Inácio Araújo
e Carlos Reichenbach
No final da tarde do dia 2 de setembro, Inácio Araújo nos
recebeu para uma conversa conosco e com seu amigo Carlos Reichenbach -
que ainda se demourou um pouco em um sebo, mas logo chegou com seu bom
humor. Carlão mora perto do escritório de Inácio,
e aproveitou um tempo livre entre a finalização de dois
filmes para nos encontrar (também estava conciliando no período
a função de jurado de uma mostra de curtas de horror). Foi
no escritório em que Inácio dá aulas de História
do Cinema que Cléber Eduardo, Daniel Caetano e Filipe Furtado tiveram
o prazer de representar a Contracampo nessa conversa.
Daniel – Vamos começar,
então?
Inácio – Vamos
lá. E sobre o que a gente vai conversar?
Daniel – Acho que
inevitavelmente vamos falar de cinema atual. Afinal, vocês são
dois amigos que acompanham a cena cinematográfica com atenção,
sempre com novas e velhas descobertas... (para Carlão) Eu
vi um texto recente seu sobre John Flynn...
Carlão – Mas
espera aí, John Flynn eu acompanho há muito tempo!
Daniel – Certo...
Mas, com relação ao cinema brasileiro atual...
Carlão – Mas
que cinema brasileiro atual?
Daniel – Você
está finalizando dois filmes...
Carlão – Mas
eles não têm nada a ver!...
Inácio – O
Carlão é o cinema brasileiro atual...
Cléber – Vamos
lá, Carlão, como é que você coloca estes seus
dois novos filme dentro da produção de cinema atual deste
últimos 4 ou 5 anos? Como é que ele não tem nada
a ver com a produção recente? Ou como é que tem a
ver?
Carlão – Olha,
primeiro, seria muito arrogante dizer simplesmente que não tem
nada a ver. Tem a ver com certeza, mais com o espírito de produção,
talvez, mas tem... O que eu não vejo muito é qual o perfil
em que se encaixariam esses filmes, tanto um quanto o outro. O que para
mim marca estes dois trabalhos é a independência, são
filmes que trilham um caminho absolutamente independente... Mas, de certa
forma, se você ver pelo prisma de produção e de realização,
eles têm tudo a ver. Cada momento, cada instante nos exige uma estratégia.
Se você não for atrás desta estratégia, e eu
que não parei nem no período do Collor percebo bem isto,
o que acaba transparecendo é que acaba sobrando muita impostação,
muita preguiça de mexer o corpo...
Daniel – Como assim?
Carlão – Transparece
um certo corpo mole mesmo, um discurso de que não dá pra
produzir... Ou você se adapta; percebe que está difícil,
que dá para fazer, mesmo que seja complicado, ou não faz.
Você precisa buscar as estratégias válidas.. Eu mesmo
cheguei até a estudar administração de empresas na
época da Casa da Imagem! O Inácio vai lembrar disso... (para
Inácio) você lembra da gente nessa época, do nosso
projeto?...
Inácio – Claro,
claro...
Daniel – Agora, uma
coisa que tem se dito bastante sobre cinema brasileiro é que este
é um ano onde nós estamos tendo alguns, não sei se
esta expressão cabe nas circunstâncias, mas temos certos
blockbusters nacionais, filmes que vêm tendo um contato com o público
bem forte, uma bilheteria relativamente alta, desde Cidade de Deus,
agora tivemos Deus é Brasileiro e Carandiru. Mas
diz-se também que, por outro lado, falta no mercado o filme de
público médio, porque os filmes com orçamento médio
não estão tendo o nível de público que se
esperava, com raras exceções.
Filipe – O Homem
que Copiava.
Daniel – Claro, O
Homem que Copiava, antes teve o Avassaladoras...
Carlão – Mas
tem que levar em conta que por trás de todos estes filmes tem a
Globo Filmes. Não tem a Globo Filmes, não tem este público,
esta é a grande verdade. O máximo que pode ter é
o público do Amarelo Manga, que faz duzentos mil, é
um público sensacional, mas é um público de filme
independente...
Daniel – Foi o que
antes fez o Cronicamente Inviável.
Carlão – Exato,
exato... Não dá para querer generalizar, mas para conseguir
um público maior que este tem de ter a Globo Filmes!...
Inácio – Ou
então uma das majors, Columbia, Warner...
Carlão – Não
tem nada de Columbia ou Warner, tem que ter a Globo Filmes!
Filipe – O Homem
do Ano, por exemplo, foi distribuído por major e não
deu nada.
Carlão – Exato,
não deu nada, o filme da Casa de Cinema, o Tolerância,
também não deu nada. Porque lançaram as cópias
de qualquer jeito e não deu nada, sempre fizeram assim...
Filipe – Falta justamente
a parte de TV, de divulgação, porque a Globo faz o filme
existir.
Carlão – Você
quer ver um projeto para filme de sucesso para amanhã? Eu tenho
um projeto de anos sobre a rebeldia de uma mulher, já mencionei
ele várias vezes. Adoraria fazer o filme com aquela menina gostosa,
a Kelly Key. Seria um sucesso!... E independente de Globo!...
Daniel – Com a Kelly
Key?...
Carlão – É,
a Kelly Key... Essa menina é fabulosa!...
Daniel – Mas você
já tem uma historia?
Carlão – Tenho,
tenho, claro que tenho... Não sei é se...Quero ver ela ter
a audácia de fazer!...
Daniel – E você
contaria para a gente agora como seria essa história?
Carlão – Não
tem nada de mais, a questão não é essa. Só
que não seria uma coisa ridícula, puramente comercial, de
baixa informação, etcétera... Audácia neste
sentido, porque seria um filme autoral. Quem não ia querer ver
esta mulher na tela grande? Não precisa ser nenhum profeta para
enxergar que este filme que estão fazendo com o padre Marcelo vai
dar público. Esta colaboração é uma coisa
para mim muito interessante, porque me lembra algo das décadas
de 60/70.
Inácio – Este
filme do padre Marcelo eu acho muito interessante, porque ele está
indo a um público que hoje não é mais o público
do cinema. Nós tivemos um filme, que eu não cheguei a ver,
sobre Nossa Senhora Aparecida, feito na Boca do Lixo.
Carlão – Com
o Nelson Teixeira Mendes...
Inácio – Enfim,
estas idéias são válidas, trazem um deslocamento
nesta ordem, porque as coisas andam muito convencionais. Cinema está
virando uma coisa de coluna social.
Carlão – Esta
coisa é muito engraçada... Porque naquela época os
cineastas de verdade, os autores, faziam isso. Roberto Farias, por exemplo,
quando teve o Promessinha, fez Cidade Ameaçada, que foi
um puta sucesso!... Quando teve a história do Tião Medonho,
fez Assalto ao Trem Pagador, que não nasceu para ser um
cult movie...
Daniel – E sim pra
ser um filme de grande público...
Carlão - Exato,
um filme de público, um filme sobre a história do Tião
Medonho, que era algo bastante lembrado à época. Como de
uma certa maneira também era O Bandido da Luz Vermelha,
que era um bandido famoso e o público ia ao cinema atraído
pelo título – e depois descobria que não era nada daquilo...
Inácio - Mas
foi originalmente um filme pra cinema Marabá.
Carlão – Claro,
aproveitando o fenômeno do Bandido da Luz Vermelha... Porque
isto era algo muito comum da época, teve o Massacre no Supermercado,
do J.B. Tanko, que é um filme interessantíssimo, em cima
de um fato que foi capa de caderno policial... e que acaba servindo de
manancial para o cineasta. Hoje em dia, o que se vê é que
a televisão tomou isso, já não há como ter
a rapidez da década de 60...
Daniel – Mas não
é só isso, tem a questão também do mercado
conseguir unir o talento à estrela. Eu estou pensando aqui, por
exemplo, num filme que todo mundo deve estar esperando ressabiado, o da
Sandy e do Junior. E lembro também de outro exemplo que deu errado
alguns anos atrás, que pode até ser que tem tido algo a
ver com distribuição, que é o Cinderela Baiana,
em que a Carla Perez era a estrela...
Carlão – Mas
este é um filme que nasceu para ser errado pela forma de lançamento...
Entre os amigos, nós já prevíamos isto de certa maneira,
porque a forma como ele chegou ao público já foi toda errada...
Porque é um filme que se apoiou na venda de vídeo. O cara
se deu por satisfeito em pagar os custos do filme no vídeo! E ferrou
o sócio dele, que era o Galante... Se deu por satisfeito quando
vendeu o filme para vídeo, e aí é claro que queimou
o filme! E ferrou o produtor! Eu não quero ser advogado do Galante,
mas foi isso que aconteceu, não teve nada a ver com a qualidade
do filme. Até porque qualidade não tem relação
nenhuma com sucesso comercial, tanto é que o maior sucesso que
o Galante teve foi um filme rodado em um semana e montado em um mês,
e foi lançado no Marabá, que foi A Filha de Calígula,
que foi feito assim para chegar nos cinemas antes do Calígula
ser lançado... Porque tem este lado todo oportunista... Ou você
fica ligado nessas oportunidades ou é a TV Globo.
