Do Começo
Anotações sobre o mais pessoal
dos filmes finais de Orson Welles

Da capo (da ka`po) adv. Musica para o começo.
Usado como direção para repetir uma passagem..
[do Italiano : da,do + capo,cabeça.]
The American Heritage Dictionary
1

I. Introducão

O que a expressão 'o cinema de Orson Welles' evoca? Para a grande maioria, o seu significado esta limitado aos 12 longa-metragens que Welles completou e lançou durante sua vida. Mas há muito mais sobre Welles do que o que pensamos saber sobre ele: para cada um desses 12 longas, existe uma dúzia de trabalhos não vistos dos mais variados tipos: fragmentos, filmagens testes, rushes, e até mesmo alguns filmes quase finalizados que, por razões variadas (na maioria legais ou financeiras), Welles não foi capaz de completar durante sua vida. Na categoria de ' filmes quase finalizados' está The Deep, um thriller filmado no fim dos anos 60 no qual Welles suspendeu o trabalho ou porque seu protagonista, Laurence Harvey, tinha morrido inesperadamente ou porque ele simplesmente decidiu que haviam projetos mais importantes para colocar seu dinheiro. Outra praticamente completa obra é The Other Side of the Wind, uma sátira a Hollywood feita entre 1970 e 1976; o filme foi de acordo com as informações disponíveis completamente filmado e parcialmente editado por Welles quando complicações legais envolvendo os financiadores do filme o proibiram de completar o corte final. Welles também trabalho bastante satisfeito em Don Quixote de 1955 até a sua morte, fazendo com que este seja talvez o mais famoso filme de Welles visto como 'perdido.' Jonathan Rosenbaum, para citar um, acredita que o copião bruto (e não a versão que Jess Franco montou em 1992) constitui um feito maior do que qualquer um dos dois projetos mencionados acima. E mesmo este inventário – que não leva em conta uma pletora de trabalhos brutos, mais abertamente não-finalizados que Welles deixou para trás – é meramente apressado.

Desde 1995, o Museu de cinema de Munique, que detém a maioria dos trabalhos não-finalizados e não-lançados de Welles, vem aos poucos reunindo e montando o material disponível para sua eventual apresentação publica e lançamento comercial. Os trabalhos que eu tive a oportunidade de ver incluem intrigantes raridades como Orson Welles' London, um episodio de um filme para a TV que Welles completou no inicio dos anos 70 mas que nunca foi exibido publicamente. Uma serie de vinhetas apresentando Welles numa variedade de papéis – a maioria de natureza auto-paródica– London toca em assuntos tão diversos como 'Swinging London' e Winston Churchill, revelando um lado desavergonhadamente cômico do cineasta nunca manifestado de forma tão explicita em seus filmes lançados; o filme é uma delicia. Orson Welles' Magic Show reúne trechos de um projeto que Welles filmou aos poucos de 1976 até 1985, com a pretensão de ser um registro cinematográfico definitivo de seus melhores truques de mágica, misturados com elementos de historia e autobiografia alem de passagens narrativas. As passagens reunidas em Munique incluem apenas o material que Welles editou e justapôs com som, mas mesmo nesta bastante abreviada e truncada forma, o projeto tem a aura of de uma obra maior. Talvez Welles tivesse transformado o material num ensaio radical, de forma livre a maneira de Verdades e Mentiras (1975). Como ele permanece, o filme possui todo o mistério e controle enigmático de qualquer grande show de mágica e confirma a maestria de Welles nesta arte.

Até o trabalho em Munique estar completo, uma visão adequada do cinema de Welles deve permanecer alusiva, uma verdadeira serie de compreensões parciais. O cânone lançado de Welles é somente a ponta do iceberg em termos da obra que este cineasta produziu durante sua vida e – na melhor das hipóteses – um guia fundamentalmente abreviado de seus extraordinários talentos e preocupações de toda vida.

II. The Dreamers

Para mim, o mais sedutor de todos os projetos que Welles não foi capaz de completar ou lançar durante sua vida é The Dreamers. Escrito em 1978 em colaboração com Oja Kodar – a mais próxima companheira e importe colaboradora criativa de Welles durante suas ultimas duas décadas de vida – e continuamente revisado até sua morte, o roteiro é baseado em dois contos de Isak Dinesen, "The Dreamers" e "Echoes." A partir deles, Welles e Kodar tramaram o conto da cantora de opera Pellegrina Leoni, que, depois de perder sua voz num incêndio, se determina a abandonar a própria vida, desejando a partir de então a viver a vida de muitos. Seu amigo, o mercador Marcus Coccoza (depois mudado para "Kleek" por Welles e Kodar), a segue por todo o mundo, uma presença quase imperceptível que olha por ela. O termo musical 'da capo,' que se traduz literalmente como "do começo," é usado ao longo dos dois contos de Dinesen e era o titulo original do roteiro, sua metáfora de partir do zero e começar de novo sendo de obvia relevância.

Dinesen era a autora favorita de Welles e ele tinha a muito desejado levar a obra dela para as telas, um objetivo que ele 'oficialmente' realizou somente uma vez em sua impressionante adaptação de 60 minutos de A Historia Imortal de Dinesen (produzido pela televisão francesa em 1968, este é talvez o mais poético e evocativo de seus filmes finais que foram finalizados e lançados). Alem de ser critico do Chicago Reader, Jonathan Rosenbaum tem escrito de forma extensa e astuta sobre Welles, servindo como editor de Este é Orson Welles e escrevendo numerosos artigos sobre o diretor. Rosenbaum sugere um várias de razões do porque The Dreamers possa ser visto como o mais pessoal de seus projetos finais: "Uma coisa que é bastante interessante para mim – e eu já argumentei isso antes – é que Welles é mais pessoal em suas adaptações. Muitas pessoas pensam que Cidadão Kane (1941) ou The Big Brass Ring são bastante pessoais, e eles são de certa forma. Mas de fato, ele era ainda mais pessoal em Don Quixote e Soberba (1942). Este são seus filmes mais pessoais, junto a Falstaff (1965) e The Dreamers"2.

