Ana e os Outros, de Celina Murga

Ana
y los otros, Argentina, 2002
Pequena obra-prima, Ana e os outros,
a começar pelo título, sabe o que quer. Filme de encontros
e encenação, aposta numa narrativa rarefeita para encenar
a volta da jovem Ana à sua cidade natal, Paraná, no interior
argentino. Não se sabe claramente os motivos de seu retorno à
cidade ou de sua saída da Buenos Aires onde vive; o que o filme
faz é lançar o espectador ao encontro de Ana e de seus passos.
Assim, simplesmente, os primeiros "outros" somos nós.
Através de encontros fugidios, amizades
efêmeras e a busca por um antigo namorado, Ana leva o espectador
pelas mãos através de diálogos e pequenas declarações
de amor pela vida cotidiana, por seus dilemas, pelas saudades de uma juventude
já passada. Um filme de não acontecimentos, onde ora eles
povoam as palavras e as memórias das personagens, ora são
narrados de forma distanciada, lacunar.
Apostando inicialmente num dispositivo cinematográfico
típico de Eric Rohmer, onde o foco está mais nas palavras
do que nas imagens, o filme tem uma segunda metade claramente decalcada
de Abbas Kiarostami, onde Ana parte ao encontro de seu ex-namorado e passamos
a acompanhar sua pequena jornada.
Em um certo sentido, o filme reitera um tópico
central do cinema argentino contemporâneo: o das viagens e jornadas
sem rumo definido. Mas faz isso de forma especialmente sutil, onde a angústia
(opção mais comum, como podemos ver em Cruzeiro do Sul
e Tão de Repente) é substituída por um certo
sentimento de reencontro, de redescoberta afetiva da memória. A
busca pelo ex-namorado e a venda da antiga casa da família marcam
esse eixo narrativo onde a vida e o tempo parecem inscritos por dentro
da imagem: uma urgência gentil no tom dos diálogos
e de cada uma das ações.
A crise econômica Argentina, tematizada
na degradação econômica das pequenas cidades do interior,
atravessa o filme mais como atmosfera do que como objeto de discussão.
Nesse sentido, Celina Murga faz com que as cidades visitadas, seus moradores
e suas ruas, funcionem como personagens imanentes, lugares de um tempo
onde Ana se encontra com memórias marcantes e pequenas lembranças
banais (onde era mesmo aquela loja de fotografia?). As conversas pelas
ruas de Paraná trazem a autenticidade de uma encenação
que brota de uma profunda intimidade com o espaço (a diretora é
natural da mesma cidade), e alcançam leveza e densidade dramática
em um mesmo movimento. Dos diálogos rohmerianos com amigos e vizinhos,
Ana se lança à busca de seu antigo amor, Mariano (sobre
quem, a todos pergunta a cada instante):
Nessa segunda parte, de ações
propriamente ditas, Ana encontra a figura de um menino, vizinho de Mariano,
e com ele passa a percorrer o cenário (Kiarostami sobrevoa cada
plano aqui) da pequena cidade de Vitória, onde agora reside Mariano.
O encontro com esse menino, os diálogos (ricos entre a precisão
discursiva e o improviso) dão ao filme contornos finais à
altura de sua inspiração.
O menino, como a imagem de um futuro inevitável,
narra seu amor por uma vizinha e ensaia uma "cantada" com a
ajuda de Ana. Quando chama Ana de "senhora", ela replica, diz
não ser "senhora", e o menino explica que sim, que ela
já está velha (ao menos para ele...). Anúncios de
futuros encontros e amores, esses comentários narrativos delicados
e a forma com que o filme acompanha a espera de Ana por Mariano pelas
ruas da cidadezinha, fazem de Ana e os outros, um filme, impressionantemente,
bem amarrado, ciente de cada um de seus planos, de cada uma de suas palavras.
Rigor estético, porém, que não faz com que o filme
perca vitalidade ou se torne mecânico – pelo contrário: é
dele (de uma ética conceitual apurada) que brotam seus instantes
de beleza ímpar, em que o cinema parece flagrar a vida, flagrar
o tempo.
O encontro final com Mariano, silencioso
e ausente, em que o vemos apenas ao longe, fecha o filme com exatidão:
Ana entra na casa, a rua fica vazia, os meninos passam brincando. Mariano
é a imagem ausente desse passado e essa promessa ainda dispersa
de um futuro (o sentimento de crise na Argentina retorna aqui e se encontra
com Ana). Uma eternidade de pequenos e grandes amores, de afetos carregados
por personagens que se encontram e se desencontram.
Ana e os outros é cinema de
primeira grandeza, conjugando com habilidade as influências de dois
mestres do cinema mundial e realizado por uma jovem diretora argentina.
A melhor surpresa que a mostra latina trouxe para o Festival do Rio 2003.
Felipe Bragança
|
|