O Paraíso Perdido


Terrível escrever sobre um filme que “gostaríamos de ter feito”. Terrível, e de uma ironia cruel: é o mesmo que escrever sobre o filme que “nunca faremos”. Ou, sobre um cineasta que nunca seremos. Ou ainda, no caso de um filme estrangeiro, sobre um país no qual não vivemos e sobre uma língua que não é a nossa. Há outro agravante: no fundo, no fundo, ao elegermos um filme, também nos equiparamos intimamente ao seu diretor. É, enfim, uma operação de transferência bastante complicada. O melhor seria fazer como José Agrippino de Paula no livro Panamérica e desintegrar a “História do Cinema” em sonho particular: não há filmes, atores ou diretores; não há nem mesmo história: todos são “Eu”. Mas não é o caso desta pauta terrível e irônica.

É claro que eu gostaria de ter feito A Regra do Jogo. Bem, eu precisaria ser Jean Renoir. Passemos adiante.

Um documentário: Verdades e Mentiras. Mas ele já foi dirigido por Orson Welles e a imagem que me vem à cabeça é a do início de Cidadão Kane: cercas e placas indicando “não ultrapasse”.

Há editais do Ministério da Cultura esperando por projetos, mas eu preciso dar um pulo no videoclube pra saber qual cineasta serei: John Ford? Rosselini? Samuel Fuller? Antonioni? Godard? Quem sabe Straub, que poucos conhecem (a cobrança pode ser menor...)? Mas um detalhe quase insignificante – o fato de que não sou americano ou europeu – insistia em se fazer presente, e me impedia de sonhar com a Odisséia de O Desprezo, com as cavalgadas em Monument Valley, com os travellings violentíssimos sobre quimonos escarlates, com uma Itália em ruínas ou com o privilégio de dirigir Mônica Vitti. Também deixei Gente da Sicília com quem é de direito, a dupla Straub e Huillet (três – comigo – seria demais).

Não pensem que a situação melhorou depois que resolvi me radicar no cinema brasileiro. Ao contrário: além de aumentarem as limitações impostas por orçamentos imaginários sempre baixos, havia o excesso de proximidade com filmes, cineastas e com o próprio meio cinematográfico, expressão que lembra cercas e porteiras ou, em alguns casos, estufas de plantas exóticas. E essa “proximidade”, em vez de inspirar, intimida a apropriação indébita de obras.

Por diversas razões, gostaria de ter feito inúmeros filmes brasileiros (de Rogo a Deus e Mando Bala, de Osvaldo de Oliveira, a Terra em Transe, de Glauber Rocha), mas curiosamente não gostaria de ter feito nenhum filme de Humberto Mauro (apesar de gostar bastante de O Canto da Saudade). Talvez – imaginei –, se proceder por eliminação a coisa fique mais fácil. Engano: por mais que eliminasse, ainda assim teria inúmeras opções. Rondei durante muito tempo Joaquim Pedro de Andrade: tinha verdadeiras preciosidades, dentre as quais namorava O Padre e a Moça e Guerra Conjugal. Mas os invólucros de vidro e a faixa amarela no chão indicavam que essas peças não podiam ser tocadas. Espiei um pouco Leon Hirzsman; fechei a porta e segui adiante, cada vez mais desolado. Acenei para Nelson Pereira dos Santos, que passeava com suas obras-primas; ajeitei Fulaninha num canto, com carinho, e fui tomar um chope na Prado Júnior pra pensar melhor. Me entreguei à total dispersão mental: Lima Barreto filmava Garota de Ipanema, Rogério Sganzerla voava com uma capa preta sobre corpos de mulheres nuas, um fotograma de José Mojica Marins queimava num projetor, Lulu de Barros e Nelson Rodrigues conversavam num teatro abandonado, Ozualdo Candeias me olhava desconfiado no Bar do Teixeira na Boca do Lixo, Carlão Reichenbach, ajudado por Didi Mocó, Mussum, Zacarias e Dedé Santana, explodia a Estátua da Liberdade na Barra da Tijuca com os fotogramas de um filme super-oito feito à base de nitrato e pólvora.

De madrugada, uma idéia que me pareceu salvadora surgiu boiando nas águas de um chafariz: Carnaval Atlântida. É o filme perfeito para quem está pensando em transferências culturais ou em “obras ideais”. Aula de cinema brasileiro e atores como Oscarito, Grande Otelo, Colé, José Lewgoy, Wilson Grey. Quem poderia querer mais? Minha busca estava chegando ao fim, mas ainda não se completara. Convencido de que Carnaval Atlântida não era uma “escolha”, mas um “conceito”, coisa acadêmica demais para um filme carnavalesco, deixei o chafariz de lado. E, como esta introdução está interminável, este é o sétimo parágrafo e sete é um número cabalístico, preciso deixar claro, afinal, qual filme escolhi para abordar neste texto. Fiquei com Os Monstros de Babaloo, filme de 1970 que foi dirigido por Elyseu Visconti.

