Hernani Heffner e João Luiz Vieira


Numa conversa desenrolada na cabine de projeção (era o local da cinemateca do MAM mais reservado e silencioso para a gravação do encontro), Contracampo se reuniu com João Luiz Vieira e Hernani Heffner. Uma conversa que englobou a revisão do passado (do cinema e da questão da escola de cinema no Brasil, em particular a Universidade Federal Fluminense), a avaliação do presente e a indagação sobre o futuro, com a sala de cinema do MAM, que era ornamentada para uma cerimônia de formatura que ocorreria na parte da noite, fazendo o pano de fundo assaz emblemático desse encontro.

Luiz Carlos Oliveira Jr: Apesar do formato não acadêmico da revista, e do fato da sua fase embrionária não ter tido vínculo direto com a escola de cinema, em primeiro lugar gostaríamos de colocar que, numa edição comemorativa de cinco anos de Contracampo, realizar essa conversa com vocês é até uma questão de fazer uma certa justiça, tendo em vista que uma boa parcela da redação, uns oito de nós, acredito, passou por vocês em algum momento e deve muito da sua formação àquelas aulas. No meu caso, posso dizer, a aula de vocês certamente contribui muito, até para o fato de eu estar na Contracampo hoje. Então a gente queria aproveitar essa junção de histórias, da revista com vocês na UFF, para abordar a questão do ensino de cinema, como se dá e o que representa esse ensino.

Hernani Heffner: A pergunta é bem ampla... Deixa eu falar uma coisa que acho importante: você está fazendo uma associação, que acho que tem uma razão de ser, a partir de uma revista específica, a Contracampo, que conta com um grupo de redatores que em sua maioria teve uma relação com a universidade, no caso específico da UFF, e que provém de uma geração que está realizando uma série de atividades que estão interconectadas por algumas mudanças que o país sofreu. A primeira grande mudança é que o perfil do alunado de cinema mudou muito da minha época para os anos 90, quando vocês passaram para a universidade. A relação que vocês desenvolveram com a universidade é uma relação que eu chamaria de muito mais participativa do que a que existia até então. Não só participativa no sentido de querer fazer coisas, mas participativa no sentido até de trazer uma bagagem cultural, uma bagagem cinematográfica que resultou num debate melhor dentro da universidade, dentro dos cursos, resultou numa troca de informações e reflexões que foram bem mais amplas e orientadas do que o que ocorria até então, e que começou a abrir um leque importante não só para o ensino de cinema, mas para a renovação do cinema, que é a discussão sobre para que serve a reflexão. Analisar filmes, gostar de filmes, tentar fazer filmes serve exatamente para quê, se encaixa onde, se conecta com o quê? As discussões travadas em sala de aula imediatamente resultavam num querer fazer que não encontrava canais de fruição, de experimentação, de simplesmente tornar concreto um pensamento, um sentimento, uma idéia... e que levou a geração que hoje, digamos, basicamente representada na Contracampo e em algumas outras revistas eletrônicas (esse fenômeno não é só carioca e niteroiense, é um fenômeno mais geral, ocorre em São Paulo, por exemplo, com a Sinopse), a buscar essas janelas de aproximação com um público que não era mais um público só da universidade, não eram os pares. Isso foi outra grande sacação de vocês: fazer cinema, falar sobre cinema, pensar sobre cinema, refletir sobre cinema não é alguma coisa que deveria ficar restrita aos iniciados. Pelo contrário: tinha que ir para fora, tinha que sair pro social, que tinha que sair pra comunidade. Nisso vocês encontram um momento histórico relativamente propício. Por um lado o cinema brasileiro tinha sofrido as questões todas da era Collor, então ele procurava realmente se reorganizar, e nessa reorganização foi necessário repensar algumas questões, entre elas justamente a carência de reflexão teórica que existia no país e existiu de uma forma muito profunda nos anos 80. Então era necessário discutir as coisas, discutir os filmes, discutir os problemas. Por outro lado vocês encontram um momento histórico em que a internet no Brasil realmente se torna uma coisa de fato, e você não enfrenta as dificuldades que as gerações anteriores enfrentaram que era a questão de recursos, de uma edição impressa, que se fazia no mimeógrafo, ou xerox, enfim, tinha lá uma série de restrições que a internet não tem. A internet não é gratuita, mas é um recurso muito barato, de fácil expansão, o texto pode ser infinito dentro da realidade virtual, e ela é um meio muito rápido, de troca de informações muita rápida, de agregação muito rápida. A geração de vocês, que experimentou a construção disso, que se formou com intimidade em relação aos mecanismos, teve uma ação rápida em direção a esse meio como uma forma de solucionar determinadas questões. Isso propiciou um início muito tímido de uma página aqui, uma revista que era sempre provisória ali, mas no momento em que ganhou consistência fluiu, deslanchou. Você tinha um conjunto de pessoas com perfil historicamente diferenciado, uma necessidade da comunidade cinematográfica de pensar, uma necessidade do jovem de pensar e atuar dentro da comunidade cinematográfica (atuar num sentido mais amplo de não só fazer o filme, porque fazer o filme não tinha sido suficiente nos momentos anteriores) e havia essa ferramenta disponível que ampliava consideravelmente o espectro de atuação de qualquer tipo de iniciativa. Isso calhou também com alguns aspectos que, acredito, foram se modificando um pouco mais lentamente, mas foram se modificando dentro da própria universidade, em particular dentro da UFF, que é a universidade com o curso de cinema mais antigo aqui do estado. Não tenho tantas informações porque minha chegada na UFF como professor foi na verdade um tanto tardia, em 2000. Mas eu já percebia de fora que havia uma série de mudanças ocorrendo dentro da universidade, dentro do curso, que sinalizavam que ele estava se tornando um curso mais dinâmico, mais intenso, e até certo ponto um curso que estava começando a se renovar. Renovar seus métodos de produção, renovar suas temáticas, renovar suas ambições. O ponto mais visível desse processo é o Festival Universitário, que, se não me engano, fez oito anos, ou seja, surgiu justamente no ponto em que essas coisas começam a se agregar, a se aglutinar, a ganhar uma cara, isto é, meados dos anos 90. Mas não é só o Festival Universitário: há o LIA, que é o Laboratório de Investigação Audiovisual, há uma série de professores se qualificando com mestrado, doutorado e pós-doutorado ao longo dos anos 90, há uma série de professores novos entrando para a escola, quer dizer, um dinamismo muito maior do que o existente no passado. Há a criação da pós-graduação... Você tem inclusive uma produção intelectual, que começa a se avolumar dentro da escola, voltada à área de cinema, ou audiovisual, numa maneira mais ampla. Nesse sentido, a escola começou a ser um pólo de atração, um pólo de reflexão e um pólo de discussão muito grande, com um sentido, que acho que vem do alunado, muito ativo de fazer as coisas: descobre alguma coisa, reflete sobre aquela coisa, quer imediatamente colocar em prática. Embora a Contracampo não seja resultado direto disso, pois a iniciativa não surgiu relacionada diretamente com a UFF, o fato de vocês terem oito redatores que se relacionaram com a universidade carrega um pouco desse contexto para dentro da revista e isso de alguma maneira gera alguns aspectos que refletem esse processo. Um outro ponto é que a relação que uma revista de cinema tem com o ensino é sempre uma relação umbilical: o ensino é, em grande parte, reflexão, pelo menos da maneira como eu penso, e uma revista de cinema é na verdade um espaço para você fixar a reflexão. Então era mais do que natural que uma revista de cinema acolhesse membros egressos da universidade, porque infelizmente hoje no Brasil a reflexão intelectual está muito restrita à academia, ela já não tem mais aquele movimento do passado, do livre pensador, quase não existe mais essa figura. É quase obrigatório que os quadros de uma revista de cinema saiam de uma universidade. Mas diferentemente do que se poderia esperar, no caso específico da Contracampo, a revista não tem um tom acadêmico, ela fugiu desse perfil e das conseqüências desse perfil, que é de restringir ainda mais o seu público. E ela buscou uma inserção, ou uma filiação, que tem uma longa tradição na área cinematográfica, fora e dentro do Brasil, que é o entusiasmado por cinema, aquele cara que quer falar de cinema não importa qual seja o jeito. Não há restrições, do tipo “só pode falar desse jeito...”: nada de restrições. Ela inclusive se filia à grande tradição das revistas de cinema: Cahiers, Positif, Screen, Sight & Sound, Filme Cultura aqui no Brasil, etc, que é simplesmente abrir espaço para um pensamento mais cotidiano: entrou um filme em cartaz, vamos lá ver qual a primeira impressão que surge ao ver esse filme. E abrir espaço para discutir temas mais de fundo, ou que vamos chamar de fundo: examinar a questão da crítica, do ensino, da preservação etc. Ela de alguma maneira tenta, de tempos em tempos, reunir um conjunto de conhecimentos e sistematizar esses conhecimentos, questionar qual o estado de um tema num determinado momento. Ela agrega grande parte de seus redatores vindos da universidade, mas sem incorporar o perfil universitário tradicional, e nesse sentido cumpre aquela idéia original de ampliar o público, ir para além dos muros da área cinematográfica, ter um diálogo com uma comunidade, se não uma comunidade genérica, ao menos uma que seja intelectual, artística etc. Não sei exatamente qual é o grau de penetração da Contracampo, mas acredito que ultrapasse muito o universo restrito do cinema, porque a gente conta nos dedos quais são as pessoas da comunidade cinematográfica. Acho que tem um pouco essa relação, mas isso é uma impressão, não é um dado fundamentado.