"Eu acho que The Dreamers é pessoal por diversas razões," continua Rosenbaum. "É pessoal por conta da fantasia de ser outras pessoas. E por causa de Oja e da importância de Isak Dinesen." Outro que divide esta opinião é Bill Krohn, um prolífico autor e critico cinematográfico que tem trabalhado como correspondente em Hollywood da Cahiers du cinéma desde 1978. Em 1985, ele anunciou a descoberta de grandes porções do abortado documentário brasileiro de Welles – a muito pensado como perdido – que mais tarde foi lançado postumamente como It's All True (1993). Isto o coloca numa posição única para avaliar os méritos dos filmes não finalizados deste grande cineasta. Três anos antes dele 'redescobrir' It's All True, Krohn entrevistou Welles para Cahiers e tocou rapidamente n ressonancia entre a história de The Dreamers e a vida e carreira de Welles. "Quando nos chegamos por volta de Verdades e Mentiras, ele orgulhosamente apontou que não havia um simples plano de Welles nele, parte porque muito do material foi filmado por [Francois] Reichenbach mas também porque ele disse ter ficado cansado de fazer ‘planos de Welles’. E ele disse que em The Other Side of the Wind, não havia nada dele. Havia ou coisas filmadas por Jake – o diretor interpretado por John Huston, que seriam num estilo interessante, mas de acordo com Welles não no dele – ou material filmado com uma variedade de câmeras por estudantes da AFI. Eu disse, 'Bem, parece que o seu lema poderia ser o lema de Pellegrina em "The Dreamers": 'A partir de agora, Marcus, eu não serei uma pessoa. Eu serei muitas pessoas agora.' E ele disse, 'Nós filmamos esta fala a noite passada.'"3.

Krohn segue, "Em termos de roteiro e trama, era uma tentativa de conclusão, eu acho, do período de errância e independência. E ele se identificava com este dialogo, 'Eu serei muitas pessoas agora.'" É difícil não concordar com os sentimentos de Rosenbaum e Krohn. Ao contrário de The Big Brass Ring – outro roteiro de Welles e Kodar escrito no início dos anos 80 – The Dreamers nunca foi concebido como um projeto explicitamente comercial. (De fato, foi apenas após Welles se ver incapaz de achar financiamento de estúdios para The Dreamers que seu amigo e cineasta Henry Jaglom, sugeriu que ele escrevesse o que se tornou The Big Brass Ring, com o intuito de que um papel para uma grande estrela estivesse escrito nele4.) Neste sentido, The Dreamers talvez possa ser vista como uma mais pura visão sobre o coração de Welles do que seu primo mais famoso (que, afinal, é mais famoso basicamente por conta de sua publicação póstuma e por mais tarde ser filmado pelo diretor George Hickenlooper), um grande resumo dos temas que obcecaram Welles pela maior parte da sua vida, contada pelas palavras de uma escritora que ele amou.

Quando eu sugeri para Oja Kodar que The Dreamers talvez pudesse ser tido como o mais pessoal dos últimos projetos de Welles, ela primeiro me corrigiu dizendo que The Cradle Will Rock – um não-produzido roteiro autobiográfico de Welles sobre seus esforços na montagem da opera de Marc Blitzstein do mesmo nome em 1934 – era, ao seu ver, o mais pessoal, enquanto também enfatizava seu continuo esforço para completar The Other Side of the Wind 5. Mas Kodar continuo dizendo que em muitos sentidos The Dreamers era sem duvida um esforço de singular investimento pessoal para Welles, comentando, "O fato de que lutou por The Dreamers por um tempo tão longo e gastou muito dinheiro e começou a filmar algumas coisas – como sempre com o seu próprio dinheiro – neste sentido, talvez alguém possa se referir a este projeto como sua última coisa mais importante." E quando eu lhe revelei a opinião de Krohn – a qual compartilho – que Welles se identificava profundamente com o sonho de Pellegrina, ela disse, sem hesitação, "Absolutamente. Neste sentido, sim." Descrevendo como ele antevia o projeto para Krohn, Welles disse, "Bem, é numa grande escala, mas ele precisa ser feito de forma terrivelmente perfeita e bela, numa base ligeiramente irreal porque é o verdadeiro romance gótico, você sabe, é pesadamente romântico e sonhador e por ai vai"6. O roteiro, sedutoramente sugestivo desta visão, é um dos melhores que eu já li.

III. Um filme caseiro

E todavia, como Welles também indicou para Krohn, ele não é não-produzido no completo sentido da expressão. The Dreamers nunca foi completado e lançado, mas Welles filmou em torno de 25 minutos de material para o filme (excluindo cenas refilmadas) em 35mm e formato de tela larga 1:85 entre 1980 e 1982. Inicialmente, estas seqüências foram com quase certeza pensadas como testes ou material promocional para interessar potenciais produtores ou financiadores; a primeira série de filmagens em 1980 foram sem nenhuma ambigüidade feitas com este objetivo7. Mas quando Welles se viu incapaz de encontrar financiamento externo (a então recentemente formada companhia de Hal Ashby, Northstar, expressou interesse inicialmente, fornecendo um pagamento inicial para que Welles reescrevesse o roteiro somente para abandonar o projeto quando leram a nova versão8; Oja Kodar também se lembra do roteiro ter sido rejeitado pela Miramax e a BBC9) uma interpretação aceitável é de que ele começou a simplesmente filmar o filme sozinho cuidadosamente, de pouco em pouco. Tendo que Welles havia se constantemente auto-financiado em seus próprios projetos por mais de uma década à época que ele começou The Dreamers – e havia primeiro feito isto em sua magistral produção independente de Otello (1952) 30 anos antes – não΄e nenhuma surpresa que ele tenha começado a filmar sem financiamento externo ou um elenco completo formado. (The Other Side of the Wind havia sido filmado por quatro anos antes de John Huston ter sido escalado como protagonista, Jake Hannaford; Welles simplesmente filmou entorno do personagem até então.)

