O filme que Buñuel roubou de mim

O Anjo Exterminador, de Luis Buñuel
(
El Angel Exterminador, México, 1962)

Não sei como entrar no texto. Começos são sempre difíceis. Não sei como entrar no texto. Começos são sempre difíceis. A vida passa e nosso gosto muda muito, decepções geram mudanças de postura. Que geram dores lombares. Que me dão uma baita fome. Não sei como entrar no texto. Quero penetrar minha indignação na arrogância daquela garota. E dormir tranquilo enquanto o ônibus ganha asas. Repetições. Frases sem sentido. Pulsão maliciosa e obscena. Buñuel baixou em mim.

Lembro de um amigo, para quem Luis Buñuel era Deus, que me dizia que eu só seria considerado cinéfilo de verdade depois de amar o cinema do mestre espanhol. Eu mal entendia o porquê de tanta admiração, chegava mesmo a lamentar o comportamento patético de meu amigo. Apesar do aviso, comecei a ler sobre o diretor e, aos poucos, fui conhecendo parte de sua obra. Aprendi a admirar sua rebeldia iconoclasta, a descobrir similaridades entre sua maneira de ver o mundo e a minha. Quando vi O Anjo Exterminador pensei comigo mesmo: filme da minha vida, daria um braço para tê-lo feito. Passei a considerar Buñuel um dos grandes. Um cineasta-filósofo que não se contentava com a versão oficial dos fatos, com a ordem natural das coisas. O aragonês que se alinhou aos surrealistas possuía uma verve humorística que primava pela acidez nos ataques à burguesia e pela morbidez irreverente frente à igreja católica.

Bom, tudo isso é chavão, mas foi o que pensei na época. Após algumas revisões, sendo que entre a penúltima revisão e a última passaram-se pelo menos dez anos, o filme adquire novos contornos, torna-se claramente pornográfico. Algo que eu apenas intuia naquele tempo, revela-se agora escancarado. Existe sempre uma forte pulsão sexual prestes a explodir em cada personagem buñueliano. Em O Anjo Exterminador, essa pulsão explode de tal maneira que em determinado momento não nos assustamos mais com menções à conquista de uma moça virgem ou a promiscuidade dos convidados. Em uma cena exemplar, o anfitrião lamenta o comportamento promíscuo dos convivas sem perceber que seu amigo seduz sua esposa à sua frente.

Além da transgressão sexual, Buñuel nos coloca no centro da degradação moral que se instala. Sentimo-nos participantes do confinamento, mesmo que existam cortes para os que estão fora da casa, na expectativa de alguma libertação. Para o diretor, essa degradação é apenas fruto da queda das cascas que insistem em esconder o lado instintivo (humano?) das pessoas. Há uma habilidade assustadora em abordar uma situação limítrofe, e expor seus personagens às provações que lhes eram proibidas pelo status social por eles alcançado. Ou seja, deparamos-nos com pessoas outrora distintas (ou limitadas por suas posições sociais), que confinadas durante dias, vêem extinguidos todos os seus freios morais. Nada mais importa, tudo é permitido. O adultério passa a ser às claras. As antipatias não são mais escondidas. Os desejos sexuais vêm à tona. É a aristocracia perdendo a máscara. E Buñuel diverte-se.

Truffaut dizia achar que Buñuel desprezava as pessoas mas achava a vida divertida. Penso que Buñuel, no fundo, achava tudo muito divertido. E divertia-se até mesmo ao se aborrecer. Seus burgueses, assim como seus proletários, agem como escravos do acaso. Entregam-se às mais diversas esquisitices em nome de algo que nos escapa, mas que divertia o diretor. Não que seja tudo gratuidade. Don Luis era um atento observador das fraquezas humanas. Além de colocar essas observações nos filmes, sentia grande prazer em temperá-las com sua imaginação onírica. O surrealismo mesmo, em sua essência, consistia em inserir elementos absurdos num contexto perfeitamente realista. Buñuel revelava-se, então, como a personificação cinematográfica perfeita do surrealismo. E O Anjo Exterminador como sua criação mais surreal e libertária.

 

Todos os tipos de interpretações que surgiram dessa parábola, desnecessário dizer, foram sempre rechassadas pelo diretor. Nada mais lógico. Ao tentar explicar o inexplicável em sua obra, acaba-se por deixar amarras nada condizentes a seu espírito libertário. Mas, como ele mesmo dizia, a imaginação é o maior condutor libertário que existe, e do qual não podem nos privar. Por mais que se façam as mais óbvias interpretaçõs, como a do urso significando o bolchevismo à espreita da burguesia paralisada por suas contradições, ou a dos cordeiros como provação divina, é muito pobre fechar um filme rico em símbolos como esse de forma tão reducionista. Por mais que Buñuel ataque frequentemente a burguesia e o catolicismo, em O Anjo Exterminador suas idéias do que seja o mundo e as pessoas são colocadas quase na totalidade, formando um caldeirão tão rico quanto impenetrável.

