Demonlover, de Olivier Assayas
Demonlover, França/EUA/Japão, 2002

Algo a dizer sobre o trabalho de um cineasta que passa por influências tão marcantes como as de Jean Eustache e John Cassavetes e retoma os moldes primeiros (e talvez mais caros) de obras tão completamente díspares como as de John Woo, Hou Hsiao-hsien e Luchino Visconti? Apenas uma coisa: de Olivier Assayas é melhor esperar o inesperado.

Se existe no seu cinema uma vontade imensa de combate à derivação, ao maneirismo puro e simples, Demonlover figura sem sombra de dúvida como uma obra intrigante, agente e objeto de uma problematização constante e progressiva que o diretor realiza sobre sua própria obra. Irma Vep já insinuava um acerto de contas com uma série de tendências que podíamos observar na produção cinematográfica do período de sua realização (1996): pós-modernidade, novas tecnologias, globalização, diluição histórico-geográfica. Após um projeto pequeno e pessoal como Água Fria, Assayas erige um projeto de cinema ambicioso, resolutamente ligado à contemporaneidade cinematográfica, social, econômica e política do nosso mundo.

O filme sugere uma trama de filme de espionagem ainda no início e é esta a impressão que temos durante boa parte de sua duração. Assayas faz um aproveitamento de ambientes diversos durante esta primeira metade de seu filme: aviões, hotéis, escritórios, aeroportos, metrôs. São desprezados os ambientes menos elegantes ou que não fazem parte do imaginamos ser o cotidiano dos personagens. Conquanto percebemos a personagem de Diane De Monx como alguém em ascensão, o filme mantém esse programa. Mas Demonlover, como Videodrome de Cronenberg e À Beira da Loucura de Carpenter, rapidamente abandona o cenário que num primeiro momento parece lhe dar forma. Somem quaisquer esforços de narrativização, os intérpretes parecem caminhar para um progressivo deslocamento geográfico e existencial, saímos dos escritórios e de um universo de requinte para mergulharmos num universo bizarro composto basicamente por uma fazenda mexicana ou uma casa num subúrbio norte-americano.

Num primeiro momento Demonlover parece ter Irma Vep como referência fundamental (multinacionalidade dos personagens, confrontos diversos entre profissionais de uma mesma área, trabalhos corporativos ditando uma série de tramóias e engodos), mas o decorrer do filme nos mostrará que os pontos de identificação são vários outros. De John Carpenter a Kenneth Anger, de Ingmar Bergman a David Cronenberg, de David Lynch ao próprio Assayas, passando pelo imaginário tecnológico deste início de século (internet, videogames, snuff movies, animação pornográfica) e pelo contexto social-econômico das últimas décadas, Demonlover lentamente se deixa contaminar por tudo aquilo que busca abordar. Memória, corpos, multireferências, deslocamento, filmes, culturas, passeios, mentiras: são raros os filmes que necessitam tanto das elipses, dos fragmentos de informação, da quebra de qualquer continuidade espaço-temporal. Assayas tira aquilo que sempre lhe interessa deste mundo de excesso de informações: seu filme nada mais é que o passear de corpos, formas, cores e texturas pela frente de sua câmera.

Podemos pensar num punhado de cineastas (Claire Denis, Abel Ferrara, irmãos Dardenne) que tiram do corpo dos intérpretes tanto material de cinema. Os filmes de Assayas apóiam-se fortemente naquilo que a câmera em movimento consegue filmar das interações e encontros entre os corpos de seus atores. Sempre filmes de musas (Virginie Ledoyen em Água Fria e Fim de Agosto, Começo de Setembro, Cheung em Irma Vep, Emanuelle Béart em os Destinos Sentimentais), em Demonlover Assayas não faz diferente: um filme que pertence tanto a ele quanto a Connie Nielsen, Chloe Sevigny e Gina Gershon. Uma bela trinca para um belo filme.

Bruno Andrade