Gary Graver – o indispensável e brilhante câmera de Welles que fotografou todos os seus projetos a partir de 1970 – argumenta contra esta interpretação, dizendo, "Porque ele nunca pretendeu ir em frente e fazer todo o filme com oi seu próprio dinheiro ou algo do tipo. Então as pessoas pensam que é outro trabalho não-finalizado. Isto não é verdade. Ele nunca foi pensado para ser finalizado com financiamento próprio"10. Da sua parte, Kodar acredita que Welles teria continuado a fazer o filme com seu próprio dinheiro11, mas o que importa no final é que ambos Kodar e Graver concorda que a maioria do material que Welles chegou a filmar acabaria no filme final. "Por causa da falta de dinheiro, etc., nos tentamos filmar no nosso próprio jardim e como o resultado final ficaria e assim por diante," Kodar diz. "Mas com bastante freqüência, os testes acabavam saindo tão bem, que tudo que nós rodamos na Hollywood Boulevard estariam no filme finalizado." Isto sugere que há uma grande validade para a crença de Rosenbaum de que a distinção entre testes e material promocional e seqüências pensadas para o filme final talvez nem mereçam ser levantadas no caso de um diretor como Welles.

Rosenbaum diz, "Welles as vezes mudava de idéia sobre as coisas. Então ele poderia ter feito algo por uma razão num momento e acabar usando-o de forma diferente mais para frente. É muito difícil se pensar em planos fixos com Welles. Eu acho que ele estava em constante mudança. Então, conseqüentemente, acho que é um tipo de questão sem resposta." Alem disto, como Krohn nos lembra, "Sabe, ele disse que estava filmando testes para Cidadão Kane quando já estava filmando material que acabou no filme." Na entrevista de Krohn com Welles, o diretor ofereceu seu próprio olhar sobre seus idiossincráticos métodos de trabalho, falando aqui especificamente sobre o que ele havia completado de The Dreamers: "Toda vez que me vejo interessado num filme que pretendo fazer, eu freqüentemente faço uma cena ou duas dele, o que levanta a lenda de não finalizar os filmes. O que eu estou realmente fazendo é tentando achar como eu quero fazer este filme. Sabe, eu deveria chamá-los de testes ou algo do tipo."

As seqüências que Welles deixou incluem somente dois atores, Kodar como Pellegrina e ele como Marcus. Mesmo assim, Kodar se lembra de Welles mencionar Timothy Dalton para o papel central de um amante de Pellegrina em uma de suas muitas vidas, Lincoln Forsner; Peter Ustinov como o Barão Clootz; Oliver Reed como Guildenstern; Bud Cort como o piloto; e a velha amiga de Welles Jeanne Moreau como uma velha senhora que é vista num clube noturno em Veneza em certo ponto do roteiro. Para o papel crucial de Emmanuelle – um menino que Pellegrina encontra e descobre ter uma voz assustadoramente similar a sua até sua tragédia – ele pensou em escalar um desconhecido menino mexicano12.Talvez num momento diferente, Welles anteviu um elenco diferente composto na maioria por atores desconhecidos. Como Graver relembra, "Nós iríamos filmar na Europa e ele iria usar atores ingleses, porque eles estavam mais próximos e eram melhores que os atores de Hollywood. Isto é o que eu me lembro, sobre os atores. En~tao nós realmente não tínhamos elenco...eles iriam ser jovens, atores ingleses em início de carreira vindos do teatro ou apenas começando no cinema." De qualquer maneira, pode-se presumir que estes papeis seriam escalados assim que Welles ou achasse financiamento ou se resignasse a filmar o filme inteiro com o próprio dinheiro.

IV. "Nós Três"

Welles usou sua casa em Hollywood como cenário. Como Kodar contou a Stefan Droessler do Museu de Cinema de Munique em uma entrevista conduzida em 2002, "...nossa casa, há apenas 30 metros da Hollywood Boulevard, foi simplesmente transformada em uma vila milanesa do século XIX...Como eu disse nós tínhamos pouco dinheiro e as únicas despesas que Orson poderia se permitir foi comprar um pedaço de grade de ferro, três ou quatro metros de grade, que você pode ver na cena da última despedida de Pellegrina para Marcus Kleek. Foi o unico trabalho de construção de cenário que nós usamos na nossa casa"13. A produção foi minimalista. A equipe era composta essencialmente de Welles, Kodar, e Graver, com Welles vestindo, como ele dizia nos seus primeiros dias no teatro, muitos chapeis diferentes, uma metáfora adequada para um filme sobre uma personagem que sonha viver a vida de muitas pessoas diferentes. Kodar diz, "Ah, ele fez tudo. Ele até algumas vezes iria fisicamente pegar uma lâmpada ou similar e colocar em algum lugar onde ele achasse que deveria ficar. Orson é realmente o operador, o eletricista, o foquista"14.

Graver caracteriza sua colaboração com Welles desta forma: "Bem, Orson fazia tudo. Quero dizer, basicamente a sua forma de trabalhar era, era o seu olhar, sua visão e ele dizia o que queria, e eu sugeriria certas luzes e ele dizia Sim ou Não. Minha responsabilidade era uma técnica, fazer garantir que o equipamento de iluminação estivesse lá e que a película estivesse correta e que nós tivéssemos a exposição certa." Mas a importância de Graver nos filmes finais de Welles não pode ser subestimada; Welles encontrou em Graver o mais magnânimo e leal dos colaboradores e foi em colaboração com ele que Welles fez alguns dos seus mais aventurosos experimentos em estilo e forma.

"As pessoas iam e viam," Kodar continua. "Numa manhã nós teríamos um foquista, na outra noite nós teríamos outra pessoa. Sabe, nós não poderíamos juntar uma equipe e dizer, 'Agora, rapazes, vocês irão trabalhar por dez dias ou duas semanas ou algo do tipo.' Gary apenas traria quem fosse que estivesse livre e alguém acabaria vindo por muito, muito pouco dinheiro – ou absolutamente nada – e foi feito dessa forma. Mas basicamente nós três – nós éramos a equipe." Kodar lembra-se da filmagem como um momento feliz, de qualquer forma, e me recontou um incidente que parece sumarizar a natureza atire-e-corra da produção. Ela disse, "Nós estávamos fazendo algumas coisas com fumaça – ele queria o efeito de um nevoeiro. E nós trouxemos uma dessas maquinas de fumaça e alguém da vizinhança chamou os bombeiros por conta da fumaça. Então aquela grande, brilhosa, maravilhosa maquina chegou com aqueles caras vestidos em amarelo com capacetes em suas cabeças e tudo. E o chefe dos bombeiros correu para o nosso jardim e, aquela altura, nós já sabíamos o que iria acontecer e escondemos tão rápido quanto pudemos todas aquelas peças. E Orson sentou de baixo daquela arvore com seu charuto, fumando o charuto. E o homem veio e claro que percebeu que ele estava filmando algo. E Orson inocentemente olhou para ele e disse, Estou aproveitando a tarde!' E o cara falou, 'Vejo, Sr. Welles, mas não me faça acreditar que toda esta fumaça veio do seu charuto!'"