Cléber – Falando
nisso, tem uma certa demanda que vem marcando muito a produção
de filmes, parece haver uma demanda por filmes que tratam de violência,
exclusão social, e que acabam se protegendo pela temática...
e que curiosamente, inclusive, são muitos destes filmes que freqüentam
as colunas sociais, os tais filmes sociais que não saem das colunas
sociais... Me parece que uma parte da crítica fica um tanto acanhada
em analisar estes filmes como cinema, tratando deles só como discurso
sociais. Isto foi claro no Cidade de Deus, no Carandiru
e, de certa forma, no Ônibus 174, estes foram filmes que
as pessoas falaram mais do tema do que do cinema. Vocês acham que
está acontecendo isto mesmo? Que esta é uma linha que ainda
vai durar um tempo? Que são só estes filmes que acontecem
lá fora, que saindo disso não se consegue, por exemplo,
chegar aos principais festivais internacionais?
Inácio – Começando
pelo final, eu sempre achei que, seja em relação ao Oscar,
seja Veneza ou Cannes, nós temos que primeiro satisfazer a nós
mesmos, parar com esta história de só reconhecer os filmes
após o reconhecimento estrangeiro. Quanto ao filme social, pode
durar algum tempo, pode se desgastar, é difícil dizer. Eu
acho que justifica sua existência o bom diálogo que eles
vêm mantendo, isso é sintomático de um certo desejo
por parte da sociedade... Agora, do ponto de vista crítico, tanto
faz que seja o Ônibus 174 ou o ônibus que faz a viagem
normal e não acontece nada, talvez este segundo até renda
um filme mais interessante. Mas aí nós retornamos a uma
questão antiga, sobretudo para quem como eu e você, que escrevemos
para veículos grandes, porque nós escrevemos para um público
que não quer saber muito de cinema, o que acaba te levando até
o conteúdo, e não passando por questões estéticas...
Freqüentemente eu encontro pessoas que vêm até mim e
dizem que "o cinema brasileiro está ótimo, os filmes
são tão bem feitos"... Francamente, tem coisas que eu
gosto, mas não é dos momentos em que eu consiga me entusiasmar
mais. Outro dia eu peguei por acaso, no Canal Brasil, um filme do Victor
di Mello chamado Giselle, que é muito ruim, mas tem algo
ali que é muito verdadeiro. Havia uma preocupação
com o olhar que eu já não vejo mais. Eu me ressinto muito
do público de cinema ter mudado tanto. Ali, diziam que a menina
tinha voltado da Europa, mas você via que ela não tinha cara
de quem chegava da Europa, no máximo ela tinha voltado de Bangu,
mas tudo bem, o filme seguia numa boa...
Daniel- Eu gosto muito
de Giselle...
Inácio – Você
gosta muito? Pois é... Agora, hoje me fica a impressão de
que existe algo muito artificial... Há quem consiga driblar isso,
mas não são muitos. O tipo de exigência do público
é que tem que ter um roteiro bom, tem que ter a fotografia boa,
o filme acaba todo empetecado, um certo novo-riquismo. Engraçado
nisso, talvez seja a época, agora você vê o cinema
argentino, talvez não tenha tanto mais do que nós, mas eles
têm uma questão, enquanto as nossas questões, e a
social é uma delas, ficam sempre num segundo plano. Aqui você
fica numa coisa vaga humanística onde no fim se escamoteia as questões...
Acho que para você ter um grande momento de cinema, você precisa
estar vivendo um momento social coletivo também, por pior que seja
a situação do país. A Argentina mesmo é um
bom exemplo disso. Funciona porque eles têm um objetivo, têm
algo a resolver... Enquanto nós... parece que estamos num breu.
Uma situação meio como a desse filme do Woody Allen, Dirigindo
no Escuro, todo mundo dando um vôo cego sem saber por que está
filmando. Daí você acaba aportando no ponto seguro que é
o problema social e faz um filme, melhor ou pior.
Cléber – Achei
legal você citar o cinema argentino, porque o cinema argentino que
eu venho acompanhado, mesmo quando não tem nada a ver com a Argentina,
tem tudo a ver, porque eles conseguem trazer toda a questão do
país para dentro do filme mesmo que de forma indireta. E me parece
que eles sabem muito bem contra quem eles estão falando, existe
um alvo. Enquanto aqui, nestes filmes sociais, e o Ônibus 174
me parece o exemplo maior disso, existe uma culpabilização
da sociedade inteira, o que acaba gerando uma situação em
que o espectador que pagou o ingresso para ver o filme fica livre da culpa,
porque ela é de uma sociedade abstrata, que são os outros,
ao mesmo tempo que nunca é diretamente o Estado. Não sei
se vocês concordam comigo, mas eu sinto que há uma abstração...
Carlão – Olha,
eu queria discordar de você e do Inácio, porque eu não
vejo nada demais nesse cinema contemporâneo argentino, que, sinceramente,
eu acho uma merda!... Acho tão hollywoodiano e com pretensão
de ir para Oscar quanto o brasileiro hoje. Para mim o cinema argentino
que interessa é o do Subiela e daquele outro cara...
Daniel – O Agresti?...
Carlão – Esse,
o Agresti... Depois da geração deles me desinteressa completamente,
é um cinema para exportação, um cinema de vender
imagem. Um cinema de cara única, inclusive é algo que eu
acho que o cinema brasileiro ainda não tem, que é este cinema
de cara única... Que é uma coisa que eu tenho horror!...
As pessoas ficam achando ótimo, mas para mim os filmes são
todos iguais... Eu acho que, depois deste enterro apressado do cinema
da política dos autores, de certa forma o cinema no mundo inteiro
passou a ficar desinteressante. Eu não gosto deste cinema argentino,
não saio de casa para assistir, não tem filme do Subiela,
nem tem filme de nenhum autor interessante. Só existem algumas
exceções...
Inácio – O
grande cinema sempre é exceção.
Filipe – Teve o La
Ciénega, da Lucrecia Martel, que é um belo filme.
Inácio – É...
Eu acho que o cinema argentino, eu não tenho certeza porque não
conheço o suficiente, também tem os dois lados...
Carlão – Mas
então é a mesma coisa daqui! É o cinema do best-seller,
se você ver bem, todos estes filmes são de livros bem vendidos:
Cidade de Deus, Estação Carandiru - que é
um filme que eu gosto muito -, O Homem do Ano e tal... Então
acabou-se os autores, então vai o que puder, todo este comércio
aí... Voltou o discurso que para mim sempre torrou o saco, que
é o discurso do mercado. O que, para mim, tornou este cinema absolutamente
desinteressante. Agora, você acaba notando certas coisas interessantes.
Vocês falaram da crítica. O cinema italiano parece que deu
uma levantada recentemente, e eu vi uma análise sobre a responsabilidade
da critica nesta volta, é uma coisa muito séria... Eu li
o Stefano Satta Flores, que é um crítico importantíssimo,
ele estava dizendo que a crítica se conscientizou que a função
dela é fazer o público se animar para ir ao cinema ver os
filmes...
Daniel – A obrigação
do crítico é fazer a pessoa ir ao cinema?
Carlão – Não,
você não está entendendo... Eu não quero dizer
que é só pra falar bem. Agora, quando for para falar bem,
tem que falar com entusiasmo! Falta paixão, cacete!... Escrever
com tesão...
Inácio – Sim,
às vezes falta paixão...
Carlão – Eu
sempre digo para o Inácio que as melhores críticas dele
me faziam querer parar de ler o jornal e ir ver o filme naquele instante!..
Lembro que, quando ele escreveu sobre A Bela Intrigante, eu falei
"Porra, eu vou ao cinema ver esse filme agora!". Esta é
que é a grande crítica, esta é a tradição
da grande escola da critica!...
Inácio – Acho
que tem que matizar um pouco as coisas. Porque aqui, no meio desses filmes
todos, nós também temos os filmes do Coutinho, o que é
uma preciosidade... E não acho a questão do best-seller
importante, porque a partir deste material você pode fazer um bom
ou mau filme.
Carlão – Mas
isso é só mais uma coisa.
Inácio – Isso
não é relevante.
Carlão – Mas
é mais uma coisa, é o cara pensando: "bem, o quê
que vai dar certo?"... Quer dizer, isso é o mau oportunismo...
Não é aquele oportunismo bárbaro e nosso.
Daniel – É
só seguir uma fórmula...
Inácio – Eu
sou da opinião de que você pode pegar o best-seller, você
pode partir da fórmula, que não tem problema, o problema
é onde você chega, não donde você parte. Se
você partir do Paulo Coelho e fizer um filme legal, por que não?...