João Luiz Vieira: O que eu queria lembrar é que, também numa espécie de retrospectiva, no dia 12 de setembro agora o Cine Art UFF faz 35 anos. Um momento também de avaliação. Vocês estão falando de cinco anos, e eu de 35... Mas coincide, tem um ponto muito convergente aí, pois lá no projeto inicial do cinema, e vocês terão acesso a isso porque vai sair um livro reproduzindo o primeiro programa do Cine Art UFF, está lá a previsão, exatamente a partir de exibições no cinema, não só da criação do curso de cinema, aquilo ali foi o seu embrião, mas exatamente de utilizar o cinema nesse lado de extensão: é um cinema muito mais voltado para o público de fora do que para o público interno. Ele está localizado na praia de Icaraí, então seu público é o da cidade de Niterói e, por extensão, daqui do Rio. Vai muita gente daqui do Rio para lá. Na origem do cinema, então, essa visão muito clara da inserção do cinema dentro de um meio social maior está presente lá atrás. Além da questão da educação, da formação de um público interno, tem uma consciência muito grande do papel do cinema, e claro que teria de ter, porque a gente está falando de 68, quando o papel do cinema tinha uma outra agenda, talvez muito maior do que essa que está sendo falada aqui. Muito mais ambiciosa, num certo sentido. Eu me vinculo a isso primeiro como aluno, porque participei dessas sessões de 68 até o final do ano, fui fazer o primeiro vestibular em dezembro de 68 e entrei na primeira turma de março de 69. Quando volto à minha inserção como professor, que data de 81, já tem 22 anos, essa consciência está desenvolvida do ponto de vista pedagógico num outro sentido, que é de repente você se dar conta de que é um curso de cinema basicamente voltado para a produção, digamos que ainda hoje seja, talvez bem mais nuançado, como o Hernani colocou, mas digamos que o pessoal que entra no vestibular ainda tenha a intenção primeira de se tornar diretor, de fazer um filme, de ser um autor. A gente sente que ainda tem muito disso, a questão do artista... Uma consciência que vem aí, nesse momento de 81, é se dar conta de que na formação de cinema a questão da realização em si é apenas um dos múltiplos aspectos nos quais o cinema se insere. Falo de formação mesmo. Então por que um aluno de cinema primeiro tem que ser só diretor? Por que ele tem que ir à aula só para fazer filme? São questões que íamos levantando. Por que isso, quando no campo profissional você tem dezenas de outras atividades, não, acho que está um pouco exagerado, mas muitas outras atividades que não signifiquem apenas a realização cinematográfica?