Graver também se lembra do período no set de Welles com alegria, dizendo, "Eu nunca fui de lhe dizer 'Não,' sabe. A última cena que acho que filmamos foi na casa e Orson continuou adicionando mais luzes e outro gerador e continuou iluminando e iluminando e iluminando. Eu disse, 'Deus, tenho que garantir que o sistema agüente mais luzes.' 'Bem, nós precisamos de uma luz ali, outra coisa lá, precisamos de um contra-luz, precisamos de uma luz na arvore.' Então eu falei, 'Bem, eu vou precisar de outro gerador, vou precisar de mais equipe.' 'Bem, arranje-os!' E depois, quando nós terminamos e ele pegou a conta, foi algo como dois mil dólares ou parecido. Ah, ele ficou louco comigo! Ele disse, 'Porque você me deixou fazer aquilo!' Eu disse, 'Eu?' Ele disse, 'Gregg Toland filmou Cidadão Kane com apenas uma luz em várias cenas! Gregg nunca fazeria isso!' Eu disse, 'Bem, ok.' Eu não vou virar para ele e dizer, 'Não, nós não podemos ter todas estas luzes!'"

Eu tenho encontrado vários fãs de Welles que tem zombado da idéia de Welles filmar porções de seu elaborado filme de época essencialmente na sua sala de estar e quintal. Mas se John Cassavetes repetidamente usou sua casa na California como locação principal de seus filmes, porque nós deveríamos olhar feio para Welles por fazer o mesmo? De fato, é um testamento ainda maior para a natureza pessoal e interior do projeto que Welles tenha feito tal escolha, mesmo que tenha sido trazida por necessidades financeiras. Rosenbaum acredita que nesse sentido o projeto se alia com o trabalho de figuras como Cassavetes, Godard, ou Mailer, todos os quais usaram suas casas como cenários em diversos momentos. "Seu cinema é um cinema de artesanato manual," Rosenbaum diz. "E acho que meio que o queria dessa forma e é por isso que a idéia de um projeto de grande orçamento talvez tenha sido um tipo de sonho para ele."

Krohn oferece sua própria interpretação, identificando o cinema de Welles durante o período como parte de uma tendência que ele classifica como "M.I.A." (Nota do Trad.: Missing in Action, expressão militar usada para identificar soldados perdidos). "Eu introduzi o termo M.I.A. para Welles e Nicholas Ray, que havia feito, claro, We Can't Go Home Again (1974)," Krohn disse. "E eu disse, sabe, estas pessoas são tidas como perdidas, mas elas foram perdidas em ação, significando que elas continuavam trabalhando." Krohn segue mencionando King Vidor, Samuel Fuller, e Budd Boetticher como diretores cujo trabalho veio a cair nessa categoria em virtude da muito pessoal, natureza do artesanato pessoal de suas experimentações de fim de carreira. "Estas são pessoas que não permaneceram ao redor de Hollywood fazendo o que eu chamaria de filmes industriais, como Don Siegel fez, como Robert Aldrich fez, mas meio que saíram para explorar o mundo. Jerry Lewis foi para a Suécia e fez um filme que provavelmente nunca será visto. Eles viram um novo mundo se abrindo para realizar filmes e eles queriam flexionar seus músculos naquela direção," ele continua. "Eles estavam cheios de Hollywood ou provavelmente daquilo que Hollywood estava se transformando. E Welles foi o primeiro a sair. Então há muitos destes filmes caseiros."

V. The Dreamers como um filme maior de Welles

E o que é o filme caseiro de Welles The Dreamers? Com certeza, trata-se de uma visão incompleta – cacos e fragmentos de um todo maior que nunca irá ser. Mas espalhados ao logo destes trechos estão algumas das mais delicadamente belas – e revolucionarias – passagens da obra de Welles. O trabalho mais substancial que Welles completou foi em duas seqüências. Passadas num monastério onde Pellegrina jaz morrendo próximo ao fim da história, a primeira cena mostra Marcus contando a historia para Lincoln Forsner e outros fora do quadro. Fotografada em preto e branco, esta seqüência é marcada pelos supremos talentos oratórios de Welles e os visuais espartanos característicos da fase final de sua obra. Kodar diz que pretendia utilizar estes planos quando ela ainda esperava realizar o filme sozinha após a morte de Welles, algo que Graver acredita Welles ter antecipado em sua própria decisão de rodar a seqüência. Graver fala, "Ele a queria pronta, acho, de certa forma, caso alguma coisa acontecesse a ele, poderia se ter no filme, preparando tudo. Porque pelo resto do filme, você poderia contar com uma figura quase nas sombras, observando tudo, olhando ela, olhando por ela. Mas ele preparou tudo porque queria que Oja tivesse o material."

Desenvolvendo a noção de Graver de Welles como uma sombra literal e figurativamente em The Dreamers, Kodar diz, "Porque em muitas coisas, você percebe Orson de certa forma me dando liberdade. Porque ele tinha problemas de saúde, e ele tinha planejado filmar muitas cenas em Toledo e algumas cenas de neve na Suíça,etc., isto teria sido fisicamente difícil para ele. E ele planejava usar um duble. Porque, finalmente, ele disse, 'eu sou sua sombra,' para Pellegrina. E ele teria sido a sombra por todo o filme, exceto, claro, algumas seqüências que precisássemos da sua voz." Conseqüentemente, Kodar teria precisado de pouco mais que um bom duble vocal de Welles, para poder fazer o filme depois de sua morte e ainda conseguir 'escala'-lo como Marcus. Ela diz, "Isto teria sido um pouco difícil. Mas – talvez erroneamente, talvez eu pense muito pouco de mim –acho que teria superado as dificuldades."

