teu processo de trabalho é diferente, então não perca tempo com isso". E foram toques assim que me acalmavam, porque eu sabia que se ela estava falando, ela tinha razão, então foi este tipo de retorno que me acalmou. Tinha o Caio e o Fabiano (Gullane, produtores), que eram da minha geração de cinema da FAAP, mas que tinha muita experiência, fizeram um longa atrás do outro, e me acalmaram muito. Então, mesmo sem ter certeza se era isso ou não, eu confiava, existia uma relação de confiança.

Contracampo: E porque a montagem foi traumática?

Lais: Esta euforia e depressão eu espero que tenha acontecido no meu primeiro filme e nunca mais... (risos) Porque eu acho que tudo que você faz pela primeira vez, você gasta mais energia do que precisa. Quando você vai para o estrangeiro e fala inglês pela primeira vez, por exemplo, parece que você fez uma prova de matemática, você fica exausto, porque você usa tanto neurônio para falar "por favor, um copo d’água", e é um excesso de energia para uma coisa tão simples. Eu vejo o primeiro longa assim: um excesso de energia para uma coisa tão simples. Eu espero que no segundo eu não gaste mais tanta energia assim. Então, eu acho que a depressão na montagem foi, primeiro, porque a filmagem tinha sido um tesão. E depois eu descobri que isso é normal, que todo mundo acha na filmagem que o filme vai ficar "do cacete", e depois você quebra a cara na montagem, ou se surpreende com coisas que você não imaginava. Então a depressão veio deste susto do encontro com o material, de pensar "será que eu estou contando esta história", e eu não estava contando a história, a primeira montagem do filme era muito ruim. E não era eu quem estava dizendo isso, eram as pessoas que estavam falando, e ouvir isso é quase como levar um fora do namorado, e dói muito no coração, é muito chocante. Depois sim, você pega essa informação, levanta e vai trabalhar, você tem prazos a cumprir, então tem que mastigar o problema e seguir adiante.

Contracampo: E, cada vez mais, é um processo muito longo, não é? Montagem, edição de som, mixagem... Chega uma hora em que aquele material perde um pouco do significado inicial que ele tinha de tanto você ver e revê-lo?

Lais: Eu não me cansava não, eu devorava aquilo, queria até mais, o produtor italiano é que não deixava. Eu ainda queria mudar alguns planos no filme, que na época eu achava importante, e hoje eu já consigo olhar e dizer que nem era tão fundamental, que não era aquele plano que ia fazer a diferença do filme, mas na hora para mim era, e ele não deixava mudar de jeito nenhum. Ele foi muito taxativo mesmo que não, não queria ouvir meus argumentos, então foi uma relação muito difícil, doida mesmo, porque era diferente aqui do Brasil onde os produtores protegem muito o filme e o diretor.

Contracampo: Quem foram os produtores?

Lais: A gente chamou o Caio e o Fabiano Gullane, porque queríamos esta experiência que eles traziam dos longas recentes, eles chamaram então a Sara Silveira, como mais uma força para conseguir o dinheiro, e foi ela, então, quem trouxe a Fabrica, da Itália. E eu acho que o resultado do Bicho foi a somatória desses olhares e experiências.

Contracampo: E você, Tata, como foi a experiência do longa?