LCOJr: Até porque uma faculdade voltada para a realização seria um pouco incongruente com a realidade do que é o fazer cinematográfico no Brasil.

JLV: Exatamente. E o que acontece, Luiz, é que tem um momento muito importante ali quando duas coisas ocorrem: primeiro que no mesmo mês em que entro para dar aula morre o Glauber Rocha, em agosto de 81. E ao longo da década de 70, principalmente a partir de 72, 73, as atividades do cinema, que lá no início eram ligadas com essa origem do curso, por questões de repressão política que vêm com o AI-5, aqueles primeiros anos da década de 70 foram muito duros, vocês sabem, e o aspecto revolucionário que o cinema tinha não era evidentemente bem visto pelo regime militar. O cinema era censurado, era uma atividade bastante suspeita. Cinema era coisa de comunista, por exemplo. Durante algum tempo, ao longo dos anos 70, houve um corte, uma ruptura entre o departamento, o corpo docente e o corpo discente e as atividades de cinema. Primeiro porque foram afastadas fisicamente: o curso de cinema, que começou ali em cima do cinema, no início dos anos 70 foi mudado, sofreu um corte geográfico. Era rigorosamente em cima do Cine Art UFF, no primeiro andar, a gente tinha aula ali. Tinha uma proximidade muito grande com a gráfica universitária, que era lá atrás. Havia um projeto, em 69, chamado bolsa-escola, em que a gente fazia cartazes de filmes para o cinema. Eu lembro que fiz cartaz de Deus e o Diabo na Terra do Sol, imagina. Os alunos faziam isso também. Era uma coisa muito ligada mesmo, e nos 70 isso já é interrompido. Quando eu entro em 81 acontece a morte de Glauber e, também por iniciativa de alunos, isso é importante, a gente resolve criar um evento chamado Ciclo de Estudos Glauber Rocha. Ele morreu em agosto e isso foi em outubro, foi muito em cima, uma coisa muito bem feita, onde por causa da questão do Glauber, e de seu nome, a gente forçou a barra e foi reentrando no cinema, reconquistando o espaço do cinema. Por trás disso tem uma questão pedagógica que é essa consciência: o aluno de cinema precisa ter também, além da questão da formação prática, o campo aberto exatamente nessas áreas de pesquisa, de história, de crítica, de teoria. Pelo menos nessas quatro áreas. E é o trabalho que se oferece dentro de um espaço como esse aqui, repara como agora vocês estão com aquele projeto do cineclube no Odeon, aqui na cinemateca do MAM tem o Tela Brasilis... Essa idéia de ter um local onde você experimente com formas de exibição, de formação de público, de espaço para veiculação de produção de vocês, através de notas para o público, da realização de debates, seminários... Quer dizer, o cinema ganha uma visão que ultrapassa em muito a da questão prática da realização. Voltando à revisão: o Ciclo de Estudos Glauber Rocha foi um momento privilegiado de reentrada no cinema, isso foi apoiado na época por um diretor do Centro de Estudos Gerais, que era o professor José Raimundo Martins Romeu, que logo virou reitor, no ano seguinte. O evento foi um grande sucesso, a primeira retrospectiva de Glauber, a menos de dois meses da morte dele, exibindo material que nunca tinha sido exibido no Brasil: por exemplo, a pré-estréia no Brasil de História do Brasil foi feita na UFF, algo que eu relembrei agora num texto que sairá num livro que vão publicar por causa dos 35 anos. Era uma sessão que tive de assistir com um censor de Niterói, assisti ao lado dele numa quarta-feira chuvosa, pela manhã, eu passando História do Brasil e explicando para ele que era um filme muito didático, e que vinha ao encontro do interesse pedagógico-educacional do Ministério da Educação... [risos] Esse evento trouxe uma visibilidade muito grande para a universidade, certamente para o curso, e daí para frente eu acho que é história mesmo. Durante pelo menos quatro anos o cinema ficou como uma espécie de catalisador desse tipo de energia, que ultrapassa essa história da produção de filme, e os alunos começaram a programar o cinema, a realizar mostras, a fazer folhetos para o público. Às vezes, muito trabalho de aula era aproveitado na edição de material para distribuir ao público. A coisa se abriu muito. O Hernani estava falando de coisas importantes aqui, como essa relação do cinema com a sociedade: é isso, acho que veio uma consciência muito grande dessa amplitude do trabalho em cinema, que ultrapassa a questão da realização prática. A gente está falando da primeira metade dos anos 80, e aqui temos a Contracampo, que é um fenômeno resultado já dos anos 90, de um novo momento, mas ali na primeira metade dos anos 80 passaram pessoas que estão, por exemplo, na origem do Estação Botafogo, o Marcelo Mendes, a Ilda Santiago, são pessoas que vêm dessa passagem dos anos 80. A experiência intensa de atividades dentro do Cine Art UFF gerou uma publicação chamada Cinematographos, eram textos soltos distribuídos num envelope muito bonitinho, com o nome da revista. Saíram uns quatro ou cinco números, não tenho certeza. A revista era vendida e distribuída também. Essas coisas têm uma história. Hoje a gente está falando da Contracampo na sua versão eletrônica. O Hernani lembrou da época do mimeógrafo. Esse impulso, essa energia vai se transformando, mas ela está presente ao longo desses 35 anos.