A segunda seqüência maior que Welles começou a trabalhar foi a da despedida de Pellegrina, seu adeus para Marcus enquanto ela se prepara para começar a primeira de suas muitas novas vidas; a nona versão revisada do roteiro indica que a cena da despedida era para ser entrecortada com o monologo de Marcus no monastério, apresentada como um flashback. Welles filmou a seqüência duas vezes, ambas em cores abundantes. A primeira versão, passada na sala de estar de Pellegrina enquanto ela e Marcus discutem seus planos, é elaboradamente montada, mas claramente incompleta. Welles apenas deixou áudio de suas falas; ele nunca faz contracampos de si e suas falas são ditas com sua voz, não com o sotaque que ele usa no resto de Dreamers. Kodar diz, "Este era realmente um teste. Nós queríamos saber como esta cena poderia funcionar com aquela decoração fraca."

É, portanto, a versão alternativa da seqüência da despedida que permanece na memória. Para esta versão, Welles escolheu uma cenário diferente, movendo a maioria da ação para o jardim de Pellegrina, e reduzindo consideravelmente o dialogo. Mais importante, de qualquer forma, ela pode ser tida como essencialmente completa; de fato, é a única porção do trabalho em The Dreamers que Welles completou deixando totalmente montado. Absolutamente auto-contida, em seus próprios termos quanto um filme de Welles como Cidadão Kane ou Falstaff – e indiscutivelmente mais um filme de Welles do que um filme completamente alterado como Grilhões do Passado (1955), porque é todo dele. Até onde vai a opinião de Krohn, esta cena existe para resumir todo o material de The Dreamers. "Para mim, o material dos interiores é muito bacana, mas os fragmentos de The Dreamers que me importam – e eles me emportam tanto quanto, digamos, "Kubla Khan: por Coleridge – são os fragmentos do jardim, que são editados juntos e ele deixou realmente daquele jeito," ele diz. "Eu sou comovido por poucas coisas em cinema tanto quanto o fragmento do jardim . É como aquela grande canção de Bob Dylan ou dos Beatles que você nunca consegue parar de escutar."

Joseph McBride, autor de um dos melhores estudos críticos de Welles publicados, e de uma biografia do diretor em finalização, se enche de elogios para todo o material filmado por Welles, dizendo, "Eu acho o material emocionalmente assombroso e visualmente encantador. Todo o material é belo, alguns dos melhores momentos de Gary Graver "15. Mas McBride concorda com Krohn que o fragmento do jardim – para adotar o útil e eloqüente nome dado por Krohn – possui um tipo especial de brilho, comentando, "Talvez o mais belo plano de The Dreamers é o de Pellegrina no jardim." No fragmento, nós primeiro vemos Pellegrina sentada sozinha em sua vila, olhando para suas sombras enquanto fala com um Marcus fora de quadro. Ela vê uma mulher lá fora, e seu sonho a toma por dentro enquanto ela diz, "Marcus, eu poderia ser aquela mulher. E depois eu poderia ser outra pessoa! Existem tantas mulheres que eu poderia ser." O próximo plano na seqüência nos leva para o jardim de Pellegrina', enquanto Kodar entra pelo lado direito da tela anunciando para Marcus (voz de Welles, mas – consistente com as descrições de Graver e Kodar – visto apenas como sombra) que "Pellegrina esta morta" e procedendo contando-lhe seus planos de viver a vida de muitas pessoas daquele momento em diante.

A modesta decoração de cenário de Welles é vista apenas esporadicamente na escuridão da noite. A fotografia é tenebrosa e preta, com pontos de cor – o anel de ouro que Marcus dá a Pellegrina antes dela partir, por exemplo – enriquecendo a paleta cuidadosamente escolhida de Welles. Sempre tentando escapar, como Krohn explica, a qualidade "cartão postal" da maior parte da fotografia em cores, Welles finalmente conseguiu isto aqui, na melhor seqüência do mais pessoal dos seus últimos projetos. Em termos de composição de quadro, trata-se de um fragmento extremamente intimista, composto substancialmente de closes e planos médios de Pellegrina. Alguém pode especular que da mesma forma que Welles abandonou o insolente e chamativo estilo de seus primeiros filme no momento que se dedicou a fazer um trabalho tão impressionantemente simples como Falstaff, ele similarmente abandonou seu muito comentado desdém para com closes no momento de fazer um filme tão internamente focado como The Dreamers. Pellegrina se move pelo seu jardim seguida da sombra de Marcus, seu protetor e idolatrador, e no processo antevendo o que será o rumo de sua vida a partir dali: sempre se movendo, sempre em transição, mas sempre seguida por seu amigo. Marcus ouve pacientemente enquanto ela situa e resitua o que se tornou o enunciado de sua missão: "Ah, Marcus," ela diz, "eu serei muitas pessoas."

De forma impressionante, em diversos momentos Welles corta exatamente quando a figura de Marcus se move pela tela, geralmente na diagonal; a precisão da montagem de Welles é vista com grande efeito aqui. Ela conclui seu monologo de pé contra um portão de ferro em uma imagem que lembra plano similar da Virginie de Jeanne Moreau em A História Imortal e que reflete o que ela sente ter se tornado um encarceramento na vida de Pellegrina, drenada como aquela vida se tornou de tudo que lhe dá sentido: sua voz16. Esta seqüência é sobre sua compulsão – sua necessidade – de escapar desta prisão e se torna sobre o sonho que todos nós temos, em maior ou menor grau, de se ver livre do encarceramento e forças invisíveis que constitui nossas próprias vidas.

Desenvolvendo as observações de Krohn sobre as relação entre o sonho de Pellegrina e a carreira de Welles como cineasta, Graver observa, "Orson tinha um grande estilo e você podia dizer que era Orson, mas eu sempre insisto que A Marca da Maldade (1958) é totalmente diferente de Cidadão Kane. E Falstaff é tão diferente de A Dama de Shanghai (1948). Mas mesmo assim você sente a mão de Orson em tudo. Ele sempre quis fazer as coisas diferentes. Ele nunca quis se repetir." Para Welles, o encarceramento num estilo cinematográfico seria tão mortal do que o da personalidade. Vendo esta seqüência, se tem a estupeficadora sensação de ter localizado a origem da filosofia de diversidade e a renuncia da autoria de Welles, explicada completamente em Verdades e Mentiras e continuada tematicamente aqui. O fragmento do jardim conclui com Pellegrina perguntando lastimosamente, "O que você acha, Marcus, do paraíso que eles tanto falam? Ele fica em algum lugar?" Para um diretor que continuamente retornou a idéia de paraísos perdidos – a infância de Kane, a eminência dos Ambersons antes da era do automóvel, a doce Inglaterra antes da traição do príncipe Hal – esta fala pode ser vista como um sumario de uma obsessão de toda uma vida. E algo mais, também, a questão de Pellegrina "Ele fica em algum lugar?" coloca em dúvida a realidade destes paraísos, e se ou não Pellegrina será capaz de encontrar um afinal, mesmo que ela realize seu sonho de se tornar muitas pessoas.

