Idas e Vindas


Quem conhece diretores, ou pelos menos já leu muitas entrevistas sobre o processo de muitos deles, sabe que a criação, em muitos casos, é determinada por um insight ou por uma partícula de inspiração. Fiquemos em casos próximos. Walter Salles teve câimbra na língua de tanto dizer que Terra Estrangeira nasceu da imagem onírica de um navio encalhado na praia. Claudio Assis tem declarado que Amarelo Manga teve como ponto de partida o título, inspirado na cor de seu automóvel modelo TL e do pubis de uma garçonete, duas paixões de seu passado. São motivações vagas e rarefeitas, mas mobilizadoras de uma busca. Pedras fundamentais. Quando solicitado a escrever para essa edição comemorativa, de cinco anos, sobre um filme que gostaria de ter feito, só me veio a mente um filme ainda não feito por ninguém. Porque o desejo de fazer um filme só poderia se manifestar a partir do processo e não do resultado do processo. Me interessaria pela escolha de um filme a fazer, em detrimento de outros tantos deixados de lado.

No entanto, a pauta era outra e, em certo sentido, nada incompatível com, digamos assim, minha proposta particular. Por isso me concentrei, nas linhas abaixo, em cenas, filmes, conceitos de filmes específicos e de filmes em geral de diretores que, como diz Eduardo Valente, injetaram em mim a pulsão pelo cinema, pulsão sempre renovada por novas experiências, que inseminam novas idéias, originam novos desejos, despertam novos questionamentos. Esses momentos têm em comum, dentro de suas especificidades e diferenças, a capacidade de compensar, sempre para mim, algumas ausências nas telas. São situações diante das quais eu fui lembrado como o cinema pode ainda se reinventar sem romper com os caminhos anteriores e se reoxigenar sem necessariamente estar inventando a roda. Não são fragmentos ou diretrizes inaugurais, nem teriam de ser, pois não tinha ambições historicizantes. São passagens que me tocaram, me fizeram limpar os olhos.

A CÂMERA E O CORPO - Duas cenas (*1), dois conceitos (*2) e uma atmosfera (*3)

*1 (As Coisas Simples da Vida, de Edward Yang)
(Vou Para Casa, de Manoel de Oliveira)
*2 (Madame Satã, de Karim Ainouz)
(La Cienaga, de Lucrécia Martel)
*3 (Viver a Vida, de Jean-Luc Godard)

A experiência de ver muitos filmes, durante muitos anos, e de ler/pensar sobre cinema, também não há pouco tempo, me leva a algumas perguntas. Por que os filmes são feitos de um certo modo e não de outro? Por que a câmera foi colocada aqui e não ali? Por que se está mostrando isso e deixando de se mostrar aquilo? Não estou impondo uma funcionalidade do plano, um dogma de como se deve enquadrar, de qual ângulo é mais correto, mas questionando a razão das opções, às vezes sem muita razão, mais intuitivas, sem nenhum prejuízo para a força das partes ou do conjunto. No entanto, sinto uma consolidação inquestionável, ou “inquestionada”, de uma forma de se filmar pessoas. Enquadra-se o rosto, ou o corpo da cintura para cima, ou o corpo em plano geral. Todo o restante fica invisível. Não seria expressivo.

Em um dos momentos finais de As Coisas Simples da Vida, de Edward Yang, um garotinho explica porque fotografa as pessoas de costas, mais especificamente a nuca delas. “Porque é uma imagem que elas nunca terão de si mesmas”, diz. Cito de lembrança, da única vez a que assisti o filme. Também de lembrança retomo a frase de Roland Barthes, na qual diz que a fotografia, ou melhor, quando nos vemos em uma fotografia, é o momento em que nos deparamos com nosso personagem. O fotógrafo mirim de As Coisas Simples, portanto, valoriza um novo ângulo de personagens. Suas identidades visuais não se resumem ao rosto ou à parte de frente de seus corpos. Incorpora-se ali, em suas fotos, o que está, em geral, invisível no quadro, seja na fotografia, seja no cinema, seja na pintura.

Não vou me estender sobre isso, pois a questão pediria um artigo à parte, exclusivo, mas também me interessa como, em O Céu de Lisboa, de Wim Wenders, um personagem quase ausente, procurado pelo protagonista, coloca uma câmera nas costas. Wenders ali tematiza a impossibilidade de um olhar puro, contaminado pelo excesso de imagens da contemporaneidade. A ausência do olho seria uma tentativa última de se resgatar esse ideal de pureza. Me interessa aqui, no entanto, como essa câmera, colocada nas costas, captará imagens invisíveis a quem a transporta, ou seja, coloca um olho de um ângulo onde não se vê. Filma o que está fora do quadro. O cineasta apenas introduz essa problemática. Deixa de transformá-la em cinema ao não incorporá-la na própria realização do filme.