Tata: Eu acho que é sempre um desafio. É engraçado porque você falou da arte física, e para mim é um desafio físico mesmo. Em relação à disciplina, eu sou muito disciplinada e, por exemplo, eu não gosto de filmar mais do que 10 horas por dia, eu não sou uma tarada pelo set de filmagem, chega uma hora em que eu quero ir para casa, dormir, não acho mais graça. Então, eu me preparo muito para poder ter o máximo de controle e no momento da filmagem, até para poder chegar lá e improvisar. E como eu tenho uma formação de produtora, ara mim é muito fácil pensar em termos de produção, eu sei muito bem quanto tempo leva para iluminar uma sala, e então eu já vou fazendo a equação, de quanto temo eu tenho com o ator porque aquela cena não está muito legal... Mas, cada um do seu jeito, o set de filmagem é muito desgastante, por mais que você trabalhe dez horas cravadas. Por mais que você prepare, que esteja tudo fluindo numa boa, é muito desgastante. Eu, quando fazia os curtas, eu me preparava fisicamente, fazia academia durante a preparação, porque eu fumo para caramba, então eu não posso marcar, né? E agora eu não parei, eu não posso parar porque você emenda uma coisa na outra, e tem essa coisa de preparo físico mesmo. É importante chegar de noite e dormir. Eu, principalmente no último filme, eu chegava tão acelerada que eu não dormia, e esse para mim é o pior problema, físico. E isso porque eu sou calma! (risos) Então, você imagina com alguém nervoso, irritado, estourado... Isso porque os meus sets, e até onde eu sei os da Lais também são assim, são tranqüilos, sem stress, a gente pára para tomar chá, depois da filmagem eu vou ao cinema, mas ainda assim aquilo é uma loucura. Uma vez, eu estava por acaso em Los Angeles, e li numa revista uma matéria sobre profissões estressantes: a primeira era piloto de avião, e a segunda era diretor de cinema. O cirurgião cardiovascular estava em quarto ou quinto, e ele está com a vida de uma pessoa nas mãos! (risos) Então, eu acho que a gente tem que se preparar, porque essa é minha vida, eu quero filmar por muitos anos... embora eu já tenha começado a escrever, caso eu não aguente... (risos)

Lais: Eu percebo isso, outro dia eu pensei: "Gente, é uma profissão de jovem!"

Tata: Eu acho que um Manoel de Oliveira, um Bergman nos seus 60, 70 anos, adquirem um outro ritmo com a experiência... Eu acho que tem que ser zen-budista, inclusive eu comecei a fazer meditação zen-budista. (risos)

Contracampo: Agora falando um pouco de dramaturgia, ambas estrearam em longas com adaptações de textos de outras fontes, e seria legal falar como vocês trabalharam este processo de tornar suas estas obras. Isso porque falávamos deste desejo no curta de se colocar contra um certo tipo de produção, então eu queria ver como foi para vocês passar estes textos para suas próprias idéias de estética e narrativa.

Lais: No meu caso, eu tinha uma idéia anterior que eu não conseguia desenvolver. Eu acho que eu tinha medo, e penso que ainda bem, porque agora eu estou tentando retomar essa idéia e acho que com a experiência do Bicho isso vai ser melhor. É uma idéia original e isso para mim ainda é um mistério, você mesmo fazer um argumento e montar esta espinha dorsal, para mim, ainda é um mistério. Antes do Bicho eu ate tinha me interessado por uma peça de teatro, mas eu não consegui os direitos – e não tinha nada a ver com o Bicho, seria uma outra trajetória e as pessoas iam me olhar com uma outra cara. E o Bicho veio pela emoção, pura emoção pela realidade que eu estava descobrindo. Eu estava num grupo de pesquisa num documentário do Roberto D’Ávila, e nela eu fui descobrir a realidade manicomial, e viajei e tive contato com várias pessoas e li vários livros, inclusive o do Carrano. Quando eu li o livro dele, eu pensei "isso aqui é muito forte". O tema já me deixava emocionada, e eu achava que pedia um filme de ficção, um grito maior. E quando eu li o livro, foi aquela certeza: é isso. Eu preciso contar ESTA história. É uma certeza absoluta. E eu tinha total consciência de que ia ser uma estrada difícil, longa, então eu precisava de uma história que eu quisesse contar com tanta vontade que me fizesse agüentar essa maratona. Talvez uma história mais frouxa, aquela minha idéia inicial, eu não fosse agüentar, eu ia desistir no meio. Porque o limite de desistir, nossa, estava muito perto.

Tata: Isso é muito forte mesmo, o desejo de contar uma história.

Contracampo:: E vocês sabem o que motiva isto? Porque a Lais falou deste caso da realidade manicomial, mas o filme tem muito também a questão do jovem, do conflito de geração, das relações entre pais e filhos...

Lais: No livro tinha menos isso...

Contracampo: Então, o que queremos saber é o que faz, especialmente no caso de uma obra anterior escrita por outra pessoa, o que naquele material faz você, não apenas gostar, mas pensar "essa história também é minha..."

Lais: É como uma música que você gosta...

