A Volta do Filho Pródigo - Os Humilhados, de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet
Le retour du fils prodigue- Les humiliés, França, 2003


Jean-Marie Straub é o mais musical dos cineastas. Tudo aquilo que geralmente no cinema é regra naturalista de invisibilidade (montagem para colar uma ação à outra sem ruído externo, atores devendo esconder-se completamente dentro de seus personagens) transforma-se, num filme do casal Straub/Huillet, em invenção, em ruído, em construção. Os atores deixam sua função de meio (médium) e seus gestos passam a existir no vazio de todo e qualquer naturalismo, o corte passa a assumir uma função que não é propriamente assinalável do ponto de vista de uma pragmática da narrativa. Em um filme de Straub/Huillet, os famosos elementos expressivos do cinema adquirem uma dimensão puramente poética, numa dupla acepção do termo. Primeiro como poiesis, produção: sua arte é produto de um grupo de pessoas, que se esforçam e colocam suas criatividades e saberes em marcha para realizar um trabalho dado. O suor das pessoas em fazê-lo, geralmente escondido por trás da narrativa, aqui aparece em toda sua potência. A Volta do Filho Pródigo – Humilhados é seu próprio making-of. Segundo, por seu valor de essência: se uma linha de romance representa, um verso é. Por mais que haja um fundo (conteúdo) a ser expresso pelos diálogos, pelos cortes e pela fotografia, elas importam antes de tudo por seu valor primeiro, por sua materialidade: uma fala é antes de tudo uma voz, um discurso é antes de tudo uma cantilena, um enquadramento é antes de tudo uma disposição e uma fotografia é antes de tudo uma filtragem da luz. O grande choque que temos ao assistir a um filme de Straub (e com A Volta do Filho Pródigo – Humilhados não foi diferente) é que tudo que está imediatamente acessível aos olhos brota com uma força inesperada e nos obriga a tecer com aquilo que estamos vendo outro tipo de relação sígnica do que aquela que provamos com a maioria dos outros filmes (com a quase maioria absoluta, uma vez que até a maioria dos grandes filmes trabalha com os códigos de representação costumeiros).

Antes de tudo, é importante separar o filme em dois, como faz o título e como faz o próprio filme. A Volta do Filho Pródigo é uma espécie de continuação de Operários e Camponeses, nas mesmas locações e filmado com os mesmos atores a partir dos mesmos diálogos e "constelações" de Elio Vittorini. Dispostos em posições específicas e rememorando os conflitos na passagem do inverno para a primavera no pós-guerra, eles lêem um caderno (o "roteiro" do filme) – e cabe lembrar o grande estranhamento criado por um filme que nos obriga a ver os personagens relatando eventos inteiramente acontecidos no passado, sem especial sentimentalismo de narração ou a narrativa fazendo "casa" para tal – onde vemos menos as linhas que eles devem falar do que uma partitura que mostra como eles devem empostar a voz ao dizer cada uma das frases que sai de suas bocas. A voz em A Volta do Filho Pródigo – Humilhados, como já era com Operários e Camponeses e com Gente da Sicília antes deles, é o grande tema do filme e possivelmente a grande fonte de beleza do filme. Destituída de suas funções comunicativas (narrar uma mensagem), resta um mundo inteiro de experiências para realizar com a maneira como a voz humana é utilizada nos filmes. Straub/Huillet, sem apelação, são responsáveis por um bando delas (como Duras, Godard...). Cineastas da literatura por excelência, Straub/Huillet sabem transplantar (transcriar, diria-se) para a tela um ambiente em que o texto realmente cresce ao ser falado na tela grande, com toda sua densidade e veemência. Por alguns segundos, o crítico pede sua demissão e revela que só alguém com italiano fluente é verdadeiramente capaz de fazer uma honesta crítica do filme. Ou talvez só alguém com italiano fluente e uma verdadeira fascinação por toda a obra de Vittorini (e não só Conversas na Sicília, como nós).

Humilhados, de natureza bastante diferente da primeira parte, narra um momento posterior da saga dos operários e camponeses, tendo que conviver e trabalhar juntos em pleno inverno do pós-guerra. Finda a guerra, vêm aqueles que clamam a terra onde os heróis plantaram e cultivaram, e oferece as alternativas da polícia e do trabalho assalariado. Nasce daí um embate ideológico altamente vivaz nas condições atuais da reforma agrária brasileira (o monólogo sobre como todas as terras têm um dono é particularmente especial, tanto o teto quanto a narração), em que aqueles que lavraram a terra reclamam seu direito sobre elas, ao passo que o capataz reconhece o trabalho mas os humilha ora dizendo que o trabalho não vale nada (mesmo trabalhando por infinitas horas, teriam produzido o que dez operários fariam em alguns meses) ora dizendo que o futuro não permite mais esse tipo de coletivização da agricultura – daí o titulo de "humilhados", pois tudo aquilo que constitui a essência daquele grupo – o trabalho – é deslegitimado sumariamente.

A grande fascinação mental saída dos filmes de Straub/Huillet é que eles conseguem ao mesmo tempo filmar suas histórias (porque sempre há uma) em suas dimensões históricas (como documentos positivos da História do mundo), em suas condições artísticas primeiras (querem fazer justiça a Vittorini, como a Cézanne, como a Kafka, Hölderlin, etc.) mas também são eles mesmos artistas (ou seja, acrescentam algo tanto à História quanto aos artistas que tomam como ponto de partida), produtores de beleza e força artística (porque não, seu trabalho de depuração não elimina a emoção, somente a procura através de outros meios...). A Volta do Filho Pródigo – Humilhados, mais uma etapa na construção de um cinema rigorosamente materialista e histórico, é um triunfo da emoção e da vitalidade.

Ruy Gardnier