Viagem ao princípio de um mundo perfeito (Weekend à portuguesa)



Há quatro anos estive em Valença do Minho, bem ao norte de Portugal, divisa com a Espanha. Uma região mágica, principalmente dentro do burgo fortificado, no qual, apesar do ar medieval, perdura uma certa herança - segundo historiadores - da era românica. Ali, assim como nos trajetos de carro por todo o norte de Portugal e na passagem pela atmosférica cidade de Tui, esta já na Espanha, pensei em fazer um filme. Ou melhor, já tinha ali um filme pronto, um filme nascido do simples encontro com aquela dilatação do tempo, um tempo que se esprai da rocha envelhecida e se faz eternamente presente, eternamente (re)fluxo. Tudo me encantara: a tacifluidez do rio Minho, a ponte velha sobre o mesmo rio, construção artificial encurtando a fronteira natural entre os territórios de Portugal e Espanha. Mal tirei fotos dentro do burgo, pois não me sentia apto a reduzir aquele espaço a uma foto. Toda a atividade turística se interrompia de súbito: ao fazer uma fotografia, o turista não tenta senão, na incapacidade de viver uma paisagem, reduzi-la a um objeto consumível, um álbum de imagens onde o relacionar-se com o espaço é substituído pela falsa sensação de posse. Não consegui tal intento. Poucas fotos daquela tarde, mas muitos sedimentos de memória que volta e meia rumino.

A viagem foi em 1999. E não é que dois anos antes, em 1997, lá estava Manoel de Oliveira a filmar, no mesmo lugar e partindo de premissas muito parecidas, o que eu pensava ser inédito? Viagem ao Princípio do Mundo é o filme. Tem mais: aquela idéia de só filmar as trajetórias pelo vidro traseiro do carro, traço absolutamente marcante no filme de Oliveira, também estava no meu projeto, assim como as paradas em diversos pontos do caminho que estivessem relacionados a momentos do passado. Viajar ao princípio do mundo é viajar ao princípio da memória. E o tempo é o que fica para trás; se há um modo de aferi-lo, de avaliar sua dimensão, é por intermédio do passado - daí a janela traseira. Ao perseguir um fio da memória, fica para trás um novo rastro. Ir matar saudades e voltar morrendo delas, algo assim. Mas tudo bem, Oliveira tem alguns anos de vida a mais e cabe-lhe o direito a tomar a frente na fila das idéias.

A questão da estrada sempre me fascinou, tanto como espectador de cinema quanto nas experiências de viagem mesmo. Dificilmente um filme meu não passaria por aí, o que explica, em parte, o encanto que outras duas obras me despertam: Um Mundo Perfeito, de Clint Eastwood, e Weekend, de Jean-Luc Godard (cineastas nascidos no mesmo ano, diga-se de passagem).

No meio do caminho, haveria um caótico engarrafamento que seria filmado à semelhança do interminável travelling feito por Godard na obra-prima Weekend (aquela urgência dos filmes do Godard, aquela vontade de perfazer a extensão – física, moral, psicológica – do mundo num único travelling...). Não chegaria a um plano à moda Tarkovski, querendo ser uma gota d’água na qual se espelhasse todo o universo, mas passaria perto de um desejo de condensação do tempo-espaço. E, para completar, muita coisa do enredo de Um Mundo Perfeito (não exatamente a história, mas seu modo de narração - e o suposto ponto de chegada como fratura irreversível) estaria presente em meu filme.

Seria um road-movie sem pousos efetivos, só com trajetos (um tanto quixotesco, é verdade). Mas hoje ele só existe como um arquivo intramental, misto de memória com imaginação. E talvez seja melhor assim.

Luiz Carlos Oliveira Jr.