Tata: Em relação ao livro do Fernando (Bonassi), eu tive um movimento em direção a ele, até por causa desta coisa de nunca ter querido fazer um longa... O Fernando lançou o livro em 93, e desde que ele lançou, ele dizia que queria que eu adaptasse, o que eu só fui fazer em 96. Então, o material ficou ali pelo menos dois anos olhando para mim, até que chegou o momento em que eu tive que realmente criar a minha relação com aquela história. E ela não era muito clara, tinham coisas ali que eu queria explorar, então eu tive que chegar a uma forma: eu disse para mim mesma que eu queria filmar o desespero, me interessava fazer aquele filme daquela maneira. A partir daí é que eu fui atrás de como fazê-la. Fernando mesmo adaptou, mas não era do jeito que eu queria porque não tinha o personagem feminino, o que no livro funcionava mas no cinema não. Aí eu trabalhei com uma outra roteirista, essa história ficou um pouco mais distendida, eu quis fechar entre quatro paredes... Então a história não era bem a história do livro, e sim uma história que eu queria contra através da história do livro e de uma determinada maneira. Eu tinha muito claro que eu estava armando uma cilada para mim, que era fazer este filme com dois personagens trancados entre quatro paredes. Mas eu gosto de brincar com fogo, de brincar comigo mesma, com limites. O desafio me estimulava, e o desafio era esse: funciona se eu contar esta história sem recursos "cinematográficos"? O pós-modernismo no cinema me influenciou muito, a geração anterior com o Sérgio Toledo, o Chico Botelho, os planos maravilhosos, a cidade, os travellings, a máquina no cinema, Wim Wenders... Esse era o cinema emergente quando eu comecei a ver que existia um cinema brasileiro, paulista, a ver que rolava. Na ECA, era Deus no céu e Wim Wenders na terra. E todos eles produziam este cinema muito visual, e eu estava indo para o lado oposto, que era um cinema de história, de personagens, onde eu me negava esta relação visual. Eu queria saber se eu era capaz de contar uma história de dois personagens trancados numa casa, de fazer cinema com isso. Tinha esse desejo de escrever com a câmera. De uma maneira muito particular e adequada.

Contracampo: E o trabalho com os atores? O cinema destes filmes de vocês depende muito dos atores em todos os sentidos. E os atores falam muitas vezes de quão sofrido pode ser o processo do cinema para eles, comparado ao do teatro, um processo onde eles atuam em pequenas doses, muitas vezes fora de ordem, feito de muitas esperas, em meio a toda aquela equipe... Como vocês lidam com isso?

Tata: Eu me toquei bastante rápido que, dois atores dentro de uma casa, ia ser preciso o trabalho com o ator... (risos)

Contracampo: E você estudou especificamente para isso, para dirigir os atores?

Tata: Não, eu chamei a Ligia Cortez, que é minha amiga, que fez seu primeiro filme como atriz no meu primeiro filme de ficção. Ela faz teatro e a gente usou um processo de teatro, no qual acredito até hoje. Na época, não era normal chamar os atores, sentar na mesa, ler, grifar, interpretar, sentir, ficamos trabalhando três meses. Aí, às tantas a gente começou a levantar as cenas, a Ligia tinha um espaço porque ela é diretora de uma escola de teatro, então a gente ia lá para trabalhar, antes teve a escolha dos atores da qual ela participou também. Então, rapidamente eu me dei conta que era alguma coisa a que eu tinha que me dedicar. E no Através da Janela foi a mesma coisa, a gente trabalhou muito tempo antes. Eu acho que o teatro ainda é o grande manancial de técnica de direção de atores. No meu caso, principalmente no Através da Janela, eu estava buscando um tipo de registro que é o da representação, que é dois "stops" além do realismo. A ênfase é na construção do gesto, e para isso eu me preparei. Eu sempre tenho, na verdade, uns projetos estéticos que eu estou a fim de investigar, e eu invento uns filmes para fazer.

Contracampo: E no teu caso, Lais, tem um detalhe interessante que fica evidenciado naquela histórica sessão do filme no Festival de Brasília onde a platéia vaiava o Rodrigo Santoro mesmo antes do filme, e depois acabou ovacionando a atuação dele. Foi forte esta aposta num ator que era visto só como um "golpe de marketing" acreditando na capacidade dele construir este personagem tão complicado. Como você trabalhou com os atores, no geral?