A maneira como se coloca cada diálogo, cada movimento de seus personagens, livre de qualquer entendimento pré-estabelecido, permitiu que o filme ficasse incrivelmente obsceno sem cair nas malhas da censura. Dessa forma, fala-se de virgindade e de conservação de um objeto (seu hímen?) pela virgem sem o menor pudor. O anfitrião que, a horas tantas, desvirgina a moça, diz que seu feito é algo muito fácil de se conseguir. Poucos espectadores atentam que ele se referia à conquista carnal da virgem. Uma mulher trata seu irmão como se fosse uma menina, chega até mesmo a dizer: "ele é mais sensível do que uma menina", defendendo-o em um jogo que pode sugerir homossexualismo e até mesmo incesto. O velho maestro satisfaz sua amante mesmo depois de um intenso concerto. E tenta beijar diversas mulheres enquanto elas dormem. Sexo, sexo, sexo.

Se lembrarmos que seu filme anterior era o audacioso Viridiana, onde sugere-se, ao final, um ménage-à-trois, fica evidente a obsessão em transgredir pelo sexo. Obsessão que custou a Buñuel muitos problemas e até sua segunda expulsão da Espanha (a primeira havia sido após a crueza incômoda de Las Hurdes). Lembremos também do conde necrófilo de A Bela da Tarde. O anjo exterminador (em sua volta ao México) age como um anjo pornográfico, dominando suas vítimas e tornando-as escravas de seus instintos. A mão decepada existe para dar prazer ao tocar os seios da delirante. Mas também para matá-la, tornando seu orgasmo completo. O homem que sonha com um serrote, num movimento de vai-e-vem que remete ao ato sexual, termina por serrar a imagem de uma santa. O casal recém formado se tranca em um armário para se amar até a morte. "L’amour fou". Obsessões. Sexo, sexo, morte.

Em sua auto-biografia, Buñuel conta que seu maior sonho era realizar um filme onde todos os personagens se movimentassem como insetos. O Anjo Exterminador é o que mais se aproxima desse desejo. O absurdo comportamental de seus burgueses, seus gestos repetidos, suas falas sem sentido, a crueldade involuntária de seus sentimentos, servem a um propósito muito claro, como já dito: a subversão. O que se vê são pessoas regidas por uma outra moral, a qual desconhecemos. Há os senhores que passam o filme inteiro se cumprimentando. E as senhoras que discutem qual morte é mais espantosa, a de populares da terceira classe de um trem descarrilhado ou a de um príncipe. Uma delas guarda em sua bolsa dois pés de galinha. Outra passa o tempo todo penteando uma pequena parte de seus cabelos. O jovem efeminado que passa o tempo todo a reclamar, ainda por cima depila as pernas. São personagens que servem a uma moral singular e rigorosa, a moral de Luis Buñuel. Crueldade, superstição, sexo.

Todos os seus filmes são pessoais, em maior ou menor grau, à medida em que exprimem suas predileções, suas dúvidas, suas contradições. Mesmo nos projetos mais comerciais, suas idiossincrasias fazem-se presentes, ora gratuitamente, ora perfeitamente inseridas na trama, mas sempre deliciosamente colocadas. Em O Discreto Charme da Burguesia, parente próximo do Anjo, um personagem dá a receita do drink preferido do diretor. Em Robinson Crusoé, filme mais quadradinho, o personagem Sexta-Feira dá um nó religioso (livre-arbítrio em questão) no protagonista, o qual não vê outra saída que não a pura ofensa diante da contradição revelada. Em vários filmes (El sendo o mais explícito), pés são mostrados como se admirados por um voyeur. Em Ensaio de um Crime, o protagonista hesita, mas acaba poupando a vida de um inseto. Inúmeros exemplos nos quais ele se mostra com uma nudez psicológica incomum. Ver seus filmes é ainda mais revelador do que quer que seja a mente de Buñuel do que ler sua elogiada auto-biografia, "Meu Último Suspiro".

No entanto, é em O Anjo Exterminador, que vemos um projeto claro de cinema construído para externar obsessões do autor. Praticamente tudo que se vê e se ouve no filme reflete as preocupações de Buñuel com a sociedade, da qual ele não se exclui, e com os bons costumes, os quais ele abomina. Reflete também seu inconsciente e sua adoração pelo acaso e pela repetição. Vendo o filme, penetramos na mente do autor como um psiquiatra invade a mente de um paciente por hipnose. Em tempo, Buñuel tinha aversão confessadamente leviana pela psicanálise, apesar do caráter freudiano de sua obra.

Muitos argumentam que em O Fantasma da Liberdade (1974) o furor libertário se dá com maior força. Mas naquele filme toda a forma é libertária, tudo é válido desde o início. Em O Anjo Exterminador ele utiliza uma forma convencional que, aos poucos, vai se libertando. Mas nunca a ponto de livrar-se definitivamente das regras narrativas. Sua intenção é livrar a humanidade, enquanto em O Fantasma da Liberdade vê-se o abandono completo das normas do contar uma história em benefício do prazer libertário. Antes ele quer liberar o inconsciente, para depois examiná-lo. Ambos são duas facetas do surrealismo, mas penso que a segunda não existiria sem a primeira.

Por tudo isso que mencionei e também pelo fato de o filme ainda se conservar delicioso, e entretenimento de uma inteligência ímpar; além da percepção de que muitas das minhas convicções pós-adolescentes, bem como algumas das muitas dúvidas adultas foram e continuam sendo influenciadas pelo espírito que ronda O Anjo Exterminador, é que continuo dizendo, com certeza condenável: taí um filme que gostaria de ter feito. Frase buñueliana que roubo para mim: vivo muito bem com minhas contradições.

Sérgio Alpendre