HH: Mas eu vejo uma grande diferença, João, no caso da Cinematographos. Meu primeiro texto sobre cinema foi publicado lá, mas num número que acabou não saindo. [risos] É lógico que as pessoas que procuravam um curso de cinema nos anos 70, até mesmo nos 80, em grande parte eles queriam ser diretores e em grande parte eles refletiam um pouco a ideologia do cinema de autor. Mas, diferentemente da origem dessa ideologia, onde o cinema refletindo as idéias, os projetos e a visão de mundo do realizador estava casado com a reflexão teórica/estética, de acompanhamento mesmo da evolução do meio, no Brasil dos 70 e 80, momento em que eu inclusive fui aluno, isso já não existia. Havia o impulso de querer ser o autor, mas não havia a construção em si mesmo, e através da escola, do que fosse ser um autor. Isso tinha se apartado. E a falta de volume de reflexão que existe nos 80 e 70, do ponto de vista da universidade, eu acho que reflete essa separação. Uma das características que envolve a reflexão que surgiu nos anos 90 é que ela em parte é desenvolvida por pessoas que querem fazer filmes. São muito poucos aqueles que definem um perfil de que “eu vou ser só um crítico, eu vou ser só uma pessoa que trabalha a reflexão, as idéias...”, a maioria quer trabalhar com cinema, fazer filmes como diretor, fotógrafo, técnico de som etc. Voltou-se à idéia original: não há como desenvolver uma atividade de natureza artística sem uma reflexão sobre essa atividade. Esse resgate dessa premissa, que é uma premissa, na verdade, da arte ao longo da sua história, não é uma premissa cinematográfica nem é alguma coisa ligada ao universo do cinema de autor tal como a gente o entende, ou seja, a Europa do final dos anos 50 e início dos anos 60. Na verdade, os grandes movimentos artísticos sempre estiveram colados a uma grande reflexão pelos artistas. Uma das características particulares do ensino de cinema no Brasil, não estou falando só da UFF e sim de uma maneira geral, diferentemente da Europa, onde você até podia ter a pretensão de ser diretor, mas entrava na escola de cinema e a escola se encarregava de dizer "você não sabe ainda o que vai ser, vai passar por todas as áreas e num segundo momento é que vai ter de se definir", e vai se definir com a ajuda do corpo docente, que dirá que você tem mais talento com isso, se deu melhor nisso, pode vir a aprofundar determinadas questões nessa área etc; no Brasil, em grande parte os cursos de cinema são voltados para a realização. Não é nem a questão da produção, é da realização mesmo. A maior parte dos alunos almeja dirigir o filme na metade ou no final do curso. Não há uma construção pedagógica do que seja a atividade em si. Tanto que cadeiras que examinavam outras situações em cinema, como a crítica, a legislação, filosofia da coisa, teoria da coisa, foram cadeiras muito enfraquecidas e não transformavam seu conteúdo numa atividade concreta. Isso só reforçava o lado produtor dos cursos de cinema. Há um problema filosófico, do ponto de vista de como é montado um curso de cinema, como é estruturado e como trabalha as expectativas e os potenciais dos alunos. Nesse sentido é que falei que a iniciativa partiu muito mais dos alunos que propriamente do curso, que ainda reflete em grande parte esse momento que o cinema de autor construiu lá no passado. O resgate que se dá hoje à questão da reflexão sobre cinema ainda é em grande parte ligado a essa premissa. Não se dá mais da mesma forma, até porque o Brasil passou por uma situação em que a formação do público se tornou quase que fundamental. O cinema brasileiro teve uma dificuldade tão grande de permanecer junto ao público brasileiro que a partir de um determinado momento, meados dos anos 80 até a atualidade, a formação de um público está na base de quase toda iniciativa na área de exibição, quer ela seja um cineclube quer ela seja um cinema formal, tradicional. Aqui ganha uma série de nuances que não existem na Europa, por exemplo. Mas são questões que estão afinadas, que estão aproximadas, que mantêm um contato. E a gente precisaria na verdade refletir um pouco sobre como essa reflexão se dá e como ela parte de dentro da universidade, em que medida ela sai da universidade. João salientou a questão da teoria: na verdade você não faz cinema sem teoria, uma teoria própria que seja. Ninguém faz uma atividade qualquer artística sem saber exatamente que aspectos quer trabalhar, que aspectos pode inovar, que resultados pode obter, levando em consideração o público ou não. E em grande parte isso falta no Brasil, existe uma carência enorme de você trabalhar essas questões em relação à própria realização, simplesmente outros pontos de vista em relação à atividade. A própria realização tem uma carência quase que absoluta disso. Enquanto nós temos um Glauber que, à semelhança dos autores clássicos de cinema, um Renoir, um Rossellini, um Eisenstein etc, teve uma produção de textos colossal, refletia basicamente sobre tudo que passava na frente dele, tudo que ele vivenciava, tudo que ele experimentava em cinema, isso é um fato quase que isolado no Brasil. A tradição brasileira não é textual. Se você pegar o Nelson Pereira dos Santos e for reunir os escritos dele sobre cinema não dá um livro.

JLV: Não dá meio livro.