Carlão – Aí
fica esta coisa de ficar tudo com uma cara só, aí, por outro
lado, tem uma coisa que aconteceu agora com a crítica que me chama
atenção pelo que aconteceu em Gramado. Eu nunca vi a crítica
ser tão moralista, tão reacionária, tão babaca...
Daniel – Com relação
a que?
Carlão – Com
relação a tudo, mas sobretudo com o filme do Dennison Ramalho.
Os caras vão reclamar que o Dennison falou três palavrões,
aí na semana seguinte no prêmio da MTV se fala palavrão
o tempo inteiro e ninguém diz nada! Ninguém disse nada,
ninguém escreveu nada!... Ali onde era uma coisa idiota, aquilo
é uma televisão para imbecil! Nunca li textos tão
caretas na minha vida como em relação àquilo lá,
inclusive falando mal de um filme que é um dos melhores filmes
do cinema brasileiro dos últimos tempos!... Um filme que na verdade
reinstitui o melhor do cinema brasileiro, de Mojica a Julio Bressane.
É um filme de uma brasilidade filha-da-puta...
Daniel – O Amor
só de Mãe?
Carlão – O
Amor só de Mãe. É um dos melhores filmes do
cinema brasileiro dos últimos tempos. Teve o Amor só
de Mãe, teve o filme do Carlos Adriano, que também é
uma maravilha. A grande verdade é esta crítica não
está descobrindo mais nada, o que me assusta é isto... Eu
freqüento Gramado faz 20 anos. Todo ano eu ouço a mesma coisa,
que a seleção sempre está uma bosta. Todo ano, segundo
eles, está uma bosta! Tem 20 anos que eu ouço isso, por
incrível que pareça, o único ano que disseram que
a seleção estava bacana foi um ano que ela era bastante
discutível, só com filmes com a cara da Embrafilme. Este
negócio de você taxar que a seleção está
uma bosta é pura preguiça. Se diz por aí que estão
elogiando demais, mas eu não acho que estão elogiando não...
O que existe são alguns filmes fashion, que estes sim as
pessoas têm medo de falar mal.
Daniel – Já que nós estamos falando disso, e retornando
a questão do filme social, você se colocou abertamente contra
o Cidade de Deus...
Carlão – Mas
isso é uma coisa pessoal, na verdade eu nem vi o filme.
Daniel – Você
não viu Cidade de Deus?...
Carlão – Não
vi... Vi o curta que fizeram antes, o Palace II e nem quis ver
o filme depois. Falei para mim mesmo que não ia ver um filme que
era aquilo ali, pra quê que eu vou ver?... Eu vaiei o curta!...
Eu fazia parte do júri em Brasília, mas mesmo assim eu vaiei,
pelo amor de Deus... Não, eu não vou perder o meu tempo...
Para quê ver um negócio que eu já sei que eu não
vou gostar?
Cleber – A pergunta
era justamente sobre estes filmes sociais. De certa forma, botou negro,
pobre, sertanejo ou favelado na tela, há uma sacralização
da obra em função disso. E eu sinto que muito deste verdadeiro
clima de Fla-Flu que aconteceu em relação ao Cidade de
Deus vem daí. Onde quem defendia o filme parecia estar mais
preocupado em deslegitimar as críticas feitas ao filme.
Daniel – Eu também
queria notar o seguinte, que o Cidade de Deus foi comparado em
alguns lugares ao Uma Onda no Ar, pelo menos a revista Cinestesia
fez isso, mas acho que todo mundo que viu os dois filmes percebeu que
CDD tinha uma similaridade muito grande com o filme do Helvécio
Ratton. Só que, apesar disso, salta aos olhos que o Ratton seguiu
uma linguagem tradicional, até de certa forma engessada por uma
série de fatores, enquanto o Fernando Meirelles se antenou com
uma linguagem corrente da nossa época. Nisso daí o filme
do Ratton foi muito criticado.
Inácio – Porque
parecia ser datado de muito tempo atrás.
Daniel – Então,
o espectador pode até não discutir linguagem, mas as opções
do cineasta são decisivas para sua postura diante do filme. O que
eu queria perguntar para o Carlão, mesmo ele não tendo visto
o filme, é até que ponto você acha que se justifica
ser apelativo para chegar a questão que você quer apontar?
A partir de que ponto o caminho em si já torna injustificado a
tentativa de se chegar ao fim?
Inácio – Daniel,
a questão, se você pegar o Uma Onda no Ar, não
é de ser ou não apelativo... A questão é a
seguinte: começa o filme, se eu bem me lembro, um carro de policia
começa a subir a favela, então você vê traficantes
e os rapazes da rádio, volta para a polícia subindo – e
qualquer pessoa que tenha visto meia dúzia de filmes sabe que a
polícia não vai pegar os traficantes e sim os caras da rádio!...
Não dá pra você ter um filme onde você consegue
prever tudo, é muito antiquado. Não dá para comparar
com o Cidade de Deus, que, quer você queira, quer você
não queira, está lá, é de uma eficácia
impressionante. E é uma coisa que nós temos de aceitar,
que se o filme quer se comunicar com o público tem que ser eficaz.
Pode ser moderno como o filme do Meirelles, pode não ser. Eu não
concordo com o Carlão, acho o filme do Babenco quadrado ao cubo,
mas ele é eficaz dentro do que ele se pretende. Consegue com isso
fazer os seus quatro, cinco milhões de espectadores. O cinema tem
este lado, ele não pode ser feito só para os leitores da
Contracampo. Não é todo ele, mas é uma parte dele
que precisa existir.
Carlão – Mas,
independente disso tudo, ninguém aqui tem condições
de definir o que é cinema popular ou não. Mas claro que
ele se torna um sucesso comercial quando ele tem todo um peso por trás,
uma TV Globo repetindo "vá ao cinema"... Eu me lembro duma
novela onde no meio você ouvia um personagem dizer "vá
assistir ao Homem que Copiava!"... Independente dos méritos
do filme, o cara vai assistir. Nós sabemos que o boca-a-boca se
constrói assim.
Filipe – Até
porque, sem isso, não adianta o cara achar que ele seguir a fórmula
que ele acredita vai garantir o sucesso comercial. Pra dar o exemplo do
O Homem do Ano, quando eu fui ver no Pátio Higienópolis
tinha um casal atrás de mim olhando os filmes em cartaz e um deles
perguntou "que filme é este O Homem do Ano?"... Quer dizer,
está ali toda a fórmula do filme policial "popular", mas
o filme não existe.
Cléber – O
tamanho do filme determina até a cobertura que ele recebe da mídia.
Carlão – Acho
que a discussão é outra. O filme pode ser popular, mas não
ser sucesso comercial. Agora, o filme tem que ser honesto!... Quer ver
um filme honesto? Surf Adventures. É um filme que não
mente, ele é pensado para um público que vai lá,
não é roubado, vê surfe e fim de conversa. É
extremamente bem filmado e é um filme verdadeiramente popular.
Talvez eu ou você pudéssemos nem ver, porque ele podia não
nos despertar interesse, mas não importa. Ele é direcionado
para um público que vai lá, vê e gosta... Este é
o que eu acho um filme exemplar como cinema popular. Não dependeu
de Globo nem de porra nenhuma. Então existe um cinema popular...
Daniel – Nesse caso,
popular entre quem gosta de surfe...
Carlão – Claro,
isso não importa. Agora há filmes assim, este filme do padre...
Inácio – É
o filme de gênero com uma origem junto a um público especifico.
Carlão – Mas
o filme de gênero sempre tem uma certa ética, de certa forma.
Quem vai procurando aquilo vê aquilo. Agora, se é comercial
depende muito de quem está estimulando a venda... Não adianta
eu fazer um filme de grande apelo popular, porque ele só vai fazer
sucesso se tiver este aparato por trás. Vai fazer no máximo
300 mil espectadores, o que já seria um sucesso.
Inácio – Eu
acho que a Globo faz parte já desta história. A Globo já
esta dentro do cinema.
Carlão – Quer
ver um filme que pode ser a maior merda do mundo, mas que vai ser um puta
sucesso? É o Olga... O filme tem quer ser um estouro de
bilheteria, já está saindo matéria de capa no jornal
desde o primeiro dia de filmagem!... Isto gera a curiosidade. Às
vezes não precisa ter nem a Globo por trás, o assunto mesmo
e as condições de produção acabam gerando
a curiosidade. Um filme que me interessa por conta destas coisas, até
pelo fato da mãe não estar deixando mostrar o filho como
gay, é o filme sobre o Cazuza... Você não está
curioso pra ver esse filme? Porra, esse eu quero ver, todo mundo já
quer ver!... É um filme que você sente que vai ser um grande
sucesso de público, por conta de todo este manancial, este aparato
que está por trás, o que não quer dizer que seja
um filme popular...
Inácio – O
problema é que não existe mais o público popular
como nós conhecíamos antigamente.
Daniel – Você
tinha falado agora a pouco sobre cinema autoral, sobre a morte apressada
dos autores...
Carlão – Não!
Da política dos autores! Os autores estão todos vivos! (risos).