Lais: No meu trabalho com os atores, apesar de eu não ter feito um filme como o da Tata com dois atores e uma casa, eu sempre soube que o filme só funcionaria se eu conseguisse um excelente trabalho de interpretações, não só com o personagem central, mas todos os outros também. Porque eu estava lidando com uma realidade muito delicada, onde eu sabia que eu poderia facilmente cair no estereótipo, na caricatura, e aí eu perdia a verdade, perdia o impacto que eu teria com o público. Isso porque eu sabia que mesmo uma pessoa que nunca tivesse entrado num manicômio, ela ia assistir ao filme e ia saber se aquilo funcionava de verdade ou não. O espectador é muito crítico, por mais que ele possa dizer que não é cinéfilo e tal, ele está vivo, ele está aqui, ele sabe o tempo em que uma pessoa respira. Então, mesmo que ele não consiga verbalizar, ele percebe o que não é verdadeiro. E era um filme que, desde o início, eu me preocupei com a preparação dos atores. Eu procurei uma pessoa, o Sérgio Penna, para fazer toda essa preparação, a gente desenhou esta preparação, também com muita antecedência, e foram várias etapas que a gente foi cumprindo, e o elenco inteiro não fez o mesmo trabalho. Uma parte fez um trabalho, uma outra fez outro e num certo momento misturou tudo, num outro misturamos ator com equipe técnica para palestras, então a gente fez um desenho para chegarmos lá. Foi o primeiro longa do Penna, depois ele já fez vários, e a experiência dele era de teatro. E, de fato, o processo de preparação dos atores no Bicho foi um processo teatral. Teatral não no sentido do tipo da interpretação, e sim nos exercícios, na busca dos personagens, bebendo mesmo na fonte teatral. Não tinha um rigor quanto a qual escola estávamos seguindo, mas muitos jogos teatrais da experiência do próprio Penna. É interessante porque a gente se encontrou essa semana e ele me disse que muitas das coisas que ele começou no Bicho ele continuou fazendo em outros trabalhos. Ele me mostrou uma das coisas que a gente fazia, que era um gráfico, e aí ele fez agora o filme deSandy e Junior, e me mostrou o gráfico do Rodrigo e agora o da Sandy. E eu achei legal porque era um outro gráfico, mas era o que ele inventou no Bicho. Um gráfico de evolução da emoção, do personagem. Que era fundamental, e ajudou por exemlo com esta coisa do "atuar picotado". Eu tinha medo, porque eu pensava "como é que eu vou fazer", eu tinha um personagem que vivemil peripécias, que tem que recuperar muitas emoções, às vezes radicais como o eletrochoque, mas às vezes mais cotidianas, e ao mesmo tempo o tempo inteiro ali, pulsando. Então a preparação nos deu base para todo mundo chegar no set sabendo o que tinha de fazer. Era apenas aquecer o ator, e vinha a cena, porque a gente já tinha modulado tudo.

Contracampo: Este ponto é especialmente delicado no Um Céu de Estrelas porque a história se passa num crescendo que é quase um "tempo real", não?