HH: Não é demérito para ele. Um grande cineasta, mas não há essa base, essa tradição dentro do cinema brasileiro. E isso tem conseqüências. Se a escola de cinema já é voltada para a realização em si, quer dizer, basta se instrumentalizar a pessoa para lidar com o meio que ela saberá fazer, até saberá... Ela não tem uma tradição da própria história do cinema brasileiro que leve os membros de sua comunidade a refletir sobre o seu fazer, as suas proposições, as suas idéias etc. E há aquele velho problema de se aproximar os resultados da atividade de um público, mesmo o público propriamente cinematográfico, que basicamente hoje entra em contato com o cinema nos festivais. O mais absurdo no Brasil é que você só veja filme brasileiro em festival. Acho que já tem mais de trezentos festivais no Brasil. Nada contra, mas acho que o caminho não é exatamente esse. O público que não é da comunidade cinematográfica, que não pode acompanhar os festivais, ele tem um acesso ao resultado da atividade cinematográfica brasileira muito pequeno, 10 %, 15 %, se tanto, de tudo que é feito. E ele vai para dentro dessa produção completamente desarmado. Ou ia, pelo menos até bem pouco tempo, completamente desarmado. Já que a grande imprensa não trata mais de uma reflexão propriamente dita em relação à arte, acho que há mais de vinte anos isso não tem espaço nem em jornal nem em revista nem em outra coisa, e aí o público tem que lidar diretamente com a obra sem um mínimo de informação de onde veio aquilo, quais são as idéias que estão ali por trás, como aquela linguagem é ou deixa de ser, se é nova ou não é, enfim, uma grande dificuldade de enquadrar as obras, enquadrar a construção histórica por trás delas etc, que é justamente o papel da reflexão, o papel do autor e de quem está à volta dele registrando o percurso de seu trabalho: o papel da crítica, o papel da academia, que não é só docência, é pesquisa também. A área de pesquisa dentro da academia deveria estar voltada para essa reflexão. Uma coisa concomitante ao processo do ressurgimento das revistas de cinema no Brasil nos anos 90 é a Socine. A Socine também surge como uma iniciativa que vem de uma carência, as pessoas não se comunicavam, não sabiam o que estavam fazendo, não havia divulgação, não se olhava uma publicação nem eletrônica nem impressa nem nada, e você desconhecia o tamanho da área. Quantas pessoas estudam cinema, pesquisam cinema no Brasil? Essas várias constatações dos vários membros da comunidade cinematográfica levam a esse impulso de preencher as lacunas, de ampliar o campo de reflexão, de unir os vários campos, e que parte do pressuposto de que a teoria tem sim uma influência enorme sobre o fazer, de que o fazer é sempre um processo dialético entre pensar e experimentar. Às vezes pensar antes e experimentar depois, às vezes experimentar antes e pensar depois. O trabalho em si de fazer cinema, de fazer audiovisual, se alimentaria desse processo. Você tem esse processo do ponto de vista formal na universidade em si e na comunidade cinematográfica, você tem esse processo do ponto de vista informal numa revista eletrônica de cinema de pessoas que estejam ou não ligadas à área formalmente, porque não há nenhuma obrigação nesse sentido. O que há de certa forma, pela minha percepção muito particular da área cinematográfica, é que ela realmente verificou essa carência e resolveu inverter o processo. Você não verifica isso em relação a outras áreas artísticas no Brasil. Não há uma presença teórica tão grande assim, há até uma dificuldade às vezes muito maior de, por exemplo, fazer uma história do teatro brasileiro do que de fazer uma história do cinema brasileiro. Não que ambas tenham muitos volumes publicados por aí: têm poucos, na verdade. Mas você verifica essa dificuldade no teatro, que tem uma tradição relativamente importante e impactante, que tem uma estratégia de público que o cinema em princípio tem, pois se dirige para a sociedade e para a comunidade de uma maneira geral, mas que não encontra uma reflexão mais ampla e influente sobre o fazer teatral atual. As referências continuam sendo as mesmas lá dos anos 60: Oficina, Arena... Não há um pensador teatral influente nos dias de hoje. Enquanto que em cinema, mal ou bem, você tem ainda alguém que arrisca um manifesto, vai lá o Eryk Rocha e escreve contra o “cinema novinho”, alguém que vai lá e questiona a crítica que está atuando por aí, como a Contracampo fez, ou seja, a área cinematográfica desenvolve uma tentativa de intervenção um pouco maior e de debate mais amplo, que não vejo em outras áreas, ou pelo menos na área artística. Na área da cultura isso existe em determinados campos, alguns até bastante influentes, há figuras como Roberto Schwarz, Marilena Chauí etc, etc, que carreiam esse bloco de discussão e reflexão, mas não na área propriamente artística, o que é um problema. O Brasil, apesar de todos os senões, ainda é um país que produz muita arte, até vinda das classes populares, inclusive em cinema, haja visto os exemplos recentes, seja o Brazza em Brasília, os meninos lá em Cascavel, interior do Paraná, filmes de terror em Sergipe, Rio Grande do Sul etc. A gente tende a olhar com uma certa condescendência, de forma graciosa, mas isso significa uma expressão popular que precisaria no mínimo ser refletida, para não dizer estudada. E se isso ocorre em cinema, ou seja, você tem desde um cinema altamente sofisticado, Walter Salles, Luiz Fernando Carvalho etc, você também tem o outro lado, e os dois carecem de público, espaço e reflexão. Você vê hoje muito mais, por exemplo, o L.F. Carvalho escrever regularmente sobre filmes, sobre a atividade, do que você via um diretor da década de 80 em relação ao mesmo assunto. As pessoas estão se expondo, querem colocar suas idéias à prova, sem ver nisso nenhum tipo de demérito pessoal nem ser imolado no fogo ou qualquer coisa do gênero, como se as palavras queimassem concretamente. Elas queimam, mas não vão consumir o sujeito por completo. Isso também tem um pouco de reflexo em você perder o medo do processo, um medo que obviamente nasceu lá na ditadura, quando o que você falasse podia ter conseqüências. Mas acho que a academia acabou adotando um modelo que incentivava esse processo, o que teve conseqüências em relação à falta de reflexão na atividade em si. A maior parte dos criadores de cinema no Brasil é até certo ponto exagerada, porque você não tem um mínimo de parâmetros para saber exatamente o que o cara quer dizer com aquilo. Os próprios artistas dizem: “não vou explicar minha obra”. Não se trata de explicar a obra, mas de inseri-la em alguma tradição, contexto, ruptura. Não é falar sobre a obra, é falar dele, sobre as idéias dele, sobre o que pensa que é cinema, por exemplo. As reflexões de Tarkovski sobre cinema se reúnem num livro. Não há como fazer isso em relação aos cineastas brasileiros. Pela primeira vez na história existe uma quantidade bastante grande de pessoas fazendo cinema que são egressas das universidades, algo inteiramente novo e que de alguma maneira vai ter reflexo lá na frente. De alguma maneira, o modelo acadêmico é sempre um modelo mais rígido, mais definido, que implica botar coisas no papel, e isso acabará tendo alguma conseqüência. Talvez se mude o paradigma em relação à reflexão sobre si mesmo.

