Coisas Secretas, de Jean-Claude Brisseau

Choses
Secrètes, França, 2002
As coisas de sempre
Eu gostaria de poder escrever algo formidável
como a frase de Nicole Brenez para The Blackout (Abel Ferrara,
1997), que descreve e sumariza o filme de maneira precisa: "A mais bela
e triste elegia à imagem já feita". Reconhecendo minhas
incapacidades, só consigo declarar o seguinte: Coisas Secretas
é o mais importante filme francês desde Paixão
(Jean-Luc Godard, 1982).
1. Do nascimento da imagem
Vamos direto ao que importa: os
problemas de Coisas Secretas são todos de ordem cinematográfica.
Signos e suas significações, como filmar o trabalho (as
ausências, os fluxos, os corpos e suas trajetórias) e como
fazer da câmera um corpo que responde e se relaciona a tudo isso.
Não há uma cena que desobedeça o programa estético
rigoroso e brilhante que Brisseau institui ainda na primeira cena do filme:
num palco de um strip-club, um corpo feminino nu movimenta-se de
maneira vulgar e absolutamente sensual. A câmera lentamente se desprende
desse corpo, traça um percurso que atravessa o público espectador
da performance e chega no barzinho onde vemos uma garçonete que
igualmente observa. Mestria completa num movimento que é tão
simples quanto perfeito: as duas protagonistas são situadas num
espaço bastante específico (ao qual elas pertencem), suas
ocupações são determinadas rapidamente e o espaço
que as separa nesse início é justamente o espaço
percorrido pela câmera - o espaço que separa uma imagem (de
desejo, de sexualidade) de seu observador (que deseja, que fantasia).
Podíamos estar num filme assinado Fritz Lang (O Tigre de Bengala,
Desejo Humano) ou Brian De Palma (Vestida Para Matar, Femme
Fatale), mas esta imagem de base que fornece o que será vital
à dramaturgia pertence tão-somente e apenas a Brisseau (os
planos que abrem Boda Branca e Anjo Negro são exemplos
deste tipo de sobriedade cênica).
2. A Girl and a Gun (ou melhor
ainda, A Girl is a Gun)
São duas as protagonistas
de Coisas Secretas: Nathalie e Sandrine. A primeira morena, a segunda
loira. Às coisas uma ordem: quem é o objeto de desejo e
aquele que deseja? Essa foi uma das questões que volta e meia durante
a projeção eu precisava retomar, e é apenas uma das
várias que o filme propõe num primeiro momento apenas para
conseqüentemente diluir, confundir ou tornar deliberadamente confusa
e arbitrária. Como nas relações entre o professor
Bruno Cremer e a aluna Vanessa Paradis em Boda Branca ou entre
o advogado Tchéky Karyo e a dondoca Sylvie Vartan em Anjo Negro,
para Brisseau não existe uma linha precisa e irreversível
que separe objeto de sujeito: ambos se confundem na medida em que as tensões
entre as personagens desenvolvem-se, e desta confusão Brisseau
desenvolve toda uma estratégia de encenação. Os movimentos
quase imperceptíveis da câmera - que hora revelam muito pouco,
hora revelam demais -, os embates sexuais entre as personagens, a atenção
dada ao décor como espaço de encontros íntimos
e clandestinos, tudo isso Brisseau concebe não como um mero dispositivo
de representação de sexualidade/sensualidade mas - e é
aqui que percebemos o grande trunfo de sua encenação - como
um cinema que devolve a todas essas coisas (secretas ou não) o
rigor de uma construção, a impecabilidade de uma decupagem,
um sentido verdadeiro de mise en scène; enfim, uma vontade
enorme de cinema.
3. Uma longa tradição
Jamais - nem mesmo em Buñuel,
De Palma ou Almodóvar - o sexo foi tornado material tão
essencialmente cinematográfico, para fins tão deliberadamente
metalingüísticos. Muitos já tentaram impingir uma forma
cinematográfica a estes momentos de onde irrompe uma explosão
descomunal de desejo e volúpia - um grupo bastante eclético
e formado por cineastas tão diversos quanto Orson Welles, Nagisa
Oshima, Carlos Reichenbach, Marco Bellocchio e Claire Denis. É
bem sabido que a sexualidade tem uma vasta relação com a
história do cinema e que tal relação já foi
várias vezes explorada, mas isso não interessa aqui da mesma
forma que não interessa a Brisseau em seu filme. O que de fato
importa é perceber nas imagens - e principalmente na forma como
são encenadas - todos os estágios da sexualidade respondendo
a uma extensa história e como nesta resposta faz-se inevitável
a intermediação de diálogos rigorosos e ambivalentes
com tópicos de difícil abordagem - religião, moral,
sociologia, marxismo, estética, sociedade. Nada mais absurdo e
grosseiro que perceber Coisas Secretas como simples brincadeira
de um diretor que apenas quer ver garotas nuas se tocando quando o que
Brisseau nos apresenta é um estudo severo sobre poder -
do corpo sobre a palavra, do conquistador sobre a conquista, do desejo
sobre quem deseja. Várias etapas de um mesmo problema, e um problema
que jamais abandona seu estatuto de imagem cinematográfica.
4. Coisas secretas
Sexe is cinema. Há
uma cena, e nessa cena um movimento da câmera, que encompassa todo
o brilho do filme: Nathalie e Sandrine trocam carícias num túnel
de metrô, escondidas numa minúsculo e apertado compartimento.
Escutamos o barulho de um trem se aproximando, enquanto as duas ficam
cada vez mais excitadas. O trem passa por elas (Lumière ou Méliès?),
e é neste momento que a câmera muda seu registro: um travelling
reorganiza toda a cena (esse é felizmente um filme composto
por cenas), e nessa mudança do posicionamento da câmera (e
do diretor, pois esse é também um filme de mise en scène)
diante da situação filmada, o túnel do metrô
é transformado em única opção de caminho para
as duas garotas. É a partir desta cena que ambas iniciam o percurso
bizarro que terão de traçar até a resolução,
um percurso que é tanto o resto da caminhada pelo túnel
do metrô quanto os pequenos flertes que as personagens experimentarão
em pequenos corredores, portas entreabertas, banheiros de escritório,
caminhadas pela cidade, conversas por telefone. Este percurso obscuro,
estranho e violento é na realidade o que encaminha Nathalie e Sandrine
rumo à transcendência, ao que de fato é uma ascese
- como em dois dos autores favoritos de Brisseau, Eric Rohmer e Valerio
Zurlini. Não por acaso o reencontro das moças, ao final
do filme, ocorre precisamente quando Nathalie se encontra a caminho da
entrada de uma estação de metrô. Como peça
de arquitetura, música, teatro ou dramaturgia - enfim, como
cinema -, Coisas Secretas revela de pouco em pouco a perfeição
de suas geometrias, das uniões cuidadosas que Brisseau opera para
construir imagens que nos encantam por suas tristes belezas e pela profunda
moral do diretor.
5. Sexe is cinema
E por isso Coisas Secretas,
durante seus cento e quinze minutos de duração, nos oferece
todo o cinema do mundo.
Bruno Andrade
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