Tata: Para resolver isso, que para mim também era uma questão, eu filmei na ordem. O filme começa de dia e termina à noite, e como se passa numa só locação eu filmei praticamente, com pouquíssimas exceções, na ordem. Porque eu não tinha essa consciência de "onde é que o bicho vai pegar". Tanto que o bicho pegou em um lugar que eu mesma não estava esperando, na verdade dois planos depois de onde eu estava esperando, sabe como é? Tinha um clímax que eu sabia onde era, ali quando a Dalva coloca a mão no pau do Vitor, enquanto eles estão dançando, mas já tinha a cena com a água que era para arrefecer. E eu achava que o bicho ia pegar no soco, tanto que eu dosei a briga do Vitor com a Dalva, anterior. Nos ensaios, eles estavam fazendo bem mais intensa, até para poder pegar o gancho para depois, e eu dei uma seguradinha porque tinha o soco. Mas tendo o soco, para mim o bicho pega não no soco, nem no plano do Vitor arrastando a mãe para o banheiro, mas quando a Dalva diz "aonde é que isso vai parar, aonde é que isso vai parar?" E aí, quando eu filmei a cena, eu me perguntei: aonde vai parar? Porque ficou com alguns "stops" a mais, por conta da própria atriz e da cena. Porque tinha uma outra coisa: eu não queria revelar o corredor a não ser neste plano, mesmo quando eu descobri essa locação. O Jacob (câmera), o Hugo (fotógrafo) diziam "vamos fazer um plano mostrando o corredor", e eu insistia que não porque este corredor não podia existir até ele ser útil narrativamente, que é o momento em que o Vitor arrasta a mãe até o banheiro. E ele arrasta a mãe, e depois a Dalva vem correndo em direção à câmera. Então o bicho pega por causa da atriz, mas também porque a câmera passa a atuar, de uma maneira muito mais contundente, ela pulsa, ela se aproxima da Dalva, ela se afasta, ela perde o foco, ela recupera o foco, então é por isso que eu senti esta intensidade muito maior do que eu mesma esperava. E aí eu pensei "agora não tem volta, agora eu tenho que ir daqui para cima", sem parar. Quer dizer, tem o momento em que a Dalva senta na sala, vê o objeto azul, isso estava pontuado desde o roteiro, mas não da maneira como aconteceu. Na verdade eu tive que segurar muito mais o tempo na cena com o objeto azul, a tensão depois na cena do café foi muito mais contida, exatamente por causa deste eco ao revés.

Contracampo: Mudando um pouco o foco, queríamos que vocês falassem do momento depois de terminar os filmes. São sejam quantos anos forem para terminar o filme com todo este processo que vocês descreveram, e aí ele está pronto para ser exposto às feras, sejam os críticos, o público, as primeiras pessoas que vão ver. Como vocês vivem esta experiência de mostrar algo que para você é tão caro e passa a ter sua presença para o mundo? Esta exposição quase como "aqui estou eu".

Lais: No caso do Bicho, eu achava que o filme não funcionava. "Fiz o que eu tinha que fazer, dei o melhor de mim, estão todos de parabéns..." (risos) Então eu estava preparada para o público dizer "OK, legal, primeiro filme...", meu emocional estava assim. Então, a primeira sessão, que foi no Rio de Janeiro, no Festival do Rio, foi uma surpresa muito grande. Fazer esta sessão pública pela primeira vez,mesmo sendo uma sessão que tinha amigos, os atores, mas não era em São Paulo, era no Rio, então era neutro, e a reação foi muito positiva, um presente enorme. E dali para a frente eu lembro de sentir "agora sim, tem que exibir!" E aí foi a batalha de como fazer ele chegar ao público, e no caso do longa é sempre complicadíssimo. A gente queria ou fazer um trabalho como o da Carla Camurati, colocando debaixo do braço para exibir, e até estávamos preparados para fazer isso, mas aí a gente conseguiu que a Columbia pegasse o filme e fizesse com que ele tivesse mais entrada na sala do exibidor. Porque o difícil é fazer o exibidor pegar o teu filme, porque se você chega lá com ele debaixo do braço, ele não tem vaga. Então com a Columbia a gente conseguiu uma janela, o que foi fundamental. Não que a gente tenha parado de trabalhar, a gente tinha uma equipe de lançamento que trabalhava em conjunto com a Columbia, fazendo um corpo a corpo que a gente chamou de guerrilha mesmo.

Contracampo: E e um trabalho que você fazia com prazer? Porque nem todos os cineastas gostam ou se sentem preparados para o tempo e a quantidade de trabalho que vem após o filme pronto.

Lais: O maior prazer. Fiquei um ano na função do lançamento, dedicada, viajando, dando entrevistas, indo a debates. Porque eu sabia que não fazia sentido tudo isso sem esta parte. E não adiantava a gente entregar só para a Columbia, porque ela às vezes lança filmes, que são bons, mas ela não lança bem. E a Columbia, das grandes distribuidoras que lançam filmes brasileiros, é a que melhor sabe fazer isso, pelo menos nos dias de hoje.

Contracampo: E para você, Tata, como é "expor o filho"?