Manoel de Oliveira, sem problematizar o olhar, vai mais longe. Em uma única cena, estimula essa discussão, embora, na prática, busque o sensorial, sem conceito à vista. Falo da conversa de Michel Picolli com outro personagem, não lembro qual, durante a qual ele está sentado, em uma mesa de um café em Paris, e a câmera focaliza seus pés. Vemos ali a reação do personagem à interação verbal com seu interlocutor pelo movimento desses pés. Mais que isso: sentimos a aparente vontade de não interagir. Uma ansiedade traduzida visualmente por uma parte do corpo quase sempre ignorada pela câmera. Esses segundos me acompanham para além do prazer proporcionado pela lembrança da imagem. Eles alimentam uma nova variação das perguntas feitas linhas acima. Por que filmar os rostos em uma conversa, sobretudo o rosto de quem fala? Por que não valorizar a expressão de quem escuta, adicionado à informação verbal uma outra exclusivamente visual? E por que não buscar em outras partes do corpo, e não apenas no rosto, a linguagem física como reação à uma situação?

Introduzir nessa discussão-monólogo um dos momentos mais tocantes de Viver a Vida, de Jean-Luc Godard, seria torcer as evidências e virá-las do avesso para caber nas argumentações. Refiro-me à construção cênica na qual o casal de protagonistas conversa também em um café em Paris. A câmera filma-os de costas. Uma nova construção, situada em outro café (ou restaurante?), prossegue nessa opção. A câmera novamente se coloca atrás dele ou dela, desloca-se do centro para a esquerda, da esquerda para o centro, do centro para a direita, da direita para o centro, criando não só uma dinâmica de mise-en-scène, mas transcriando nesse movimento a dinâmica da conversa, sem vermos a expressão facial dos atores. Pode-se argumentar que essa construção, na verdade, apela ao olhar, mas dispersa nossos ouvidos. No entanto, se não vemos quem fala, nem os movimentos do lábio, a fala exige maior atenção, pois torna-se uma informação autônoma, paralela às imagens e não redundância dela. Para além disso, essa opção, ao menos para mim, cria uma atmosfera lírica. Lembra-me que aquilo é cinema e, enquanto cinema, enquanto artifício, pode chegar à uma verdade. Naquele momento, um mundo se constrói, com seus próprios pressupostos. Um mundo sem rostos, mas com identidade.

Descrevo todas as cenas de memória e posso estar sendo impreciso. Na verdade, faço questão de descrever de memória porque, embora tenha uma cópia dos filmes à mão, prefiro ficar com a imagem retida, não com a imagem na tela, pois isso interessa ao texto, aqui elaborado em cima de sensações transformadas em questões com o tempo. E uma dessas questões é: a maioria dos diretores partem do pressuposto de que a tradução visual de sentimentos, emoções e estados de espírito está nos movimentos da boca, das articulações do maxilar e dos olhos. É como se só eles expressassem uma atitude. Ignora-se mãos, braços, pernas, pés, postura de ombros, que revelam muito da construção de uma identidade pública, de uma imagem vista por outros, de como o personagem se relaciona em um certo meio, com certas pessoas. Em Madame Satã, de Karim Aïnouz, vemos, em alguns momentos, uma busca dessa, por assim dizer, gramática do corpo. Lázaro Ramos está na pele, literalmente, do malandro da Lapa. A câmera percorre seu corpo não por maneirismo estético, mas porque será com esse corpo, na intimidade ou em lugar público, que o personagem irá reagir ao mundo e construir seu espaço. Esse corpo reagirá tanto ao desejo mediado pelo olhar sobre outros corpos, quebrando o decoro na intimidade do sexo, quanto à agressão sofrida por outros corpos e motivada por estatutos sociais. Corpo como arma de defesa e sujeito de sua construção.

É diferente o tratamento dado à carne humana por Lucrécia Martel em La Cienaga. Nesse filme inédito em circuito comercial no Brasil, ao qual assisti uma única vez, em junho de 2002, os corpos são expostos em suas minúcias. Poros, rugas, dobras, suores. Não se busca a radiografia, mas uma aproximação obscena, quase sem a mediação da distância entre câmera e objeto, de modo a mostrar como, naquele ambiente de atmosfera aparentemente mórbida e decadente, pulsa a vida embaixo da pele e nela própria. A decomposição sugerida pelas imagens dos personagens é menos uma sensação de morte e mais um sinal de vida, pois esta é uma permanente construção de experiência rumo ao fim, um processo de composição e decomposição. Seria necessário uma revisão para ampliar essa impressão, mas assim ficou registrado na memória.

A INTIMIDADE - Um silêncio a dois (*1), um monólogo sobre três (*2)

*1 (Sob a Areia, de François Ozon)
*2 (Marie Jo e Seus Dois Amores, de Robert Guédiguian)

São muitos os filmes sobre relacionamentos, sobre crises afetivas, sobre amores e paixões, mas são poucos os filmes com cenas de intimidade, aqueles momentos em que, sem testemunhas ou fechados em seus mundos, os casais constróem uma imagem exclusiva, um para o outro, a qual ninguém mais tem acesso. Dois exemplos aproximam-se do que, ao meu ver, seria uma verdade a dois, uma verdade só possível para duas pessoas em cena, exclusiva delas. Refiro-me a um dos primeiros momentos de Sob a Areia, de François Ozon, e a uma magnífica cena de Marie Jo e Seus Dois Amores, de Robert Guédiguian. Sejamos breves. No filme de Ozon, uma mulher e um homem, na casa dos 40/50 anos, casados já faz um bom tempo, chegam à uma casa de praia. Jantam em silêncio. Deitam em silêncio. Não tenho certeza se não falam nada, mas assim ficou para mim. Um silêncio de intimidade, de comunicação sem verbo, como em Um Sol Alaranjado, curta de Eduardo Valente, mas também um silêncio de distância, de não-comunicação. Na comunicação ou na distância, o silêncio só é possível entre os íntimos. Pois só a intimidade permite a ausência de palavras em um mesmo ambiente sem que isso configure um constrangimento ou uma tensão.

