Se
Meu Apartamento Falasse,
de Billy Wilder

The
Apartment, EUA, 1960

Um clichê bastante
recorrente quando se deseja espinafrar a crítica, em nosso caso específico
a de cinema, seria a afirmação equivocada que “todo crítico seria um cineasta
frustrado”. Se bem que aqui na Contracampo um número expressivo de redatores
sejam ao mesmo tempo críticos e cineastas (e certamente não frustrados
em ambas das funções), este não é o meu caso. Nunca cursei uma escola
de cinema e meu conhecimento sobre o assunto vem de horas e horas com
a bunda sentada na cadeira, seja das salas de exibição, seja da minha
casa, durante mais de vinte anos, assistindo aos mais variados tipos de
filmes, complementados, é claro, por leituras sobre o assunto. Digo isso
para afirmar que, não tendo maiores aspirações a cineasta, fica difícil
pensar como seria um filme que gostaria de ter dirigido. Filme eu gosto
mesmo é de assistir, e acredito que não teria paciência com o estresse
de se levantar uma produção, com a rotina meticulosa de um set de filmagens,
com o isolamento de uma sala de edição.
Já que me considero
acima de tudo um espectador, seriam os filmes que mais me emocionaram
ao longo da vida aqueles que eu gostaria de ter feito. E aqui na Contracampo
já tive oportunidade de escrever sobre alguns deles, como O Substituto,
Momento Inesquecível, Cinzas no Paraíso, ou as obras de
Milos Forman e Eric Rohmer. Isso para não falar de Bergman, Fellini, Visconti,
Scorsese, Altman, Lynch, Eastwood, Almodovar, Kubrick, Glauber,Truffaut.
A lista seria infinita. Mas, apesar de ao longo da minha vida não ter
sido um filme citado em papos cinéfilos como um dos meus top-ten,
quando surgiu a idéia da pauta, o primeiro título que me veio à mente
foi Se Meu Apartamento Falasse. Passei a me perguntar por que razão.
Então vamos às tentativas
de resposta. Como já disse, aprecio as mais variadas formas de se fazer
cinema, mas dentro delas, guardo especial apreço pelo cinema americano
clássico, principalmente os filmes das décadas de 40 e 50. Foi, ainda
dentro das limitações de uma política de estúdios, que Hollywood conseguiu,
mais do que nunca, atingir o tênue equilíbrio arte-indústria. Muitas vezes
sem maiores ambições de revolucionar a linguagem, mestres como Ford, Hitchcock,
Huston, Mankiewicz, Welles, Minelli, Sturges, Capra, Hawks, Sirk, Fuller
ou Ray presenteavam o público com uma infinita sucessão de grandes filmes
e obras-primas. Cada qual com sua temática e estilo, tendo em comum o
talento e a magia de realizar filmes inesquecíveis, cuja profunda emoção
de ver e rever ao longo dos anos se faz para mim muito difícil de transformar
em palavras.
E Billy Wilder tem
o mérito de não ser apenas mais um dentre esta elite de cineastas. Conseguiu
desenvolver uma obra muito pessoal, alternando gêneros, e, principalmente,
rompendo sucessivas barreiras ao longo dos anos, com uma visão de mundo
crítica, irônica e muitas vezes amarga. Os filmes de Billy Wilder, a partir
de Pacto de Sangue (1944), são em quase sua totalidade, obras que
até hoje impressionam por sua incrível maturidade distantes de uma superficialidade
ou escapismo muitas vezes associados à média da produção da época. Em
comum entre eles e a personalidade de seu autor, duas virtudes que muito
prezo: humor (quase sempre presente, mesmo em filmes mais dramáticos)
e inteligência. Tudo expresso através de roteiros impecáveis (quase sempre
em parceria com Charles Bracket ou I. A. L. Diamond) e um trabalho de
câmera lúcido e discreto.