Daniel – Mas me parece
que este discurso, que já é bem conhecido e difundido, legitima
também uma série de posturas e situações viciadas,
um cinema feito de forma viciada... A gente vê o Guilherme Fontes
dizendo que o filme é dele e ninguém tasca... Nós
vamos ter sempre este problema, quem vai diferenciar se o cara é
um autor ou um picareta, e se é um bom autor ou um filho da puta,
vai ser o público, vai ser todo mundo que assiste depois do filme
ficar pronto. Da mesma forma que quem vai diferenciar se um filme de produtora
é um filme eficiente num gênero ou um filme picareta vai
ser o público. Agora, como é que dá para solucionar,
num cinema que depende de uma série de fatores como o brasileiro,
esta produção de um cinema autoral independente, se você
mesmo fala...
Carlão – Espera
aí!.. Só dá pra pensar num cineasta como autor se
ele tiver feito no mínimo uns três filmes... Com raras exceções,
não existe autor de um filme único...
Daniel – O Jorge Furtado,
por exemplo, sempre se coloca como alguém que produz um cinema
feito em grupo.
Inácio – Mas
o que é um cinema de grupo?
Daniel – Algo como
o diretor agir mais como um maestro que como um compositor solitário...
Carlão – Espera
aí, você está entrando em classificações
como aquelas que o Ezra Pound usava no ABC da Literatura, cinema
de mestre, cinema de inventor, que você pode usar para literatura,
para cinema, para o que quiser... O que você está falando
está mais ligado a uma idéia de cinema de artesão.
Agora, a questão do autor vai estar sempre passando por caras que
têm uma certa quantidade de filmes...
Daniel – E isso justifica
que o Fontes diga que ninguém mais pode ter a palavra final no
filme dele, porque ele se pretende um autor...
Carlão – Mas
ter a palavra final e ser um autor são duas coisas diferentes.
Não é porque o cara tem a palavra final que se garante o
aspecto autoral.
Daniel – Quem vai
observar isso é quem vai assistir. A minha preocupação
é que este discurso legitima...
Carlão – Que
discurso?
Daniel – O da política
dos autores. Ele legitima um formato de produção que é
individualista, que faz a produção e as discussões
tenderem ao individualismo.
Carlão – Espera aí, você não está entendendo...
Eu não estou falando que este seja o sistema ideal. Agora, para
mim é o cinema que interessa e acabou. Se é para radicalizar,
eu vou radicalizar sim, o que me interessa hoje, no cinema, é buscar
o autor. E você encontra! É uma coisa incrível que
você sentia na critica das décadas de 60/70, que era o desejo
da prospecção. Você ia atrás dos novos autores.
Onde ele se manifestava, a personalidade, a assinatura... Me honra dizer
que eu fui o primeiro brasileiro a entrevistar o David Cronenberg. Entrevistei
para o Folhetim da Folha de São Paulo, e aí um idiota lá
botou o título de "o mestre do nojo"... Eu fiz essa entrevista
em Rotterdam, tinha um fascínio desde que tinha visto Scanners,
depois com Videodrome tive a certeza de que era um grande autor.
Hoje eu sinto que estão deixando passar batido. Quer ver um diretor,
que inclusive é canadense, mas que não vem tendo como dar
a continuidade? É o Christian Duguay, que fez as duas seqüências
de Scanners e um filme produzido pelo Wesley Snipes chamado A
Cilada, que era um puta filme de ação. Tem estilo, tem
personalidade. Quer ver outro que ninguém fala? Tem o Ted Kotcheff,
que é um belo cineasta e não filma mais...
Daniel – Ted Kotcheff
é um bom cineasta?
Carlão – É
um tremendo cineasta, ou era, antes de cair no esquemão... As vezes
eu fico com a impressão de que eu estou ficando louco. Será
que é só eu que vejo as coisas? Tem certas coisas que são
nítidas. A gente estava falando do John Flynn, outro dia eu estava
revendo um filme dele, A Marca da Corrupção...
Filipe – Este filme
é muito bom.
Carlão – É
uma maravilha, o roteiro é do Larry Cohen. Mas menos de meia dúzia
de pessoas se tocaram na época. Existe um esquema fácil
de prestigiar o que já vem prestigiado.
Daniel – Isto está
muito ligado à legitimação dada pelos festivais.
Carlão – E os festivais às vezes legitimam as coisas com
atraso fenomenal. Coisas como Sergio Solima, que o Inácio até
comentou hoje quando escreveu sobre a morte do Charles Bronson, e que
é um puta diretor.
Inácio – Foi...
Carlão – Mas
todos eles foram, porque não teve como dar continuidade. O John
Flynn é um caso típico. Fez vários filmes do caralho...
Filipe – Até
que ficou sem condição de produção...
Carlão - É.
Com muitos destes caras aconteceu isso.
Filipe – Mas aí
entra muito a questão do fim do filme B nos EUA, que deixou muitos
destes caras sem suporte. Larry Cohen não filma mais, George Romero
também.
Carlão – Agora,
você quer ver uma coisa do cacete? Que tem um diretor do cacete?
É este filme em cartaz com Vin Diesel, O Vingador. É
do diretor que tinha feito antes A Negociação.
Filipe – Que é
um filme bom...
Carlão – É
bom pra caralho! É isso que eu digo: falta paixão, porra!...
Antigamente a turma discutia assim, "se eu gosto do filme vou brigar
por ele até no soco se for o caso"... Falta isso, as pessoas
não brigam mais por isso. Alguém falava mal do Brian DePalma
e isso era motivo pra querer sair na porrada! (risos). Agora, o
que você percebe nos filmes deste Gary Gray, um diretor negro, é
que ele tem um estilo formidável. O fato de, como você disse,
o filme B ter virada filme A acabou com quase todos estes diretores.
Cléber – O
problema também é que este conceito de autor ficou muito
embaralhado, muito nebuloso.
Daniel – E os festivais
andam legitimando coisas esquisitíssimas. Se você pensar
que Michael Haneke é legitimado por ser autor...
Carlão – Mas
não deixa de ser. É um fascista, mas é um autor,
isto é indiscutível. Funny Games é um filme
horroroso, eu saí no meio, é pior que o Assassinos por
Natureza, se bem que pior do que este é difícil... Mas
é um autor...
Cléber – Mas
o filme é dele.
Carlão – Todo
o neofascismo do cara está ali na tela. O que não significa
uma critica ideológica, caso contrário eu não gostaria
do William Lustig. Até porque mais reacionário que William
Lustig, nem Samuel Fuller. E apesar disso hoje ele é o nosso Henri
Langlois. Ele vem recuperando os filmes pela sua distribuidora (de
DVD), a Blue Underground, tudo que há de melhor no cinema e
que não tem reconhecimento. E é o cara que fez os filmes
mais fascistas dos EUA. E tem um talento descomunal. O Mensageiro da
Morte é um filme impressionante. Voltando, eu sinto falta deste
entusiasmo, desta paixão...
Filipe – Mas isto
tem muito a ver com o perfil da crítica hoje.
Inácio – Acho
que não é uma questão só de critica não,
existe um novo perfil da organização cinematográfica.
Esta paixão que o Carlão tanto fala é um sentimento
que vinha num momento onde você tinha cineclube, onde você
tinha uma discussão permanente, onde havia uma crença do
cinema como a arte do século. Coisa que hoje, a rigor, não
existe. E quando existe não é muito partilhada, só
algumas pessoas que são cinéfilas. Mas é algo que
quase não existe. O cinema entrou num momento diferente. É
uma coisa, entre outras...
Carlão – Tem
uma coisa que determina um pouco também o fim deste cinema de autor
é que começa a desaparecer a figura do diretor que gosta
de cinema, o diretor crítico, o diretor que escreve sobre os filmes,
que assiste muitos filmes. Virou esta mania agora do diretor dizer que
não vai muito ao cinema, todo mundo fala isso pro jornal pra fazer
tipo... Eu já nem vou ver o filme se o cara me fala um troço
desses.
Daniel – O Orson Welles
dizia isso...
Carlão – Mas
é mentira! Mentira! Você pode ver qualquer plano do Welles,
você vê ali uma paixão por Fritz Lang, por exemplo,
que é óbvia! Muito pelo contrário...
Daniel – Mas dizer
ele dizia...
Inácio – E
o que o diretor diz nunca importa. Ainda mais o Orson Welles, que era
um puta mentiroso. Agora isto que o Carlão diz é algo que
eu sinto muito e me impressionou muito no último filme do Woody
Allen, em que o cara dirige o filme todo cego e isso é, mais ou
menos, o que eu sinto acontecendo com um monte de gente. As pessoas ou
não têm tempo de se formar ou não acham necessário.