JLV: Acho que isso já está começando. Retomando o que falamos mais para trás, a entrada de professores novos com interesses diferenciados está trazendo essa riqueza para a escola. Não sei se pela consciência da própria dificuldade de trabalho profissional na realização. Isso faz com que outras frentes de trabalho necessariamente se abram. Essa geração de vocês está sendo em muito levada a isso. Num certo esgotamento e afunilamento de possibilidades profissionais, você não pode mais ser só um realizador. Já era difícil, acho que nunca foi possível ser só um realizador. Mas vá lá que num passado recente você poderia se dedicar a ser um autor. Acho difícil, mas digamos que você poderia. Hoje em dia não dá mais para ser assim, você não pode ser apenas uma coisa só. A ampliação do corpo de professores, portanto, é importante, assim como essa busca de outros trabalhos, por mais que haja um lado negativo da pessoa ser levada a isso às vezes por falta de opção. Acho importante a abertura de espaços culturais, o que é um fenômeno dos anos 90. Por exemplo, o CCBB tem 12 anos, é da década que estamos comentando aqui de renovação desse panorama. Pensemos no CCBB, e no que ele permitiu através de convênios e da realização de cursos conjuntos, através de homenagens a um realizador como Walter Lima, ou Bressane, ou Arthur Omar, ou de repente com um tema, como a questão do sertão, que foi deste ano. Esse convênio também possibilitou a ampliação desses espaços e nos obrigou a um novo trabalho de formação, a se dar conta de que é um espaço que não se pode perder, que junta o público da universidade com o público que vem de fora, porque esses cursos são abertos à comunidade, e tudo isso dá uma dimensão da riqueza aí envolvida. É ruim ficar citando nomes, mas pegando o exemplo de um perfil de aluno recente que combine um pouco isso eu citaria o Eduardo Valente, que está na Contracampo, é desse grupo, e é um aluno que se formou, fez um filme, está ligado a esse lado de produção da escola, conseguiu realizar um filme de méritos reconhecidos, mas também nunca abandonou essa preocupação pela pesquisa, pelo entendimento do que faz, dessa relação de teoria com prática. A gente costuma dizer que não tem nada mais prático do que uma boa teoria. E vice-versa, talvez. E o Eduardo está na origem da Contracampo também, ou quase na origem, agitando essa comunicação nova pela internet. Então há uma série de fatores que dão um perfil novo como apontado pelo Hernani.

HH: Essa idéia do aluno que se preocupa com a reflexão na verdade traduz um perfil muito particular, e hoje relativamente difícil, por isso eu disse que o alunado dos anos 90 tinha uma característica distintiva. Se o Serge Daney fala que até a geração do Godard todo mundo sabia tudo, tinha vivido na prática toda a história do cinema, caso não tivesse nascido em 1900 bastava sentar na cinemateca francesa e assistir a tudo que tinha sido feito de 1895 até quando o sujeito nasceu, para as gerações atuais isso é praticamente impossível. Essas gerações mais novas têm uma voracidade em relação ao cinema, de uma maneira geral, que é bem impressionante. Mas, ao contrário da idéia de que você não precisa tanto assim desse passado, ou do volume que esse passado representa, tampouco precisa de um olhar abrangente, e sim de um olhar seletivo proporcionado pela universidade. Não deveria ser assim, não é mais assim fora do Brasil. Não sei se vocês têm consciência disso. Eu aqui na Cinemateca tenho o privilégio de receber alunos do exterior, seja para trabalhos de conclusão de graduação, seja para pós-graduação, pesquisa etc, e eu fico perguntando como é, como não é... Os caras não vêem necessidade de ter uma visão geral e completa da evolução da história do cinema. O cara está interessado, por exemplo, no cinema japonês dos anos 60, então estuda aquilo. Como é, aliás, em qualquer área hoje em dia, dentro ou fora da universidade: se o cara está em literatura espanhol do século XVIII ele estuda aquilo, não sabe nada de literatura espanhol do século XX e não interessa saber. Esse perfil natural que veio um pouco do processo de especialização que tomou o mundo a partir dos anos 70, quando os americanos o inventaram, e que na visão do Daney tinha chegado ao cinema naquele momento e destruído aquele universo mitológico que todos viam vinte e quatro horas por dia em todas as suas dimensões, não construiu no Brasil nos tempos recentes um perfil para a pessoa que se interessa por cinema, não só o aluno, mas qualquer pessoa, de uma idéia específica de cinema, uma especialização na sua visão de cinema. As pessoas continuam querendo saber tudo: do início, dos primeiros tempos, do auge do cinema clássico narrativo, dos cinemas novos, da atualidade, querem dominar o processo histórico, o que, devemos considerar, é algo realmente muito complicado. Hoje o volume é absolutamente avassalador. Isso pode provocar uma deformação grande, uma leitura completamente enviesada dessa história, mas por outro lado pode render também uma coisa muito interessante: dessa leitura enviesada você sai com novas idéias, novas visões, novos processos. E acho isso curioso de ocorrer no Brasil. Pode ser um certo romantismo? Claro, para ter uma relação autêntica com o cinema é preciso saber o que é cinema: esse é o lado do romantismo. Mas ao mesmo tempo tem seu lado de necessidade: o cinema brasileiro é um cinema precário, que vive momentos bons e momentos ruins, que não consegue se institucionalizar em nenhum nível da sociedade, como atividade pública junto à intelectualidade, como reflexão, como criação mesmo... Apesar de tudo que foi feito pelo cinema novo, hoje em dia em termos sociais o cinema brasileiro é quase como se não existisse, não tem uma presença marcante dentro da sociedade, que na prática o ignora. Mas através desse perfil você pode reconstruir um pouco uma presença e até mesmo uma intervenção, que ao fim e ao cabo é o que todo mundo busca, tornar-se significativo pelo que se fala, pelo que se coloca, pelas imagens que se cria, não importa exatamente um certo valor artístico.

Fernando Verissimo: Eu lembro, por exemplo, que todo marketing em cima do Carandiru era como se assistir ao filme fosse um dever cívico, na realidade, uma obrigação. Para você, a partir do filme, fazer uma reflexão sobre um outro problema qualquer da sociedade, quer dizer, foi vendido com uma função que qualquer novela do Manoel Carlos também cumpre.