O senso de perda na voz de Kodar quando ela reflete que não poderá mais retornar aquele jardim – porque ele traz a tona os grandes triunfos de Pellegrina – é palpável e devastador, um momento de nudez emocional tão grande quanto a rejeição do Princípe Hal a Falstaff ou ou a confusão de sentidos provocada pela simples palavra "rosebud" em Cidadão Kane. Tão bem realizado como o fragmento é do ponto de vista visual, não deixa de ser o poder e a generosidade das atuações que indiscutivelmente contam para sua grandeza final, relembrando mais uma vez que para Welles o ator é o cinema. Kodar brilha, completamente justificando a decisão de Welles de tê-la como estrela do filme. Sua dicção da fala "Esquerda para direita, Marcus, mas nunca para casa outra vez" – se referindo a decisão de Pellegrina de deixar sua vila e sua vida, e do anel que Marcus lhe deu, que ele diz ira guia-la da "esquerda para direita" – é um momento impressionante, tão bem atuado como poucos momentos de Welles.

Em estilo e tom, o mais próximo análogo do fragmento do jardim no cânone de Welles é sua outra adaptação de Dinesen, A História Imortal, com sua poesia visual discretamente expressiva e tom desolado; este dificilmente chega como surpresa tendo com apto Welles se mostrou lá em achar correlativos cinematográficos para linguagem e visão de Dinesen. Mas eu penso que o fragmento do jardim em The Dreamers talvez seja ainda maior e certamente mais pessoal, e não apenas por Welles. The Dreamers representa o ápice da colaboração criativa entre Welles e Oja Kodar, sua mais próxima amiga, colaboradora, e musa. Como Kodar descreve sua colaboração com Welles para mim, ela reduz seu papel na escrita e concepção de The Big Brass Ring e coloca ênfase em seu envolvimento em The Dreamers. "O fato é que em The Dreamers, eu realmente trabalhei muito com Orson. Eu diria que a minha contribuição é muito, muito grande," Kodar explica. "Há seqüências eróticas que o tornariam provavelmente, depois de The Other Side of the Wind, o mais erótico filme que Orson fez. E que, por exemplo, não estavam no roteiro original. Ele me chamava de 'minha especialista erótica.'"

Como Graver me explica, a participação de Kodar em The Dreamers foi fundamental, dizendo, "Ah sim. Ela se tornou mais e mais envolvida no roteiro e produção. Claro que, Oja conheceu Orson antes de mim por uns 5 ou 6 anos, mas quando ele começou a confiar em nós, ele iria nos deixando ir e fazer as coisas por ele. Como cenas, sabe, as que não envolvessem os atores principais. Em The Other Side of the Wind, ele dizia, 'Sabe rapazes, vão e façam isso.' E ele desenhava um rascunho e dizia, 'Aqui está o que eu quero.'" Kodar segue apontando sua própria satisfação e identificação com a personagem de Pellegrina, dizendo, "Eu odiaria ser pomposa ou pretensiosa, mas eu continuo sendo e já fui muitas pessoas diferentes.Eu tinha estas diferentes profissões e eu viajei muito. E em muitos sentidos – e Deus me perdoe por dizer isso – eu sou Pellegrina. E é um tipo de coisa intima o que eu vou dizer, mas ao mesmo tempo ele vinha sendo o meu Marcus Kleek e ele vinha sendo todos aqueles amantes que viviam atrás dele. Em minha vida, eu fugi dele algumas vezes. E ele me perseguiu."

A estréia na direção de Kodar, Jaded (1989), tem algumas conexões tênues com The Dreamers. Apesar deste completamente idiossincrático filme ser totalmente uma obra de Kodar – e, apesar de com exceção de uma seqüência, conter nenhuma referencia ao cinema de Welles – ecos de The Dreamers são sentidos ao longo dele,na profissão da personagem central (uma cantora de ópera) e no (majoritariamente sugerido mas nunca declarado) desejo das personagens em escapar de suas vidas. Maravilhosamente fotografado por Graver em típicas condições de baixo orçamento, o filme é passado na mais miserável das regiões de Veneza, Califórnia e uma repetida piada aponta para as diferenças entre Veneza e a 'verdadeira' Veneza, a Veneza dos sonhos das personagens. Por nada mais, estes paralelos indicam o quanto profundamente Kodar respondeu e se relacionou com a história de The Dreamers.

Mesmo assim temo que apesar de tudo que eu escrevi – a importância de Kodar e Dinesen, as repercussões que os temas da história tinha na vida e obra de Welles, e na singularidade de muito do trabalho completado do filme – que ainda persiste uma tendência automática de rejeitar os fragmentos de The Dreamers como parte da obra de Welles porque eles são exatamente isto: fragmentários, incompletos, sem o contexto que lhes teria dado sentido e valor. Apesar de que seria bobo, mesmo destrutivo argumentar que esta pequena fração de The Dreamers seria preferível ao todo que Welles pretendia completar, seria igualmente tolo negar a magnitude e importância daquilo que ele completou sobre o argumento de que ele não se encaixa nas nossas noções do que seriam os tipos aceitáveis de cinema. Cinema talvez seja a única forma de arte onde não existe mercado para, ou aceitação geral de, obras não finalizadas e fragmentarias. Mas, alguém pode retoricamente perguntar, se este tipo de trabalho é respeitado, estudado, e adorado para aqueles que respondem a eles em outras formas, tais como musica e poesia, porque nós não podemos adotar a mesma atitude para com o cinema?