Voltando ao meu questionamento
quanto a escolha do filme, descobri então por que, pelo menos no presente
momento, Billy Wilder foi o cineasta que eu gostaria de ter sido. Mas
e o filme? Por que não Crepúsculo dos Deuses (1950), retrato do
fim de uma era e de um estilo de cinema, este sim o Wilder que sempre
considerei o meu favorito. Ou A Montanha dos Sete Abutres (1951)
com sua descrença na dignidade humana. Ou Quanto Mais Quente Melhor
(1959), simplesmente o filme mais engraçado da história. Bem, todos estes,
como alguns de outros grandes trabalhos de Wilder, retratam figuras em
situações de exceção ou, ao menos, não comuns ou usuais (estrelas e roteiristas
de cinema, jornalistas inescrupulosos, músicos travestidos).
Ao escolher Se
Meu Apartamento Falasse, me parece ter vindo à tona meu fascínio por
situações e tipos cotidianos. Seus protagonistas, C. C. Baxter (Jack Lemmon)
e Fran Kubelick (Shirley MacLaine) são personagens urbanos, simplórios,
desglamurizados e, por que não dizer, derrotados. Mas nem por isso vistos
como coitadinhos, como se faz muito comum no chamado cinema independente
americano contemporâneo. E, se anteriormente já havia destacado a maturidade
dos temas e de sua abordagem como um dos principais méritos da obra de
Wilder, em Se Meu Apartamento Falasse, esta maturidade se faz presente
de forma muito especial. Assuntos como sexo, adultério, alpinismo social,
mesquinhez e solidão vistos de uma forma ao mesmo tempo tão franca e dentro
de uma simplicidade como poucas vezes se havia visto anteriormente no
cinema americano.
Rever Se Meu Apartamento
Falasse para a realização deste artigo foi certamente a confirmação
de quão acertada foi esta minha escolha. Acima de tudo, foram duas horas
e cinco minutos em que tudo no filme parece ter me emocionado. Partindo
da já decantada humanidade de suas situações e personagens, que desde
a primeira sequência Wilder situa numa Nova York fria e impessoal, onde
os personagens poucas vezes se dirigem uns aos outros por seu primeiro
nome, são sempre Sr. ou Srta. alguma coisa. E o Sr. Baxter é, no mínimo,
um medíocre, que, mesmo redimido por seu ato final de dignidade, se orgulha
de manter perante os vizinhos a falsa imagem de mulherengo. E não poderia
haver outro interprete que não Jack Lemmon para dar vida a este personagem
ao mesmo tempo comum e multifacetado. Que se fique definido desde já:
Jack Lemmon foi o maior ator que já pisou a face da Terra. (E se alguém
discordar é feio, bobo, chato e eu dou porrada!)
Uma intensa sensação
de melancolia perpassa todo o filme, como se pudessemos ser todos nós
os viventes de algumas daquelas situações. Como a Srta Kubelick, a síntese
de todas as mulheres que foram manipuladas e enganadas por amor. A sequência
da festa de natal na empresa, quando ela descobre ter sido apenas mais
uma na lista de conquistas do Sr. Sheldrake (Fred MacMurray) é um momento
histórico de cinema. Wilder consegue retratar toda a liberação de tensões
reprimidas em um ambiente de trabalho caracterizado por relações impessoais,
quando a severa rotina da empresa, por algumas horas, chega quase a se
tornar um bacanal. Em meio a esse caos, Baxter leva Kubelick a seu novo
escritório e, ao tentar declarar sua atração a uma moça que mal ouve o
que ele diz, atônita pela conversa que acabara te ter com a secretária
de Sheldrake, acaba, pela brilhante utilização dramática de um pequeno
espelho, descobrindo ser ela a amante de seu superior, que havia frequentado
a cama de seu próprio apartamento. Grande momento também para Shirley
MacLaine, uma atriz igualmente excepcional, então no auge de sua discreta
beleza.
Fica então respondido
por que Se Meu Apartamento Falasse. Por tudo isso e também pelo
severo e solidário médico interpretado por Jack Kruschen, pelo cenário
em perspectiva do escritório, desenhado por Alexander Trauner, pelo beliíssimo
tema musical de Adolph Deutsch e principalmente pela imagem sublime de
Jack Lemmon escorrendo macarrão em uma raquete de tênis. Dá até vontade
de ressuscitar uma velha idéia que eu tinha de fazer uma trilogia de filmes
sobre os anos 80. Quém sabe o cineasta dentro de mim esteja ainda escondido,
esperando uma chance de se manifestar, apesar de minha aparente resistência?
Gilberto Silva Jr.
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