LCOJr: Merchandising social.

HH: Uma construção da idéia do filme brasileiro que é no fundo equivocada. Por isso que nos tornamos um gênero, por isso que estamos guetizados... porque a gente não apresenta o verdadeiro conteúdo para o público. Estou vendendo o quê? Uma emoção, uma expectativa, uma idéia? Se não somos claros em relação a isso, se vendemos um dever cívico que transferimos para o outro, como obrigação, as coisas ficam difíceis.

JLV: Ainda mais num momento de intensa competitividade. Mas voltando à primeira pergunta, ao panorama histórico que de certo modo estamos fazendo, eu queria lembrar da instituição do projeto experimental na escola como requisição de conclusão de curso. Isso é recente, de 1986. Além da questão da realização, foi instituído também o projeto de monografia, que chamei de projeto experimental: desenvolver redação, raciocínio, aprender esses mecanismos básicos de estruturação de um trabalho de conclusão de curso. Não era obrigado pelo MEC, alguns cursos adotaram e outros não. Nós adotamos. Isso deu uma guinada para essa área, junto com a entrada de novos professores. Não havia tradição do aluno escrever nem trabalho monográfico. Um ou outro professor pedia. Hoje isso está disseminado. Outra coisa que queria lembrar também, sobre essa questão da formação colocada pelo Hernani, de uma certa defasagem nossa, acho que faz bem para nós o aluno ainda querer um entendimento maior, ao contrário de uma especialização que notamos lá fora. Me surpreende muito, por exemplo, quando você fala de John Ford e Buñuel, alunos ingleses acharem que conhecê-los não tem a menor importância. É surpreendente um aluno que está lá fazendo um filme de conclusão de curso em 35mm não ter assistido, por exemplo, a Rastros de Ódio, e não querer assistir. E a gente ainda está mantendo isso, apesar de - falo do meu ponto de vista de professor - exatamente pelo estrangulamento de oportunidades e por um lado muito perverso e mau dessa agressiva competitividade que a geração de vocês está enfrentando, noto que os alunos estão querendo queimar etapas de maneira muito rápida. Qualquer coisa que você faça já tem de ser aquele trabalho, aquele filme que vai ganhar de preferência o prêmio de Cannes e vai ser para a vida toda. Isso é um lado muito ruim, que sinto como professor. Até entendo, mas é extremamente doloroso ver a geração de vocês sofrendo isso quando o aprendizado é queimar etapas, vocês talvez saibam disso também. Mas acho que está todo mundo sendo levado a tentar fazer sua obra definitiva ali.

LCOJr: Num filme de conclusão de um curso universitário... A pessoa às vezes teve trinta idéias e quis colocá-las todas num filme de dez minutos.

JLV: É preciso ter cuidado com essa história, de repente repensar a formação universitária, a escola como um espaço de experimentação mesmo, de ousadia, a gente vê que isso está cada vez mais difícil.

HH: Tornou-se definitivo. Você inclusive tem de emitir um juízo ao final daquele produto, daquele trabalho, daquele texto, daquele filme. E às vezes isso é um processo de maturação, para determinados indivíduos, tão lento... tem gente que fica vinte anos para chegar ao primeiro filme real, aquele filme de convicção: sei o que estou fazendo, sei onde quero chegar. Os vinte anteriores eram o processo de maturação. E é no sentido positivo: chegar ou não chegar é irrelevante. O importante é viver o processo, cada um vai ter uma percepção muito particular disso.

FV: Isso é uma coisa que você vê até nos filmes de estréia, de um modo geral. Algo que apontei na época do Anos 90: 9 Questões foi o fato de todo mundo estar meio que condenando a uma síndrome do filme único. Ou você mata a pau e conquista o seu espaço com aquele filme, ou nada vai fazer. O próprio Amarelo Manga, embora tenha belos momentos e se permita experimentar em alguns momentos, é um filme que parece atirar para todos os lados, meio que para gritar, chamar a atenção para si mesmo. E o projeto, até onde sei, partindo de Texas Hotel, é um projeto meio fechado em si mesmo, um projeto ensimesmado. A partir dali não consigo imaginar nada além de variações em torno daquele mesmo tema. Fica complicado, o cara parece que tem que acertar de primeira.

LCOJr: E você vê muito no discurso dos realizadores que terminam o primeiro longa uma coisa do tipo “já posso morrer, gritei ao mundo o que estava entalado”.

JLV: É uma exigência, uma auto-cobrança.

LCOJr: Um desejo de cinema estranho, se você for ver bem...

HH: Mas em parte explicável pelo fato de que o Brasil criar uma tradição que faz com que ele saiba que talvez nunca mais faça um filme.

LCOJr: Sim, pode ser que daqui a cinco anos o cinema no Brasil fique escasso de novo, acabe como atividade...

HH: E isso é particularmente pesado para as gerações recentes. Nos anos 80, 28 pessoas fizeram seu primeiro longa. Dessas 28, menos de dez conseguiram ingressar no segundo longa na década seguinte. E a maioria não conseguiu fazer mais do que dois ou três longas. Ao contrário, por exemplo, de uma pessoa que foi muito cobrada nos anos 80, o Jorge Furtado, que sabiamente recusou esse processo.

LCOJr: Soube aguardar.

HH: Não sei nem se soube aguardar, ele simplesmente recusou o processo. Teve oportunidades, várias, mas recusou. Quando foi fazer, fez partindo das premissas dele, foi coerente com ele mesmo. E você pode discutir se o filme é bom ou ruim etc, mas é coerente com o processo de trabalho dele, com o processo de criação dele, que acabou por conseguir fazer dois filmes em um ano. O problema não é fazer: o problema consiste em como aquilo entra na sua vida e como aquilo insere você socialmente. Essa idéia de que “fiz meu primeiro filme, posso morrer” significa “acertei minhas contas com a sociedade, agora ninguém me cobra mais nada”, é como se fosse isso.

