A Vida Nova, de Philippe Grandrieux

La Vie Nouvelle, França, 2003

A Vida Nova é o segundo longa-metragem do diretor Philippe Grandrieux e prolonga as preocupações de seu primeiro filme, Sombre, exibido apenas na Mostra de São Paulo. Já no começo, as recorrências: câmera nervosa impedida de captar com clareza a realidade, opacidade quase total do mundo, tudo envolto em névoas ou movimentos de tal forma frenéticos que é impossível se estabelecer um mínimo grau de clareza com aquilo que está sendo contado. "Contado", entre aspas, seria o melhor a se dizer, porque Grandrieux é um desses diretores para quem mostrar é muito mais interessante do que contar. Tudo o que há de mirabolante em A Vida Nova é da natureza da sensação, não da narração. Essa é a força do filme, mas também seu calcanhar de Aquiles: tomando um fio de argumento sumário e arquetípico (negociador de escravas brancas acaba se apaixonando por uma delas e dispõe-se a trair seu amigo por causa dela), Grandrieux esquece rapidamente aquilo que deseja contar e se autofoca nas possibilidades expressivas que pode tirar de sua tortuosa e desconfortante visão de mundo. Pode ficar bom? Pode.

A grande força do filme é visual, não resta dúvida. Muitas imagens de impacto, infinitos planos fora de foco, quase sempre exercendo múltiplos e bruscos movimentos circulares. É preciso um talento sistemático para não transformar isso simplesmente numa mera rede de experimentozinhos com o maquinário do cinema, e esse talento Grandrieux tem: o filme é incrivelmente bem-sucedido em seus intentos, tanto na força nada previsível das imagens quanto no sentimento de desassossego que povoa o espectador que decide entrar no filme (aos que ficam do lado de fora, o filme escoa pelas mãos com uma facilidade incrível). Poderíamos pensar por momentos em Claire Denis (o jeito como a selvageria dos corpos é registrada na película) ou David Lynch (Julee Cruise cantando "Rockin' Back Inside My Heart" no seriado Twin Peaks ou a seqüência do Club Silencio em Mulholland Drive chegam à consciência no momento em que Anna Mouglalis canta sussurrando uma canção). Mas Philippe Grandrieux, em seus melhores momentos, está de fato muito mais próximo de um pintor como Francis Bacon do que de qualquer outra possível referência cinematográfica. Para ele, a câmera só interessa a partir do momento em que podemos distorcer o mundo e o homematravés dela. Daí surge a beleza imprevista dos closes nos personagens (Grandrieux faz questão de filmar quase todos seus planos do pescoço para cima) em que o retrato naturalista vai aos poucos transformando-se em borrões de carne sem identidade. A carnalidade é tomada aqui em seu aspecto puro. Em outro momento bastante inspirado, um sonho do protagonista masculino é motivo para Grandrieux se utilizar de uma "câmera térmica" (é assim que está nos créditos do filme) que filma em um preto-e-branco contrastado e transforma Anna Mouglalis em besta devoradora, um cão raivoso todo manchado de preto (sangue?). A referência a Cat People é também uma espécie de ars poetica do diretor: fazer com a câmera o homem reconverter-se à sua situação de animal em que a carne seja irredutível às injunções do espírito sobre ela.

Mas se esta parece ser a grande contribuição de Grandrieux no "debate das idéias" proporcionado pelo cinema, é também sua insuficiência como cineasta. A confiança em primeiro lugar na plasticidade que deforma e reconduz o homem a seu estatuto animal transforma A Vida Nova (e também Sombre) numa sucessão frenética de situações de incômodo e choque espectatorial que buscam uma utopia um tanto tola: criar no espectador sensações primárias que não sejam mediadas por signos nem pelo trabalho intelectual de apreensão. Daí a enxurrada de atos de violência que povoam seu filme, o sexo mostrado em sua forma mais crua (e incapaz de fornecer prazer, a situação obriga), o fato de haverem cachorros devoradores, a cidade de Sófia filmada como uma terra de ninguém onde não há lei senão a animal, etc. Essa preocupação e esse sensacionalismo o deixam muito mais próximo de um outro rol de diretores, dessa vez muito menos interessantes: Gaspar Noé (Irreversível) ou os piores momentos de Lars Von Trier (sexo explícito, o mundo como um verdadeiro "se eu não te devorar, sou devorado"). Muitas vezes A Vida Nova recai e bate nessa tecla para poder ser considerado um excelente filme.

Quem, no entanto, julga que o trabalho de Philippe Grandrieux se resume a esse aspecto de menino esperto que quer apresentar ao espectador o lado obscuro do desejo estará perdendo os melhores traços dele clomo cineasta. Porque todos os momentos de extrapolação sensorial (e há alguns ótimos, como a cena em que Anna Mouglalis é primeiro humilhada para depois ser espancada, culminando num choro gutural capaz de dar calafrios) somados não alcançam a força sutil de alguns breves planos sombrios em que os corpos (sempre em closes muito aproximados) dos personagens somem no breu total para depois reaparecere levemente e depois novamente sumirem. Poéticos e evocativos como poucos, esses planos ficarão na memória e irão contrariar a própria tese do cineasta: no final tanto no começo, o que dá faz iniciar e o que guarda os esforços e o descaminhos do corpo é o trabalho da consciência. Que essa devoção cega e um tanto adolescente pela sensação física imediata possa dar lugar no futuro a uma mais trabalhada e consistente relação mente-corpo.

Ruy Gardnier