Você sente a precariedade teórica de muitos filmes. O cara
simplesmente filma, com resultados melhores ou piores, mas depois de dois
ou três filmes você percebe que o cara não sabe por
quê está filmando. Aí o cineasta em geral fica na
mão do diretor de fotografia, do produtor. Eu até discordo
do Carlão sobre esta questão do autor, porque eu acho que
a organização do cinema mudou muito. O que não quer
dizer que os autores não possam ser interessantes. O que me parece
mais grave é que hoje nós temos um contingente muito grande
que não vê filme, que faz sem conhecer. Se o cara for um
gênio pode até acontecer de ficar bom, mas estatisticamente
é improvável, quantos na população são
gênios? Se o cara não conhece, não vê, não
busca se inteirar sobre a sua arte, não tem como dar certo. Por
alguma razão, isto só acontece no cinema. Vocês já
ouviram falar de algum escritor que não leu Machado de Assis ou
Cervantes? Porque, se não leu, o cara vai, escreve uma coisa e
pensa que está inventando o romance. No cinema já não
tem isso, por alguma razão misteriosa voltou a não ter.
Daniel – Talvez porque
durante um período tenha se produzido em excesso um cinema se referindo
ao cinema...
Inácio – Mas
você não precisa se referir ao cinema. Isto não é
necessário. Eu vejo o Bressanne, que é um cineasta formidável,
mas tem uma coisa que me enche o saco, por que é que todo filme
tem que ter uma claquete?... Não precisa disso para mostrar que
está fazendo uma reflexão cinematográfica. Aí
estas pessoas, quando acabam vendo A Inglesa e o Duque, saem dizendo
que o filme é reacionário ou que é um filme chato
onde se fala muito. O Rohmer está fazendo uma reconstituição
de época em digital, usando quadros, onde ele acaba conseguindo
o mesmo efeito que se via nos filmes do Meliès. Porra, é
um filme onde o cineasta esta com um olho em 1900 e o outro em 2100!...
Ele não precisa falar de cinema para nós sabermos que ele
sabe do que está falando. Agora, eu acho engraçado que outro
dia houve uma exibição de um filme do Jim Jamursch no Cinesesc,
parece que lotou tanto que até houve briga na porta. E uma semana
antes tinham exibido um Bresson que ficou vazio. Agora, por que isto não
acontece com o Robert Bresson, a quem o Jim Jamursch deve tudo?
Filipe – Mas a sessão
do Sesc só lotou porque o Pedro Butcher tinha escrito um artigo
sobre o filme no dia.
Cleber – Mas ter saído
um artigo na Folha sobre este filme já é sintomático
de alguma coisa. Porque o Bresson não aparece na primeira página
da Ilustrada?
Carlão – E
deveria!...
Inácio – Se
vocês quiserem entrar na questão midiática, nós
entramos numa boa. Agora, a questão é: ou o cinema começa
a ser visto por quem faz, ou nós estamos fodidos. Quando eu vejo
o filme do Eduardo Valente e eu vejo uma série de outros curtas
em seguida, tem uma diferença até epistemológica
entre eles!... Você percebe que o Eduardo sabe o que está
fazendo, enquanto o outro está lá naquela de "eu vou
contar uma história"... Porra, se for só para contar
uma história, eu conto uma aqui agora para você, eu não
preciso fazer um filme! É mais econômico e rápido.
Carlão – Uma
coisa que para mim é mais grave é que o cinema foi jogado
na vala comum do audiovisual. Esta para mim é a grande questão.
Até os cursos de cinema mudaram. Não se ensina mais cinema,
mas o tal audiovisual. Porra, audiovisual é o cacete, não
pode misturar televisão com cinema!
Daniel – Você
está falando da ECA?
Carlão – O
problema não é só ela.
Inácio – A
ECA certamente. Mas Campinas agora também está abrindo um
curso nesse caminho que... com tudo que pode ter de interessante com pesquisas
sobre novos meios, novas mídias e tudo mais, não faz sentido
jogar o cinema junto disso tudo...
Carlão – Quando
eu era professor da ECA, eu visitei faculdades de seis países diferentes
e em nenhum lugar se mistura cinema e TV. Só no Brasil! Nós
fomos à escola do Shohei Imamura, que é a melhor escola
de cinema do Oriente. Você foi ou acabou não indo, Inácio?
Inácio – Não
fui não.
Carlão – É
a melhor escola de cinema do Japão. Forma técnicos em todas
as funções. Sabe o que os alunos fazem durante o primeiro
ano inteiro? Roteiro! Vai aprender a escrever para cinema primeiro...
O que acontece aqui, hoje, é que caiu tudo na vala-comum. Não
é só conhecimento de cinema que você sente falta,
é de um repertório maior mesmo.
Daniel – De uma discussão
teórica mesmo...
Carlão – De
conhecimento de pintura, de artes plásticas, literatura. O sujeito
hoje vem da MTV, não sei de onde, e fica repetindo que o negócio
é imagem, que imagem é imagem. Imagem virando qualquer coisa...
Inácio – Espera
ai, Carlão. Você esta pintando um quadro desesperador.
Carlão – Mas
é desesperador!...
Inácio – Se
o cara nem ao menos lê...
Daniel – Eu acho que
a vida é mais complicada que isso. Tem gente que ainda conhece
a fundo a Rembrandt e pintura em geral, conhece Velásquez e tal
e isso não define nada...
Inácio – Não
vai ser necessariamente um bom cineasta.
Carlão – Quem?
Me diga?!...
Daniel – Em música,
teve a Lina Chamie que fez o Tônica Dominante, que o Jairo
elogiou na Contracampo, e que entende muito de música...
Carlão – Ela
é música.
Daniel – E fez um
filme diferente... Aí do outro lado tem o Aluísio Dider,
que também é musico e fez o Um Certo Dorival Caymmi,
que é um filme bem mais acadêmico e bem-comportado. Quer
dizer, este histórico às vezes...
Carlão – Ele
fez também um filme sobre o Radamés Gnattali, o Nosso
Amigo Radamés, que é uma maravilha!...
Daniel – Eu sei, mas
infelizmente não vi esse filme...
Inácio – Uma
coisa que nós notamos, não só no cinema brasileiro,
é uma absurda incapacidade de perceber as coisas. Não é
que o cara não sabe filmar, ele não sabe olhar. Olhar o
mundo é algo mais difícil do que fazer filme, exige do cara
uma capacidade de observar as coisas. Isto está tudo na história
do cinema. Qual o projeto do Jean Renoir? Fazer um grande apanhado da
gestualidade francesa. Se você sabe quem é Renoir, você
compreende este projeto.
Daniel – Mas acho
que o cara tem que ter também a liberdade para ir viver e ganhar
a vivência mesmo a história que está contando. O Fuller,
por exemplo, tem essa vantagem. Além da paixão pelo cinema,
ele viveu muito, não se escondeu da vida.
Carlão – No
caso do Fuller tem muito o lado de ter sido jornalista.
Daniel – É,
de se interessar pela história dos outros, mesmo. Olhar, enfim...
Inácio – Tinha
uma coisa bonita que o Mizoguchi dizia: depois de cada plano, era preciso
lavar os olhos. Quer dizer, deixar a vista virgem para olhar de novo.
Eu tenho a impressão de que cinema é uma disciplina. Ele
exige uma certa disciplina. Eu me sinto muito aborrecido quando tenho
a sensação que o cara está querendo me tapear.
Daniel – Mas você
citou o Eduardo, e ele mesmo costuma dizer que tem essa questão
com a cinefilia e com o cinema da cinefilia, que às vezes o filme
pode até ser interessante porque o diretor viu muito cinema, mas
parece que o cara não tem nada para dizer de fato, não há
vida além do cinema...
Inácio – É
evidente que não é tão simples assim. Se você
for um imbecil e ver 500 mil filmes, não vai adiantar nada. Você
tem que ter capacidade de falar alguma coisa. Tem também o diretor
que sai com um primeiro filme maravilhoso, mas depois falta uma idéia
que lhe dê fôlego para continuar. Você tem que ter uma
capacidade de vivenciar as coisas. Observar o mundo é uma coisa
muito difícil.
Daniel – Sobretudo
no cinema narrativo, onde você tem sempre esta ligação
muito forte com os personagens.
Inácio – Criar
a verdade é uma coisa muito difícil, criar verossimilhança
é fácil, mas a verdade é algo complicado. Qualquer
coisa que aconteça ao seu redor interfere, e na maior parte das
vezes contra... Agora, em vestibular cinema virou a profissão mais
procurada. Por que mais procurada?...
Cléber – Depois
de publicidade.
Inácio - Tudo
bem, mas em publicidade você tem como ganhar dinheiro. Cinema, não.
O Carlão pode falar melhor sobre isso...
Carlão – Porra...
Inácio – Mas
é uma vida de você passar cinco anos juntando dinheiro para
fazer cada filme. Ainda tendo que usar esta palavra, "captação",
que é por si só humilhante. Quer dizer, para quê?
A não ser que a pessoa sinta que precisa fazer cinema, é
melhor que vá estudar outra coisa...
Carlão – Agora
virou moda.
Inácio – Francamente,
eu prefiro os tempos da Giselle.
