Bons Tempos, de Chang Tso-Chi

Meili Shiguang, Taiwan/Japão, 2002

Há dois movimentos narrativos bastante distintos em Bons Tempos: o primeiro é uma observação do cotidiano de dois jovens rapazes de Taiwan (Wei e Jie), acompanhando suas diferentes formas de relação com trabalho, família, vizinhança e aspirações pessoais; o segundo, é uma trama de erros e reviravoltas, onde a violência urbana se desdobra em desfecho trágico e previsível. Entre esses dois movimentos, há um contraste inegável na eficiência de suas realizações – o que faz do filme uma obra irregular, mas, ainda, assim, dona de passagens brilhantes:

Com um olhar fragmentado sobre o cotidiano de seus protagonistas, em recortes de tempo demarcados por telas negras, Bons Tempos pratica um habilidoso cinema de atmosfera, de observações: os gestos dos personagens, sua relação com o espaço, a narração em off que traça suas eloqüentes manias (um é apaixonado por Bruce Lee, o outro quer ser um "grande mágico")– tudo isso como reflexo de um cinema que procura se inscrever na vida respeitando sua cadência, sua aparente falta de rumo, suas repetições coloridas pequenas novidades. A personagem da irmã doente de Wei e a faltas de perspectivas dos personagens, são o eixo do filme para sua aproximação de temas caros ao cinema de Hou Hsiao-hsien (do qual Chang foi assistente), Tsai Ming-liang e outros autores chineses contemporâneos: a eternidade impregnada em cada plano, a relação do tempo da vida com a espera da morte, a afirmação da alegria nos pequenos gestos, a melancolia e a violência das periferias (a cena em que o personagem Brother-Tse espanca um pretenso ladrão, é marcante).

Nesse sentido, é sobre essa, digamos, cartilha, esse universo de belíssimos clichês da contemporaneidade, que Chiang Tso-chi consegue alcançar os momentos mais interessantes de sua narrativa – o filme consegue ser instigante sem precisar recorrer a plot-points ou motivações claras, conquistando o espectador sem apelar para eventos mirabolantes ou revelações espetaculares.

E é justamente quando deixa essa observação cadenciada de lado e parte para o desenvolvimento de uma "trama" propriamente dita, que o filme parece perder o seu vigor: a história em torno da arma, do emprego no submundo, da única bala, do assassinato, é toda contada em ritmo frouxo, perdendo o rigor estético e a cadência anterior. Perde-se o olhar por dentro do tempo para se começar a "correr atrás" dele. Ao invés da observação pormenorizada, passa-se a uma narração de eventos previsíveis, onde mesmo a decupagem e a montagem, parecem preocupadas mais em servir à trama do que se entrelaçar a ela. De um cinema de narrativa imanente e distanciada, passamos a uma seqüência de reviravoltas que não sustentam a beleza inicial do filme, tornando-o previsível, banal – seja como espetáculo narrativo, seja como jogo cênico.

Por fim, na passagem nonsense que fecha o filme, Bons Tempos consegue recuperar parte de seu impacto inicial, levando ao extremo a idealização de uma fuga submersa impossível. Mesmo que irregular, Bons Tempos bebe do talento e da vocação dessa nova onda do cinema taiwanês (emersa nos anos 90) em lançar olhar sobre o universo das periferias urbanas, da violência e das dificuldades cotidianas da classe média (cada vez mais empobrecida), sem cair na tentação comum do "denuncismo" social ou da celebração do exótico. Coisa que falta, e muito, à maioria das cinematografias contemporâneas.

Felipe Bragança