Tata: Tem isso de expor o filho, mas para mim tem uma exposição maior que é durante as filmagens... Eu não fico tão ligada na coisa da exposição desde o início, eu fico mais no barato de fazer. Porque a cena na hora da realização tem uma assistência, né? Tem o fotógrafo, eu mesma não corto por causa da captação do som, eu corto só com um sinal para o assistente de câmera. Então, para mim a exposição do filme já começa ali, com aquela energia de filmar a cena, e ver se ela vai pegar ou não. Para mim, ali já é um "feedback" de se o filme está funcionando ou não com as pessoas envolvidas. Depois ainda tem a montagem... Eu, no Céu de Estrelas, ficava impressionada na montagem, na edição de som, tinha momentos em que eu não queria ver, dizia "vou lá fumar um cigarro e já volto"... eu fico muito emocionada. Mas, claro, tem o momento da primeira exibição, que no Céu de Estrelas, coincidiu com a primeira vez que eu vi o filme no telão. Eu não tinha visto porque o filme foi inteiro processado em Nova York, porque por incrível que pareça era mais barato que aqui, na época. Então eu peguei a lata numa conexão em Nova York e fui para Toronto, e a primeira sessão foi para a imprensa, lá. E eu estava lá vendo o filme junto com as pessoas, avaliando o resultado, e aquelas pessoas com aquele sotaque... (risos) Depois eu saí da sessão, e fiquei ouvindo os comentários, meio que tentando pegar no inglês o que falavam. E começaram as primeiras sinalizações. Lembro que teve um cara que saiu e me disse que era um "day-after film", que na hora ele não conseguia estabelecer posição, e eu acho que acaba que o filme é isso mesmo.

Lais: Que pesadelo, você ali ouvindo essas primeiras opiniões sem entender tudo e tendo visto o filme pela primeira vez...

Tata: pois é... E depois teve uma sessão onde foram os brasileiros que estavam em Toronto e eu lembro que a Zita (Carvalhosa) também disse que não conseguia se posiciona de primeira sobre o filme, e foi o cacá Diegues e o Marco Altberg, em solidariedade, acho que me proteger mesmo, aquela brasileirinha estreando lá... Deois de um tempo é que as pessoas vieram comentar mesmo. Me lembro que nesta primeira sessão tinha um debate depois do filme, ali em pé na frente do cinema. Aí, me chamaram, eu fui lá na frente, deram o debate como aberto, e ficou aquele silêncio, nada... Depois de um tempo, encerraram assim o debate e me lembro de pensar "que fiasco, acabou mesmo." Mas depois eu fui ver que as pessoas que vinham falar estavam realmente impressionadas, tinha muito também aquele papo chato de "meu Deus, as coisas no Brasil são assim" e tal... Mas ali eu vi que o filme era meio um divisor de águas mesmo.

Contracampo: E aí tem a estréia mesmo no Brasil, no Festival de Brasília, né?

Tata: É, mas aí já tinha uma certa expectativa em torno do filme, não lembro bem porquê... Ele passou antes na Mostra Rio, quando ainda não era competitiva e algumas pessoas tinham visto o filme. E em Brasília foi o mesmo divisor, tinham os que aplaudiam e vaiavam, com o mesmo entusiasmo, uma guerra de sons. Mas o filme teve uma acolhida muito legal da crítica, e depois foi para Berlim, Biarritz, onde ganhou um prêmio, e aí a coisa pegou de vez...

Contracampo: Agora a gente queria comentar com vocês uma coisa interessante até mesmo por vocês estarem juntas aqui neste bate papo. Nós escolhemos vocês porque queríamos ter um papo entre duas pessoas da geração mais jovem, com trabalhos consistentes, e que, claro que por razões nossas de produção, precisavam estar na mesma cidade. Mas o fato é que, embora não tenha sido o motivo de nossa escolha, os nomes de vocês podem vir juntos mais vezes por representarem duas idéias sobre cinema que eu quero saber de vocês se acham que têm de fato algum sentido ou significado por si mesmas: "cinema paulista" (diferente ou especial dentro de um cinema brasileiro) e o "cinema de mulheres", ou "feminino".