Carlão – Eu
insisto no ponto do cinema ter caído na vala comum do audiovisual.
Isso me lembra um lado problemático do campo da música.
O caso jovem que parece levar jeito para música e as pessoas dizem
"ah, não precisa estudar", "não precisa fazer
nada", é só ter talento... Acho que com esta coisa do
audiovisual está acontecendo algo parecido. A pessoa acha que não
precisa ter formação, e isso não é verdade.
Até porque cinema nisso se aproxima da literatura, ele tem uma
gramática que você precisa dominar, maior até do que
na música. Você olha os filmes, isto parece que não
existe mais. O cara diz "vou fazer um filme do caralho" e vai lá
e faz algo de qualquer jeito. As pessoas acham que não é
preciso conhecer as regras, que qualquer um faz um filme... Eu lembro
que uma vez eu ouvi o Mauro Rasi dizer algo nessa linha e quase caí
de quatro... Como cineasta, eu acho isso um desrespeito. Eu não
saio dizendo que se eu quiser eu monto uma peça com tranqüilidade.
Ele disse algo do tipo "se eu pegar um bom assistente de direção
e um bom diretor de fotografia eu estou escolado". É um absurdo!...
Daniel – Volto a citar
o mentiroso, porque o Welles dizia isso também... Que se você
tivesse um bom montador e um bom fotógrafo dava para tapear a carreira
inteira.
Filipe – Dá
para ficar fazendo filme meia-boca a vida inteira, isso sim.
Carlão – As
pessoas acham que não tem o que aprender. Eu sempre brinco que
eu tive o privilégio de levar muita cacetada nos primeiros filmes.
De não ter sido nem premiado, nem elogiado com os primeiros filmes,
porque acho que isso pode ter péssimas conseqüências
para um cineasta. Isto você pode ver observando a história
do cinema, quantos casos tem de cineasta que desponta e acaba não
indo a lugar nenhum... Se por um lado existe um desleixo com o olhar no
cinema brasileiro, do outro acho que falta também para muito cineasta
levar porrada, porrada no bom sentido, pra melhorar... Agora, em oitenta
ou noventa por cento dos casos é a vivência das coisas que
forma o autor. É por isso que eu volto sempre a defender o cinema
de autor. Porque isto exige uma continuidade e você acaba limpando
no meio do caminho o cara que só quer se dar bem.
Daniel – Mas, Carlão,
hoje os meios de comunicação oferecem caminhos para qualquer
um que quiser se formar e aprender milhões de coisas... ao contrário,
o que não falta é informação sobre cinema...
Carlão – Porque
foi jogado na vala comum do audiovisual!
Daniel – Para mim,
o problema não está nem na formação do autor,
mas da formação coletiva, das discussões mais amplas.
Porque eu sinto que coletivamente a coisa está dispersa, ainda...
Inácio – É,
é exato...
Daniel – Fica cada
um no seu individualismo e no seu marketing pessoal. Não existe
ainda uma noção comum de movimento...
Inácio – Estou
de acordo com você. Nem sei se onde que você quis chegar era
isso, mas eu sinto que é uma questão de formação
de povo, mesmo... A forma como as nossas escolas estão funcionando
é deficiente. Falta muitas vezes uma noção de formação
pictórica mesmo. Não só de quem vai fazer filme,
mas um repertório mínimo ajudaria certamente as pessoas
a irem assistir o Eu, Tu, Eles e ver aquele céu horroroso
e perceber que tem algo errado ali!... Eu vejo muito o Canal Brasil, e
eu sinto como no nosso cinema dos anos 70 teve um gosto forte por um irrealismo,
um excesso, ele não cultiva esta coisa muito mais difícil
que é de você estar no real...
Daniel – O naturalismo...
Inácio – Naturalismo
me faz lembrar uma coisa muito antiquada. Prefiro usar realismo mesmo.
Naturalismo me faz pensar em novela da Globo. Se bem que eu quero frisar
que acho as novelas da Globo uma coisa importante.
Daniel – É
um folhetim que funciona.
Inácio – É
uma coisa digna que tem a sua função, não é
contra isso que eu brigo. O problema não é a Globo, inclusive
porque eles fazem a função deles melhor do que os outros.
Mas, enfim, isto é outra história. Voltando para o cinema
da década de 70, existia uma ficção da irrealidade,
especialmente no cinema carioca, onde se tinha sempre algo de excessivo.
Aí, se você pega os melhores cineastas, um Walter Lima ou
Joaquim Pedro, eles driblavam isso, jogavam com isso numa boa... Você
vê o excesso do Macunaíma e não tem problema.
Daniel – Ou do Guerra
Conjugal...
Inácio – Que
é um filme que eu não gosto muito, mas a parte dos velhinhos
é maravilhosa. Enfim, todo mundo tem seus altos e baixos... Nós
já tivemos momentos de embate, mas com muita freqüência
o cinema hoje é auto-complacente. Queria com isso entrar nesta
questão da crítica, que o Carlão falou do crítico
italiano ter esta função de levar o espectador ao cinema.
Vou te falar uma coisa, Carlão, isto foi algo que aconteceu na
época da Embrafilme. Foi um momento que a crítica passou
a levantar a bola daquele cinema de tal forma que esta crítica
acabou desmoralizada... Porque você fala uma, duas, três vezes
que Fulano é bom cineasta, na quarta o espectador não te
leva a sério e ninguém vai ver o filme, porque ninguém
é idiota. Não dá, uma hora o leitor percebe que não
é...
Carlão – Olha,
Inácio, eu discordo, porque eu não acho que a crítica
era simpática com o cinema brasileiro não.
Daniel – Acho que
ela foi até bastante cruel.
Carlão – Foi
muito cruel!...
Inácio – Ela
foi extremamente cruel com o cinema como instituição. A
Folha, especificamente. A Veja, mais recentemente.
Cléber – A
Folha mais nos anos 80 e a Veja mais recentemente por esta questão
editorial de ser contra as leis de incentivo.
Inácio – No
caso da Folha também era uma postura editorial contra a Embrafilme.
Daniel – Isso numa
fase em que se defendia as privatizações, o choque de capitalismo,
as questões do neoliberalismo...
Inácio – Sim,
mas você tinha que ter criado concorrência em condições
idênticas, coisas do tipo... Como instituição se bateu
mesmo, e se bateu às vezes de maneira equivocada, mas o problema
é que o cinema brasileiro também abria as brechas para estes
ataques... Tem coisas que não podiam acontecer e que acontecem...
De tal modo que a imagem do cineasta era muito ruim. É uma imagem
que só vai ser recuperada agora, com a figura do Walter Salles.
Aí as pessoas viram que um cara como ele, filho de um famoso banqueiro
e embaixador, também fazia cinema. Voltou a ser uma atividade de
gente de bem... Mas, voltando aonde nós estávamos antes,
eu acho que está meio perdida esta relação da crítica
com a realização. Talvez eu esteja ficando velho, mas o
que eu sinto é que as pessoas são muito seguidoras do que
elas lêem no jornal ou vêem na televisão. Eu sinto
isto de uma maneira meio desesperante, porque antes você tinha núcleos
que se destacavam. Agora, hoje você tem esta coisa interessante
que são as listas na internet. Ao mesmo tempo, isso isola.
Daniel – Cria guetos...
Inácio – Não
tem congresso, festival, vira uma coisa de gueto. As pessoas ficam indefesas,
tem muita informação, mas não tem como filtrá-las,
filtrar o que é ou não é publicidade, as pessoas
ficam indefesas diante disso. Quando alguém diz que aquilo é
bom, aquilo passa a ser bom.
Carlão – Você
está confundindo a coisa que eu estava falando dos críticos
italianos.
Daniel – Que era basicamente
defender com entusiasmo os filmes que achassem bons mesmo.
Carlão – E
há uma diferença de contextos. Porque o ponto do artigo
que eu li era justamente que o cinema italiano está melhorando
e sobre o papel que a crítica cumpre nisso. Não é
enaltecer qualquer merda, é destacar os méritos que o filme
tem. Pelo contrário, eu acho que tem que ter um discernimento muito
claro. Acho que toda crítica tem um perfil, existe a crítica
entusiasmada e existe até a crítica política. Tem
crítico que só faz isso, não faz outra coisa além
de fazer política na parte de crítica. Faz jogo de poder...
Agora, a única forma de gerar estímulo é o entusiasmo.
Uma vez, eu e o Inácio estávamos conversando sobre aquele
cara que foi pego plagiando texto estrangeiro...
Daniel – Pepe Escobar.
Carlão – Você
falou um negócio do caralho certa vez, que é que, quando
o Pepe Escobar escrevia sobre o festival do Cakoff, ele tinha tamanho
entusiasmo que tudo que ele recomendava você tinha que ver no cinema,
porra!... Até descobrirmos que o cara estava traduzindo tudo!...