A comparação de Krohn entre o fragmento do jardim em The Dreamers e o fragmento poético de Coleridge, "Kubla Khan" me soa particularmente apto e provem um útil ponto de partida, uma forma de legitimar o material de Welles achando equivalentes em outras artes. A dificuldade, como sempre, em tornar fragmentos cinematográficos disponíveis, se não de domínio comercial, ao menos de domínio público; sem um lançamento próprio, é improvável que eles comecem a ser aceitos como parte do cânone de Welles, muito menos achar um publico pronto para aprecia-los. A montagem do Museu de cinema de Munique para The Dreamers faz um progresso significante para este ideal, permanecendo como ele esta como o único meio que a maioria dos espectadores terá provavelmente para poder ver o material filmado, ao menos a curto prazo. Por conta disso, me parece importante que esta montagem tenha recebido tantos elogios daqueles que se importam de forma apaixonada pelo material. Krohn esta satisfeito que ela preserve o fragmento do jardim intocado, enquanto integre o resto do material mais bruto dentro de um todo compreensível. De fato, a montagem vai alem disso, inserindo o fragmento do jardim como um flashback durante o monologo de Marcus no monastério, onde o roteiro indica que ele pertence. Joseph McBride diz, "acho que o material montado tem uma certa unidade de estilo e abordagem que faz tudo funcionar bem apesar de sua natureza fragmentária. Apesar de ser frustrante que Welles tenha nos deixando apenas fragmentos do seu projeto completados, os fragmentos são substanciais, e todo o trabalho feito por Stefan Droessler e seus colegas se revela uma coerente versão condensada dos contos de Isak Dinesen." Tendo sido lançada numa conferencia sobre Welles em Mannaheim no outono de 2002, a montagem esta disponível para ser vista no museu de cinema para aqueles dispostos a fazer a viagem até Munique. Como com muito do desafiador, e radical cinema de Welles, a viagem vale a pena.

VI. Novos Capítulos

Mesmo depois da morte do Welles, The Dreamers tem recebido uma atenção especial daqueles que sabem e se importam com ele. Por sete anos, Kodar reteve os direitos e trabalhou para tentar realizar o filme sozinha. "Como ele, eu estive quase, quase a beira de realiza-lo e então as coisas não deram certo," ela explica. Ela é inequívoca em dizer que ela não iria dirigir o filme sem usar o material filmado por Welles de alguma forma. Eventualmente Kodar começou a tentar vender o projeto para outros cineastas. Rosenbaum – tão convencido quanto Kodar da necessidade de se usar as filmagens de Welles em qualquer futuro filme feito a partir de The Dreamers – sugeriu o nome do mestre chileno Raul Ruiz. "Houve um momento quando eu tentei arranjar alguma coisa com Raul Ruiz, quando eu conheci Oja. Eu levei ela para ver um filme do Raul Ruiz. E ele estava interessado em faze-lo. A idéia que eu tinha era algo que incorporasse as filmagens de Welles, porque isso seria de interesse muito maior que outra pessoa faze-lo. Eu digo, para mim a idéia de alguém estar fazendo The Big Brass Ring foi de praticamente nenhum interesse." Mas, por uma variedade de razões, o projeto de Ruiz nunca avançou. Em outro ponto, existiu o boato de que o amigo de Welles, Peter Bogdanovich talvez fizesse o filme17.

Bernard Rose, diretor de filmes como Minha Amada Imortal (1994) e Ivansxtc. (2002), leu o roteiro no final dos anos 80. "Eu fiquei: isto é realmente muito bom, isto é realmente bom, tipo de romance em ritmo acelerado," Rose diz. "E se você leu os contos de Karen Blixen em que ele é baseado, é muito muito próximo. Não é uma adaptação distante. Então você tem que dizer que por mais que o roteiro seja realmente bom, o que é realmente bom são os contos de Karen Blixen. Ambos"18. Contrastando severamente com a decisão do diretor George Hickenlooper de reescrever o roteiro de Welles e Kodar para The Big Brass Ring quando ele o filmou em 1999, Rose pretendeu se manter fiel ao roteiro original. "Eu não acho que ele precise ser reescrito. Eu realmente acho muito bom do jeito que é," Rose diz. "Eu acho que o que havia de maravilhoso sobre ele eram os vários tipos de contadores de história – histórias dentro de histórias dentro de histórias – e ele tratava disso com tanta facilidade no roteiro."

Rose esteve próximo de filmar o roteiro no fim dos anos 8 com o produtor Tim Bevan na Working Title. No meio dos anos 90, ele a produtora Denise DiNovi lançaram a idéia para Amy Pascal na Columbia. "Nós entramos no escritório dela e ela disse, 'Bem, qual a sua idéia?' E eu disse, 'Bem, é um velho roteiro de Orson Welles...' E acho que só cheguei até ali dentro da apresentação e depois Amy Pascal soltou, 'Ah não, eu não vou fazer isso!'" Apesar de Rose talvez tenha chegado o mais próximo de fazer o filme acontecer num contexto de estúdio – incluindo o próprio Welles – ele permanece pessimista sobre suas chances comerciais. "Você não esta falando de algo fácil de vender, pegar este filme e levantar dinheiro com qualquer um porque você não tem como fazer este filme com menos de 15 milhões," ele disse. "É um grande filme de época, tem um elenco bem grande nele, e é muito longo, também – você seria sortudo se conseguisse uma duração de menos de 2:40. E isto é bem longo. E é um filme triste e elegíaco...como você vai vender isto para alguém de 18 anos?"

Se Rose parece de alguma forma resignado com a falta de apelo comercial do projeto, Rosenbaum acredita que Welles nunca abandonou a crença de que seus filmes poderiam chegar a um publico de massa, se eles fossem lançados corretamente. Ele diz: "Uma coisa que sempre digo que acho que era um problema continuo para Welles – porque ele começou como uma figura do mainstream – é que em toda a parte final da sua vida, o único tipo de chance comercial que ele teve foi como um cineasta para o circuito de arte e ele nunca aceitou isso. Acho que isto tornou as coisas mais difíceis para ele." Kodar oferece sua própria analise de porque o filme tem padecido não realizado por tanto tempo mesmo depois da morte de Welles e de Cidadão Kane ser continuamente apontado como o maior filme americano. "Sabe, uma das minhas dificuldades, acho, foi que – não apenas com este roteiro, mas eu já tive experiência com outras coisas – as pessoas tem um tipo de medo de pegar algo escrito por Orson Welles. Eu não sei porque. Se tivesse um filme incompleto e tentasse achar alguém para finaliza-lo, em vez de mim, entenderia que estão com medo. Mas com um roteiro, eu não sei."