Antes de tudo, um esclarecimento: não quero ser Elyseu Visconti nem quero me apropriar de seus monstros. O critério aqui é outro: trata-se de um filme que descobri recentemente (para ser mais preciso, durante a mostra do Cinema Marginal em São Paulo, 2001) e que me provocou ondas ótimas de liberdade e de bom humor. Foi ali que descobri (sem saber) que Bacalhau e Nicole, a Paranóica do Sexo serão vistos daqui a dez anos como as verdadeiras influências dos jovens curta-metragistas universitários atuais.

Juízo final da gramática cinematográfica, tudo em Os Monstros de Babaloo também pulsa em dois planos: visível e invisível. Eis aí porque tomo tamanha liberdade com este filme, a ponto de dizer que gostaria de tê-lo feito: ele não se fecha na carcaça de uma obra assustadoramente prima. Plaina dentro e em torno do cinema brasileiro, tal como um satélite, irradiando inspirações a quem quer se conectar com algo desconectado dos museus de boas lembranças.

Em primeiro lugar, é um verdadeiro achado um personagem como Badu, o industrial da marmelada. Nunca vi nada parecido no cinema brasileiro até hoje. É uma espécie de Charles Foster Kane do inferno, assim como a fictícia ilha de Babaloo é também o castelo de Xanadu. A rima não é apenas auditiva - os planos que introduzem a mansão de Badu, entre as bananeiras tropicais, têm como referência direta o começo de Cidadão Kane (o mesmo a que me referi lá em cima, com a diferença de que não há placas proibindo a passagem). Badu, este monstro genial que parece ter saído de uma gravura de Goya, circula por entre o pomar, ao lado de seu assistente idiota, tendo como amantes as jovens Betty Faria e Tânia Scher.

A família de Badu é ainda mais surpreendente: sua mulher, a pançudinha, é Wilza Carla. Sua filha, a inacreditável Helena Ignez. Há outros personagens/intérpretes igualmente magistrais, como o filho tresloucado e a velha de pernas tortas, mas a ausência de uma ficha técnica completa (as que possuo listam apenas alguns nomes de atores sem relacioná-los aos personagens) me impede de mencioná-los com exatidão. Contudo, não posso deixar de destacar a empregada Frinéia, vivida pela legendária Zezé Macedo, com direito a número musical.

Os Monstros de Babaloo é uma chanchada psicodélica, de um preto e branco luminoso. Graças aos fantásticos atores, os personagens parecem existir naturalmente, sem que o absurdo de suas aparências monstruosas exclua a veracidade de cada um. Esta mistura é muito difícil, um privilégio que poucos cineastas experimentam. Outro aspecto encantador de um filme como Os Monstros de Babaloo é sua vocação poética, e aqui entendo a poesia não como uma linguagem pré-determinada, e sim como carta aberta aos sentidos, desligada de parâmetros e regras.

Os Monstros de Babaloo é um filme desigual, desequilibrado, “fora de prumo”. Sua matéria prima é a feiúra e seu resultado, o sublime. Lembro-me de imagens fantásticas que dificilmente podem ser esquecidas: Wilza Carla comendo sardinhas numa fábrica e descendo as escadas com uma garrafa de champanhe; Helena Ignez provocando o irmão enjaulado; Badu num sítio repleto de lama e urubus; o sol batendo no carro em que Badu, com seus imensos óculos escuros, tira fotografia de postes de luz. Há ali, também, o retrato de um país monstruoso igualmente enjaulado por uma ditadura militar. Mas a ausência de um discurso político claro e didático torna este retrato talvez bem mais abrangente. O filme de Elyseu Visconti possui a capacidade de se comunicar através do não-dito, do não-aguardado. Sua linguagem possui a beleza e a tristeza das ressacas marítimas em dia de céu nublado. Poderia ainda falar de outras qualidades e de outras questões relacionadas ao filme, mas então retornaria à condição de um “crítico” e sentiria a necessidade de rever o filme, talvez ler textos correlatos... e todo o propósito da pauta em questão iria por água abaixo.

Donde posso concluir o seguinte: são incompatíveis, para mim, a experiência de escrever sobre um filme de outro autor e, ao mesmo tempo, a missão de tratá-lo como se fosse meu. Aqui, devo confessar o meu fracasso: não estou conseguindo ir além de mim mesmo neste texto. Se me estendi a respeito da minha angústia inicial, vou ser breve na conclusão: nunca antes havia pensado com vagar sobre “o filme que gostaria de ter feito”, algo semelhante a querer viver “outra vida” que não a minha. Por outro lado, sinto como “meus” os filmes dos meus amigos, incluindo aqueles que ainda estão sendo feitos. Ou seja, o cinema é, para mim, menos uma obra, um filme, que o sentimento de amizade e contemporaneidade que cria laços entre projetos comuns e mesmo contraditórios. A expressão correta é mesmo aquela que Jairo Ferreira celebrou: sintonia intergalaxial. Cinema é por aí, eu acho.

Luís Alberto Rocha Melo