Daniel – Pelo menos
ele traduzia bem os textos!... (risos)
Carlão – Você
ia ver e até podia discordar, falar que o Pepe exagerou um pouco,
mas ia ver... Tá que é mais fácil de acertar seguindo
certas referências num festival como esse, mas ele se arriscava
apostando nos filmes...
Inácio – O
Pepe tinha este lado sim.
Carlão – Era
sempre interessante, porque ele empurrava o espectador ao cinema. Até
que ele foi descoberto...
Inácio – Mas
acho que não era tudo. Ele traduzia só de vez em quando,
foram poucas vezes.
Carlão – Mas
ele conseguia lotar as salas na mostra. Ele dava uma página inteira
para o filme, dizia que era do caralho. Do outro lado, a crítica
que poupa os filmes é tão nítida, tão clara,
tão mentirosa!... Ela é como um filme mentiroso mesmo. Pode
enganar o leitor apressado, mas o cara que conhece cinema eu acho que
dificilmente é enganado. Esta que é uma crítica irresponsável,
tanto para elogiar quanto para falar mal.
Daniel – Quem dera
desse para perceber sempre, Carlão. Tem gente que escreve bem,
disfarça bem, nem sempre dá pra ter certeza se é
a opinião ou se tem má-fé...
Carlão – Sim,
claro que tem aquele cara que tem um puta talento para te narrar o filme,
aí você vai no cinema e não é nada daquilo...
(risos) Lembro de uma vez um amigo me contando Jesus Cristo
Superstar, ele me narrou o filme com gestos, fez toda uma construção
que eu fui ver no dia seguinte!... E saí do cinema querendo matar
ele, porque o filme não tinha nada a ver com aquilo! Falei: "Porra,
você contando é melhor que o filme!" (risos)...
Ele tinha pegado o melhor da idéia e tratado como se fosse o filme
todo... Mas o que para mim é importante é que a critica
precisa estimular. Uma das coisas que eu me orgulho foi no período
que eu dei aula na ECA ter estimulado os alunos a conhecer cineasta como
Shohei Imamura, que eu exibia até sem legenda.
Daniel – Eu fui testemunha
disso.
Carlão – Eizo
Sugawa eu exibia sem legenda também. E os alunos iam...
Cléber – Inácio,
nesse panorama que a gente vive hoje, onde os filmes são tratados
basicamente como produtos, qual acaba sendo a função da
crítica num veiculo de grande circulação como a Folha?
Especialmente quando a gente sente que as pessoas estão, cada vez
mais, muito mais interessadas em saber a cotação para saber
o que assistir do que propriamente em debater com o crítico...
Inácio – Assim
você já me desanimou. Para falar a verdade, Cléber,
quando eu comecei a dar o meu curso de história do cinema foi um
pouco por esta angústia que o jornal cria, ou a revista cria, de
não saber bem com quem você está falando. E leitor
que escreve carta para jornal, em geral, são todos uns loucos.
Daí que você fica sem ter uma resposta...
Cléber – O
pior é quando você escreve uma crítica negativa e
o cara te manda os parabéns pelos elogio que você fez ao
filme! (risos)
Inácio – Cléber,
eu realmente não sei, porque para mim a crítica sempre teve
uma função extremamente pessoal, uma vontade de tentar entender
as coisas... Foi para isso que eu comecei a escrever. O Jairo tinha a
coluna no São Paulo Shimbum, aí às vezes eu escrevia
algo lá, o Carlão também. Depois a gente fez a revista
Cinegrafia, lembra, Carlão?... Era um desejo de tentar compreender
as coisas... Hoje eu acho muito engraçado, porque muitas pessoas
vêm até a mim e perguntam "e aí, como é
que eu faço para ser crítico de cinema?". Eu digo que,
poxa, eu não sei, porque comigo simplesmente alguém parou
e falou "escuta, quer escrever na Folha?"... Porque eu nunca procurei
me formar para ser crítico. Nunca tinha me passado pela cabeça
a idéia de escrever num jornal. Quando nós fazíamos
o jornal nos anos 80, quando o jornal era mais elitista, você tinha
um trabalho de análise maior mesmo, hoje você por vezes parece
que está fazendo um trabalho de hai-kai. Ao mesmo tempo eu procuro
ser otimista, eu penso assim, que eu tenho que fazer o meu trabalho o
melhor que eu posso. E torço para que a pessoa que vai ao cinema
se interesse, porque se ele esta só em busca da autoridade, de
saber se o filme recebeu duas ou três estrelas, eu tenho pouca coisa
a fazer. Mas eu acho que às vezes, até mais do que a gente
pensa, tem uma importância... Eu lembro do Alcino Leite Neto, que
contou de uma vez em que ele estava em Minas, aí chegaram pra ele
e disseram "vocês aí em São Paulo não sabem
da importância que vocês têm, porque aqui em Belo Horizonte
a gente lê, depois discute, briga com vocês, concorda ou discorda"...
Ou seja, às vezes tem um monte de pessoas a que você não
tem acesso para quem este trabalho tem uma importância. Especialmente
se você tem uma postura de um certo rigor, evita falar bem de qualquer
coisa, mas também não fala mal de qualquer coisa... Evita
aquela postura ranzinza de simplesmente ver defeito em tudo, até
porque se você quiser você encontra defeito em qualquer coisa,
vê Cidadão Kane e diz que o Joseph Cotten não
está bem...
Daniel – O Bergman
disse recentemente que acha o Orson Welles um canastrão!...
Inácio – Pode
até achar... Eu acho engraçado... Tem aquele leitor que
só quer saber como está o ator. Que é o critério
mais duvidoso que tem, eu acho que a interpretação do cara
é ótima e o outro a dez metros de mim achou uma merda.
Daniel – Sem contar
que se o montador trabalhar mal o ator pode ficar péssimo – ou
pode ser salvo na montagem, num caso contrário...
Inácio – Eu
estou tentando nem entrar nestas coisas. O que eu acho é o seguinte,
o trabalho crítico, seja na Folha, seja na Época, seja na
Contracampo, seja pessoalmente como o Carlão faz em lista de discussão
ou conversa com amigos, é minoritário. O que você
vai ter é marketing, divulgação, o interesse pelo
cinema mesmo vai ser sempre minoritário. Eu sinto que nós
estamos na resistência.
Cléber – Eu
pergunto isso porque eu sinto que o marketing acaba sendo decisivo inclusive
no espaço que a crítica acaba tendo, isso pelo menos nos
veículos comerciais o que não é o caso da Contracampo
ainda. Não adianta o Amarelo Manga ser dez vezes mais importante
que o filme do Guel Arraes, porque o filme do Guel Arraes vai ganhar mais
espaço em todos os veículos do que o Amarelo Manga,
nem que seja para o cara detonar. Retornando ao exemplo da Globo Filmes,
todos os filmes dela, além de todo o espaço na sua própria
mídia, que me parece legítimo, acabam ganhando nos jornais
impressos, que seriam um meio de maior reflexão, um espaço
também bem maior que o dos outros filmes.
Carlão – Deixa
eu me meter um pouco. Esse leitor que não dá tanta importância
para critica e lê de forma mais efêmera o jornal, quando ele
só se deparar com informação sobre um filme tal em
todo lugar, é óbvio que ele vai acabar dando preferência
para ver aquele filme. Agora, tem este outro lado da crítica, que
é lida por uma minoria muito pequena, mas que, queira ou não
queira, tem uma importância para a formação desta
minoria. Eu assisti uma cena até emocionante, de certa forma, no
lançamento da revista Cine Monstro. O Carlos Primati (editor
da revista) chegou para mim e me pediu: "Me apresenta o Bruno de
André, porque foi o cara que mais me influenciou na forma de escrever".
E eu fiz questão de chamar o Bruno de André. O Primati lia
as criticas dele na Visão... Porra, quem lia a Visão?! Uma
meia dúzia de pessoas liam!... Mas, mesmo assim, algumas pessoas
foram influenciadas pelo olhar cinematográfico, pelo jeito de gostar
de cinema, pela forma de escrever. Ele começou a se interessar
por escrever crítica pela forma que o Bruno de André escrevia
sobre faroeste. Eu achei isso do caralho! Esta importância que,
queira ou não queira, o crítico possa ter. O resto para
mim é irrelevante, merchandising mesmo. Não que eu não
ache que tenha lá a sua importância, mesmo que não
seja crítica de fato, aquele entusiasmo que o Rubens Ewald tem
falando dos filmes da indústria de cinema, que é algo que
também tem o seu público, que desperta o interesse das pessoas...
Às vezes eu fico impressionado com a forma como pessoas que nem
têm tanto interesse no cinema me perguntam do Ewald...
Daniel – Mas aí
entra muito o lado dele servir como um abalizador de opinião, de
não fugir do senso comum, do que a maioria vai achar.
Inácio – Pois
é, pegando só um gancho nisso que o Daniel falou, essa questão
da empatia existe mesmo. E este eu acho o pior leitor, aquele que quer
uma confirmação daquilo que ele gosta...