Lais: Olha, eu acho que o cinema paulista tem uma cara sim, mesmo que os filmes não sejam iguais. Tem a ver, eu acho, com aquilo mesmo que já falamos sobre geração, como a Tata falou, de um cinema que negue uma linguagem mais elaborada e tão visual. É natural, eu acho que uma geração negue a outra, e que pessoas que tenham coisas em comum façam trabalhos juntos, então eu, a Tata, o Beto Brant, a Lili Caffé, acho que viemos todos mais ou menos do mesmo lugar, e um acaba influenciando o outro. Por exemplo, eu chamei o Hugo Kovensky para fazer a foto do meu filme depois de ver o trabalho dele no filme da Tata. Então eu acho que vem daí, das discussões, da época do curta, de um ver o trabalho do outro e ir se inspirando, traz um pouco essa cara. Mas eu tenho um ouço de dificuldade de falar desta coisa de "cinema feminino", não tenho muitas certezas sobre isso não. Não enxergo isso nos filmes, talvez seja mais fácil de diagnosticar por alguém vendo eles de fora. Acho que vejo com mais clareza esta particularidade do cinema paulista do que falarmos de um cinema feminino.

Contracampo: Nós começamos falando um pouco, e você mencionou agora de novo, isso de fazer um cinema "contra" alguma coisa que vinha antes. Você acha que o cinema vive hoje no Brasil um momento em que se coloca mais este tipo de posição nas telas do que antes, você acha que este cinema "social" por assim dizer está se cristalizando?

Lais: Acho difícil falar do momento em que se está vivendo, mas eu acho que o momento tem deixado algumas certezas. O Cidade de Deus, por exemplo, que é um filme do qual eu gosto, uma das coisas mais bacanas é que ele provou que não é preciso ter artista famosos para dar certo, que ali importava mais o processo, o trabalho com os atores não profissionais. Então, acho que se valorizou ali o cuidado, a atenção. Não precisa ter só o ator global, embora ainda precise sim ter a mídia da Globo para vender o filme. Também acho que estão vindo cinemas de fora do eixo Rio-SP, o que é ótimo e estes cinemas estão nos influenciando e nós temos que estar muito atentos a ele.

Contracampo: E a questão da relação com o público? Te parece que no Brasil isto é uma certa assombração que persegue os cineasta, esta questão do filme ser popular ou ser distante do público, esta necessidade de traçar limites e separações tão radicais entre as coisas?

Lais: Eu acho que esta preocupação é a mesma em todos os lugares, na verdade. Cada filme tem que atingir o objetivo dele mesmo. Eu acho, inclusive, da experiência dos festivais lá fora, que a concorrência lá é mais feroz e cruel do que aqui. A gente vê as pessoas se devorando, brigando de foice por um espaço na mídia, um financiamento... Eu fiquei com a impressão que talvez lá fora eu não tivesse feito meu primeiro longa...

Tata: Por outro lado, na França, na Espanha, você tem uma série de programas voltados justamente para os estreantes... Eu acho que o problema é menos da relação com o público e mais do padrão estabelecido. Essa idéia de que qualquer filme visto por menos de 500.000 pessoas não presta, especialmente agora com o Cidade de Deus, o Carandiru... nem todo filme vai fazer 3 milhões de espectadores mesmo, e não tem nada de errado com isso. Alguns vão ser visto por 50.000 pessoas mesmo...

Contracampo: E podem mudar a vida desta 50.000...

Tata: Exatamente.

Lais: E também tem o seguinte: o filme não se paga só na bilheteria do cinema, tem que desmistificar isso, ele continua muito depois. Claro que o lançamento do cinema alavanca todo o resto, mas hoje tem que se pensar no vídeo, no DVD, na TV. A matemática financeira do cinema hoje tem que ser vista como um todo. E, como a Tata disse, estes grandes públicos dos filmes mais bem sucedidos não podem ser a meta única. Nenhuma indústria, muito menos a americana, vive só dos grandes sucessos, dos estouros, estes são sempre a exceção. O que vale mesmo é o filme médio.

Contracampo: Bom, para terminar, queríamos saber quais são os seus próximos projetos, no que estão envolvidas atualmente.

Lais: Eu estou desenvolvendo o argumento do meu próximo roteiro, já dei o "start" neste processo. É uma história original, desta vez, e já tenho certeza de que é a que eu quero contar agora, mas por enquanto só tenho a base, falta construir em cima dela, ver aonde vai dar. É a idéia que eu tinha anterior ao Bicho, que retomo agora.

Entrevista feita por Daniel Caetano e Eduardo Valente.
Transcrição de Eduardo Valente.