Para estima de Krohn, porem, o fragmento do jardim é, a sua maneira, um legado suficiente. "Eu tenho uma atitude tão peculiar em relação a ele e ela poderia ser mal interpretada como algo à David Thomson (nota do trad.: critico cuja biografia de Welles sustenta repetidamente que seus trabalhos não completos deveriam permanecer não exibidos para que preservassem sua aura). Mas eu tenho tanta excitação pelo que está lá que não tenho muito investimento emocional no que ainda poderá ser. Mas se for feito pela pessoa certa, provavelmente poderia ser brilhante." Num resumo final, então, somos deixados com um roteiro marcante, menos de meia hora de imagens maravilhosamente evocativas, e um profundamente belo fragmento – o fragmento do jardim. "Ele tem sua própria existência e é parte da sua obra e devia ser honrado como tal, no mais alto escalão. Mas não com o resto do material," Krohn ri.. "Não com as internas. Apenas o material do jardim. É mágico. É mágica e independente. Ela conta toda a premissa. Ela dá partida a todo o conceito criativo de Welles reduzido a uma sombra desejosa, prestes a desaparecer completamente, e Oja a frente das câmeras, o que é uma das grandes atuações num filme de Welles." Krohn continua, "E ele te deixa com uma questão, O que ira acontecer com esta mulher quando ela seguir com suas viagens? O que aconteceria comigo se eu fizesse isso? O que aconteceria com todos nós se fossemos de alguma forma menos ligado ao que Schopenhauer chamou de principum individuationis, o ego, a personalidade, a pequena e isolada identidade que se torna nossa prisão. E então aquela ultima pergunta, O que é este paraíso que os homens tanto falam?"

Uma pergunta valida talvez seja porque Welles filmou tão pouco – duas cenas centrais e pequenos trechos de outras – em um período tão longo de tempo. Mas Rosenbaum acredita que o que ele conseguiu foi significante considerando todos os outros projetos que ele tinha em andamento na época – tanto projetos próprios como o trabalho que ele fez para outros – e, mais importante, que Welles nunca abandonou seu sonho de completar The Dreamers. "Minha própria impressão é que ele nunca abandonou projetos... A única vez que o encontrei, perguntei-lhe porque tinha abandonado a idéia de fazer No Coração das Trevas.. E ele disse, 'Eu nunca abandonei. Ainda quero faze-lo.'" Kodar completa este pensamento da forma mais sucinta possível, dizendo, "Eu repito o tempo todo – e os amigos de Orson repetem o tempo todo – que não era que ele não queria completar seus filmes. Era apenas que ele não conseguia arranjar o dinheiro para faze-lo. E então ele parava e depois recomeçava e de novo e de novo e assim por diante."

Robert Graves uma vez escreveu, "Não há dinheiro em poesia, mas então não há poesia no dinheiro, também." Graves foi o segundo escritor favorito de Welles depois de Dinesen, e poucos cineastas exemplificaram o axioma de Graves melhor. Como um ator, Welles trabalhou por dinheiro em filmes de segunda linha (dinheiro sem poesia) levantando fundos para subsidiar seu próprio trabalho como diretor (poesia sem dinheiro), em seus últimos dias reencenando o seu sonho bastante particular de paraíso perdido: aquele do verdadeiro independente, o verdadeiro dissidente, quietamente e serenamente realizando suas totalmente caseiras ultimas idéias.

VII. "Eu sonho"

Próximo do final da ultima versão do roteiro de Welles e Kodar para The Dreamers, existe um dialogo entre Lincoln e sua velha contadora de historias Mira.

LINCOLN:
Eu venho muito me perguntado, o que teria acontecido se ela tivesse vivido? O que ela teria feito? Ela poderia ter se transformado em uma dançarina em Mombossa. Ela poderia ter ido conosco para as montanhas numa expedição por marfim ou escravos e se decidido a permanecer lá e sendo honrada por algum tribo guerreira como uma bruxa. No final, acho que ela poderia se decidir por se tornar um belo e pequeno chacal, correndo solta e brincando com a própria sombra, tendo um pouco de calma no coração, um pouco de alegria. Numa noite de lua cheia como esta, eu pensaria estar podendo ouvir sua voz nas montanhas.

MIRA:
E verdade então, que você aprendeu a sonhar?

LINCOLN:
Eu tive que ser derrubado por muitos ventos, mas sim, Mira – pela graça de Deus – Eu sonho.

Peter Tonguette

(Tradução de Filipe Furtado)


1. The American Heritage Dictionary of the English Language, fourth ed., Houghton Mifflin, Boston, 2000.

2. Jonathan Rosenbaum, entrevista com o autor, Marηo 2003.

3. Bill Krohn, entrevista com o autor, Abril 2003.

4. Barbara Leaming, Orson Welles, Viking Press, New York, 1985.

5. Oja Kodar, entrevista com o autor, Maio 2003.

6. Bill Krohn, "Entretien avec Orson Welles," Cahiers du Cinema, 1982

7. Stefan Droessler, entrevista com o autor, Janeiro 2003.

8. Frank Brady, Citizen Welles: A Biography of Orson Welles, Scribner, New York, 1989.

9. Droessler, 2003.

10. Gary Graver, entrevista com o autor, Junho 2003.

11. Stefan Droessler, "Oja as a Gift," The Unknown Orson Welles (brochure), Museu de Cinema de Munique, 2002.

12. Droessler, 2003.

13. Droessler, 2002.

14. Kodar, 2003.

15. Joseph McBride, entrevista com o autor, Maio 2003.

16. Para uma discussγo de como isto se relaciona com os contos originais de Dinesen, veja Sara Stambaugh, "Isak Dinesen In America," www.ualberta.ca/~cins/ lectures/isak_dinesen.htm.

17. Connie Benesch, "As Welles Put It: Just Wait Til I Die'," Los Angeles Times, 27 de Junho, 1997.

18. Bernard Rose, entrevista com o autor, Marηo 2003.