LCOJr: E é possível que o filme nem seja visto, que nem represente uma espécie de catarse social, que nem traga esse lado, muitas vezes. Na maioria, para falar a verdade.

HH: Claro. São poucos os filmes que na verdade acontecem socialmente.

JLV: E nada é definitivo... nem o primeiro nem o vigésimo terceiro serão o filme. Quem determina isso?

HH: Na prática, nada. Mas psicologicamente ele se convence disso.

LCOJr: É compreensível psicologicamente.

HH: É uma coisa complicada. Nos anos 90 mais de 50 pessoas ingressaram no longa-metragem.

LCOJr: Aliás, foi curioso você citar o número dos anos 80, os 28 estreantes, porque a edição 52 da Contracampo, que acaba de sair do ar para a entrada dessa edição presente dos 5 anos, traz justamente um dicionário da retomada. São 114 nomes: o parâmetro foi longa-metragem de estréia, em película, após Carlota Joaquina.

HH: Impressionante: praticamente todos os filmes que foram feitos eram filmes de estréia.

JLV: É realmente impressionante.

LCOJr: Poucos deles já passaram para o segundo filme. Com exceção de um Beto Brant da vida...

JLV: A Tata Amaral...

LCOJr: Há nomes dando continuidade, mas a maioria estreou um filme.

JLV: E essa é a geração de que estamos falando aqui: gente egressa das universidades.

Estevão Garcia: Beto Brant, Laís Bodansky... esses fizeram universidade.

HH: E aí você imagina que quem fazia cinema nos anos 60, 70 e 80 não está mais aí... Na prática, esse número que você fornece diz que eles não existem mais, saíram de cena. O que pressupõe uma lógica terrível: os anos 80 saíram de cena nos anos 90, os anos 90 vão sair de cena na primeira década do século XXI? Será que o processo é esse e o medo que é gerado tem um fundamento real?

Gravadores desligados, iniciativa de ir embora já tomada, eis que novos assuntos interessantes surgiram. Na hora a conversa fluiu de maneira bem informal e não houve preocupação em fazer grandes anotações. Mas à guisa de não deixar passar alguns belos apontamentos então suscitados, aqui se traçará uma espécie de resumo. A conversa recomeçou quando Fernando Veríssimo lembrou de um dado relativo à geração anos 90 que consiste em trazer uma certa bagagem, não só uma paixão de cinefilia, mas também uma cultura de cinefilia mais forte que a das outras gerações, um dado apoiado pelas micro-revoluções tecnológicas: o videocassete, a própria internet... O indivíduo que abraça essa maior facilidade de acesso a filmes (antigos, novos, clássicos, modernos...) e começa a construir uma espécie de cinemateca particular, imaginária, auxiliado pelas tais micro-revoluções tecnológicas, passa a enxergar na universidade de cinema duas coisas: primeiro, o que permite acesso aos meios de produção, ou pelo menos permitia até um certo tempo atrás, ou seja, o único lugar de onde a pessoa com uma certa cultura cinéfila poderia sair tendo feito um filme, porque fora dali seria impossível; em segundo lugar, a universidade seria um meio de dividir esse conhecimento, de buscar o conhecimento dos outros, e de sistematizar esse conhecimento dentro de uma certa lógica definida. Uma outra questão que se insinua a partir dessa reflexão diz respeito à facilidade imensa de acesso aos próprios meios de produção, e à divulgação desses meios através da internet, por exemplo, ou de exibições públicas. Estando em Belo Horizonte recentemente, Fernando assistiu a uma exibição de um curta estreante, algo que a Associação Curta Minas faz semanalmente. O curta exibido era um vídeo praticamente caseiro, de alunos de jornalismo, feito com trezentos reais. Há um momento atual, portanto, a partir do qual essa reflexão, essa cultura de cinefilia já vai desembocar direto numa produção e ser veiculada em qualquer espaço, a partir do atalho introduzido por um meio (o vídeo digital) facilmente manipulável. A universidade pode, então, se libertar do ensino técnico para se concentrar na reflexão teórica? Que perspectivas surgem no ensino de cinema por intermédio dessa re-situação? João Luiz não hesitou em dizer que era uma questão importante, que se abatia sobre o próprio estatuto do cinema e até da arte, de forma mais ampla. Ao assistir a Piratas do Caribe, por exemplo, incomodou-lhe bastante, como vem acontecendo com certa freqüência, o fato do Cinemascope ser mera convenção de exibição, uma vez que a composição do filme é toda voltada para sua posterior veiculação em televisão, DVD ou VHS. No fundo, existem dois filmes sendo feitos simultaneamente, um para cada meio. E há as conseqüências sobre a própria linguagem: o filme tem um grau de apelo pela atenção do espectador que no cinema seria dispensável, mas que se explica pelo fato de ter sido pensado, também, para um espaço com tela reduzida, barulho da vizinhança, desatenções do cotidiano, enfim, para a telinha - só que o filme continua indo primeiro para a telona... Hernani lembrou que o discurso por trás desta história da revolução digital foi importado sem maiores reflexões. Que a história se estende há mais de vinte anos e que até agora não vimos nenhuma revolução de fato. Falando sobre o ensino hoje e não amanhã, de como os cursos estrangeiros não aboliram a projeção em película em favor do vídeo etc, ele afirmou a universidade como espaço de aglutinação de pessoas com interesses em comum, acima da questão tecnológica (de chegar para fazer um filme). Sobre perspectivas para o futuro do ensino de cinema, a relação tecnologia-estética passa pela velha pergunta “o que é arte?”. O que fazer com os meios? Faculdade é para instrumentalizar e mostrar o modo correto ou para apresentar os meios (mas sem limitar suas possibilidades) e instigar a reflexão? Em suma, colocações e questionamentos que ainda fizeram parte do encontro e que de maneira alguma podiam ser negligenciados.

Transcrição e textos: Luiz Carlos Oliveira Jr.
Revisão: Fernando Verissimo