Em Marie Jo, não se trata de um silêncio, mas de um monólogo. Uma mulher fala a seu marido, enquanto ele dorme e após transarem, sobre como ama o amante. Diz algo mais ou menos assim: “o que mais dói é não poder compartilhar isso com você”. Poucas vezes o cinema foi tão sensível e tão profundo na compreensão da intimidade. Há outros momentos do filme em que esse estado é esboçado, mas nessa situação específica sentimos a dor da personagem, pois a traição dela não está em manter outra relação afetivo-sexual, mas em não expressar esse outro amor ao marido, homem a quem também ama sem a menor sombra de dúvida.

A FALA COMO CONSTRUÇÃO, NÃO COMO INFORMAÇÃO - DIÁLOGOS EM ERIC ROHMER

Conversas entre personagens são empregadas, em sentido convencional, para informar algo sobre suas situações, sobre seus sentimentos, sobre uma história em andamento. Não é o caso na maioria dos filmes de Eric Rohmer. Não entrarei no específico de cada um deles nem de um especial. Me interessa apenas salientar como as palavras ditas por seus personagens fazem parte do processo de construção de identidade de cada um deles, de uma busca de um sentido para o sentido muito vago de suas experiências e emoções, para terem uma imagem de si mesmos ao expressar-se para o outro. Não importa se falam a verdade, pois a verdade, em Rohmer, está no que está sendo dito, não nas ações mostradas ou omitidas. Fala como (re)invenção. E tão importante quanto o que se diz é como se constroe a linguagem verbal, as palavras empregadas, as pausas, os momentos em que se titubeia, o que, embora em outro registro, aproxima esse cinema do mais recente filme de Eduardo Coutinho (Edifício Master). Conversar como processo de construção, não como meio de se atingir objetivos.

O PERSONAGEM EM SEU AMBIENTE, A CENOGRAFIA EM BICHO DE SETE CABEÇAS

Pouca atenção se dá na literatura sobre cinema à importância da direção de arte/cenografia. Poderia citar outros exemplos, mas proponho o de Bicho de 7 Cabeças, de Lais Bodanzky, por ser este um quesito frágil no cinema brasileiro. Há uma tendência, não só por aqui, de se mostrar demais. Ou pelo menos de se empetecar os cenários, colocar toda sorte de informações, o que desvia, contamina ou legenda o olhar. Em Bicho, a cenografia, precisa, realista, verossímil, é sutil. Ela não é exibida, mas está lá. Sua presença se faz notar sem nunca ser evidenciada. Chamo atenção especial para a cozinha da casa onde mora a família do protagonista. Há ali uma história de vida como se o cômodo existisse antes da filmagem. Aquela cozinha existe, não parece representação. Algo raro. Não posso deixar de mencionar outros exemplos, um de memória (Eles Não Usam Black Tie, de Leon Hirzsman), outro recém-observado (Desmundo, de Alain Fresnot). No primeiro, repete-se, com êxito, a operação de Bicho. Há um mundo doméstico aparentemente já existente antes da câmera ser ligada. Em Desmundo, impõe-se dificuldade maior. É um filme “histórico”, ambientado no século XVI. Como já se deve ter notado, em reconstituições de época, tanto aqui como em qualquer lugar, há muita reconstituição e pouca época. O trabalho de pesquisa é escancarado, tenta-se evidenciar o processo de encenação. Em Desmundo, ao contrário, existe a época, quase sem se notar a reconstituição.

As questões levantadas aqui guiam-se por uma postura muito pessoal a partir de filmes vistos e partir do que não costumo ver com constância no cinema. Em uma obra imaginária, ou pelo menos em um projeto de obra real em permanente construção em textos, conversas e na própria imaginação, tais questões constituiriam, necessariamente, uma diretriz a ser trabalhada. Não estou aqui buscando novos conceitos, até porque nada é novo nessas abordagens, mas tateando por um ideal de cinema mais oxigenado, liberto de engrenagens já consolidadas, que operem na corda bamba do risco, da tentativa, do buscar o pouco explorado sem, com isso, visar uma noção de acerto, mas sim de processos não viciados. Essa não é uma condição para eu gostar ou gostar muito de filmes. Mas seria para alimentar o desejo de realizar filmes, a partir de vivências, observações, conversas, discussões, leituras e, como aqui coloquei, a partir do prazer de ver minhas ansiedades em relação ao cinema satisfeitas, ao menos parcialmente, por outros filmes.

Cleber Eduardo