Daniel – O que não
quer discordar do crítico. Se ele discorda, ele já não
gosta.
Inácio – Eu,
desde que eu me entendo como leitor, o que eu mais gostava era de discordar,
"o quê que este cara viu nesse livro ou filme?", isto pode
te levar a descobrir novas coisas ou não, mas gera uma curiosidade.
Mas acho que existe uma tendência geral da imprensa de ser uma coisa
muito mastigada. Se você usa uma expressão mais técnica,
o editor pede que você coloque junto um glossário, uma explicação
do termo. Mas daí vem muito uma mudança no mundo mesmo.
Na geração de vocês que não é como a
nossa, que a única coisa que tinha como diversão era ler,
então a gente lia, se tinha algo complicado você ia mesmo
até o dicionário procurar saber o que era... Hoje em dia,
se o leitor vê uma palavra que ele não conhece, o cara fica
ofendido, acha um absurdo, diz que não pode, que não é
academia...
Carlão – Você
falou um negócio que me lembrou do Rubens Biáfora... Que
era um critico que a gente discordava direto, que às vezes ninguém
conseguia entender como ele podia gostar de certas coisas, mas você
lia, ia ver e tinha alguma coisa! A gente saía e falava "não
é que é verdade?"...
Inácio – Algo tinha, não era tudo que ele via, tinha um
pouco de loucura, mas algo tinha.
Carlão – Mas
falta hoje esta loucura. Não por acaso Bergman foi descoberto por
ele aqui no Brasil.
Daniel – Antes do
Khouri?
Carlão – Foi
ele e o Khouri.
Inácio – O
Biáfora tinha uma coisa interessante, que na década de 70
ele implicava que ator não podia ser cabeludo, que não podia
pôr calça boca de sino, e é engraçado, porque
você revê estes filmes hoje e entende o que ele queria dizer.
Porque eu vejo no Canal Brasil, os filmes daquele época, e você
não consegue ver aquilo, fala "de que planeta vieram estes caras?",
você nota como aquilo tudo soa datado, aqueles cortes, aquelas roupas...
O único problema é que para o Biáfora corte clássico
era corte escovinha do exército! (risos)... Você tinha
que dar um desconto aqui e ali, mas o que ele falava tinha uma pertinência.
Carlão – Ele
tinha um olho que era impressionante...Foi o primeiro a sacar Antonioni...
Inácio – É
verdade... Agora, o que eu queria era voltar ao que Cléber tinha
falado. É uma coisa que eu formulei nos últimos dias, que
existe uma tendência a se estigmatizar quem vem da televisão.
Quando se quer falar mal de um filme se diz que ele é televisivo,
mas eu acho que é o contrário, a televisão agregou
a linguagem do cinema. Por isso que não faz sentido este curso
de audiovisual, porque é o cinema ainda. A novela hoje, o que é?
Um cinema de 40, 50 anos atrás, simplificado porque o cara tem
que rodar quarenta, cinqüenta minutos por dia. Agora, é evidente
que um filme como o Lisbela e o Prisioneiro, que eu ainda não
vi, tem uma presença maior por uma série de motivos que
são absolutamente extra-cinematograficos.
Daniel – Eu não
acho que se possa reclamar de falta de exposição do Amarelo
Manga na mídia.
Inácio – Também
não acho. Mas é evidente que os maiores sucessos vão
ser aqueles que passaram de algum modo pela televisão, já
que é uma propaganda tão violenta que se o filme é
bom ou mal não importa, algum público vai ter. A TV vai
fazer aquela função de familiaridade...
Carlão – Porra,
se os caras quiserem me ajudar na divulgação, eu aceito
na hora! (risos).
Inácio – Claro.
Agora, se o cinema brasileiro hoje quiser sobreviver nas condições
que existem, quer dizer, um cinema de multiplex para classe média,
se quiser ter uma presença nas salas, neste tipo de sala, vai ter
que trabalhar com este tipo de fenômeno midiático. Saindo
daí vai ter o Coutinho, que só tem feito preciosidades,
vai ter o Carlão, que vão estar na maior parte das vezes
fora deste grande circuito de badalação, mas que vão
ser as âncoras de um cinema mais ambicioso. Claro que nada impede
o Guel Arraes de fazer ou ter feito um grande filme. O que é plenamente
possível, o Guel Arraes se formou em cinema.
Daniel – Inclusive,
quando ele foi para TV, diziam que ele fazia cinema na TV.
Inácio – Sim,
mas eu nem fui um grande fã das coisas que ele fez naquela época...
Carlão – O
único grande perigo que eu acho que precisa ser levado a sério
é quando os procedimentos de linguagem começam a ser submetidos
a uma linguagem televisiva.
Daniel – Esta gramática
da televisão não é filhote da gramática do
cinema?
Carlão – Olha
que muitos dizem que é do rádio, cuidado... Há quem
diga que é mais próximo do rádio que do cinema.
Daniel – Mas é
do cinema também, claro.
Carlão – Sim,
mas é diferente a forma como esta influência se dá,
como ela age. O que se critica com uma certa propriedade é uma
subserviência à linguagem da televisão.
Inácio – Isto
só acontece com os caras de cinema. Inclusive, Carlão, esta
história do rádio eu não compro não.
Carlão – Mas
o próprio pessoa de televisão dizia isso.
Inácio – Era
o rádio, mas quem era o rádio? Otávio Gabus Mendes!
Que é um cara que tinha vindo do cinema... Estes caras todos, Gabus
Mendes, Walter Durst, todos eram caras cuja paixão era cinema,
mas passaram pelo rádio antes de chegar a TV. Eu não sei
se é muito por aí... O que eu acho é o seguinte,
a TV acaba sendo a desculpa da coisa para, retornando ao que já
tinha dito antes, justificar que estamos, tanto quem veio da televisão
ou do cinema, dirigindo no escuro. O perigo real disso aí é
formar um monopólio.
Carlão – Isto
é uma discussão que vai muito mais longe. Inclusive por
uma coisa que é primordial para você, que foi montador, que
é a edição. Existe hoje um conceito errado que supõe
que montagem e edição são a mesma coisa. Este é
o grande perigo e é a pior contribuição que a televisão
está trazendo num certo sentido.
Inácio – Sim,
se bobear a televisão traz o pior dela.
Carlão – Claro,
claro.
Cléber – O
meu problema com o Lisbela... não é nem o ser televisivo,
eu acho o filme pior do que muitas das coisas que o Guel Arraes faz na
TV.
Filipe – Mas é
pior mesmo.
Cléber – Para
mim é um sub-programa de televisão.
Carlão – Quem?
Cléber – O
Lisbela e o Prisioneiro. Minha crítica ao filme não
é que ele é televisivo, é que eu acho que o Guel
Arraes faz melhor que isso na televisão.
Daniel – O que vocês
estão dizendo tem menos a ver com parecer televisão, mas
com parecer acomodado mesmo.
Carlão – Para
mim isto é uma coisa séria, porque você percebe que
estão substituindo a figura do montador pela do editor. O editor
é um operador de equipamento, um cara que não tem cultura
cinematográfica, inclusive não sabe definir o que é
montagem, o conceito de montagem. O cara simplesmente corta, o cara acha
que é brilhante ele ficar lá cortando de qualquer jeito.
De repente, um menino de 24 anos de uma hora para outra é considerado
o melhor montador do Brasil. Nada contra estas figuras em si em si, mas
isto é uma loucura! A turma corta filme como se estivesse cortando
bife! É verdade, não há conceito! O negócio
é só dar agilidade, velocidade. Velocidade não é
conceito de montagem, vá à merda, porra!...
Cléber – Me
incomoda muito neste sentido a morte do plano. Os planos viraram flashes.
Você nem vê imagem às vezes. Parece caleidoscópio
mesmo, uma coisa não liga com a outra. Quer mais esconder a imagem
do que revelar.
Daniel – Mas aí
se pode cair no fetiche pelo plano-sequência. Há filmes com
planos-sequência que não funcionam, que são um pé
no saco, assim como a montagem rápida pode ser bem usada...
Filipe – O problema não é a montagem rápida em si,
porque ela pode ser uma opção se bem pensada, o problema
é que a maioria não pensa...
Carlão – Existe
só a velocidade. Como se estivesse montando publicidade, esta é
a grande verdade.
Inácio – Carlão,
outro dia na Tv a cabo eu vi um filme que parece Corrida em Busca do
Amor! Os Náufragos do D17, do Luc Moullet...
Carlão – Mas
o Luc Moullet me lembra o meu cinema.
Inácio – Continua
lembrando. E o personagem é um corredor de rali. Aí aparece
um cara num observatório, uns soldados atrás do Saddam Hussein,
o filme se passa em ‘91. Mas é muito bom!
Daniel – Portanto,
é com a lembrança do Moullet que vamos encerrar.
Entrevista realizada por Cléber Eduardo, Daniel Caetano e Filipe
Furtado
Transcrição: Filipe Furtado
Revisão: Daniel Caetano
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