Minha vida como McDull, de Toe Yuen

Mak dau goo si, Hong Kong, 2002


Minha Vida como McDull, de Toe Yuen

As panturrilhas de um porco

Memória dos afetos. Um corpo pequeno de porco e dois olhos precisamente doces. Estética Hello Kitty e animação 3D. Cores pastéis e tons de cinza. My Life as McDull narra a memória de um homem diante da cidade que o apaixona. Hong Kong, cidade-estado sino-inglesa, lugar de acridoce esquizofrenia cultural, lar da prosperidade tecnológica e do desejo de estar longe, muito longe dali. Sucesso nos quadrinhos (1990) e na série de TV (1997) McMug, o jovem porquinho McDull narra sua história em tons fluidos de ironia e docilidade, mesclando melodrama de costumes à comédia motora, costurando traços infantis à reprodução tridimensional e cinzenta da paisagem de Hong Kong. O pequeno porco, vivendo em meio às tensões culturais do ocidente anglo-saxão e as tradições da origem chinesa, narra sua própria vida em formato fragmentado e descontínuo, traçando, sob uma tênue linha de eventos, um álbum de retratos pessoal que é também uma pequena declaração de amor à sua infância.

A atmosfera ingênua das encenações, mesclada ao pano de fundo realista, dá ao filme o tom de fábula urbana desencantada, onde a tensão entre os desejos de sucesso e o cotidiano denso da metrópole faz-se em crítica apaixonada. A mãe, superprotetora, projetando no filho o sucesso inalcançado, é quem dá a cadência entre os fragmentos de memória. A fala em off, por vezes em voz de menino, por vezes voz de homem, costura os eventos e dá o tom do filtro afetivo no qual se instala o discurso. A idéia dos personagens apresentados como animais rechonchudos, a repetição dos mesmos traços para representar todos os outros personagens (professores, garçons, mestres, apresentadores de TV aparecem sempre com a mesma cara), reitera o jogo gráfico do filme entre um estatuto narrativo infantil e o lugar de quem constrói aquele discurso.

Filmes infantis, por condição, sempre guardam um dilema primordial de criação: são feitos por adultos, são narrados por adultos, são discursos de adultos sobre um momento da vida transformado em memória. O que My Life as McDull consegue fazer é justamente se instalar nesse dilema e fazer com que sua narração da infância possa se tornar também a narração especular do adulto em que aquelas memórias navegam. É nessa arquitetura arriscada que My Life as McDull funda sua motivação, onde nenhuma piada escapa aos tons do drama ou qualquer drama se livra de tornar-se fruto de pura graça. Estranhamentos de rara beleza (onde momentos cômicos aparecem fora-de-lugar e dramas atravessam situações ridículas) parecem tirar das mãos dos personagens a possibilidade de narrar a vida presente em desejos premeditados. Todas as tentativas de Ms. Bing (mãe de McDull) de construir um futuro brilhante vão aos poucos se mostrando incapazes de corresponder aos desejos vitoriosos (da aparência física ao "sonho olímpico") que ela tenta erguer em torno do filho.

Essa crítica ao sonho de sucesso burguês também se desdobra na forma como os aparatos tecnológicos e os traços de uma contemporaneidade auto-complacente são descritos no filme: Internet, televisão, gráficos em terceira dimensão, todos são elementos que aparecem em dupla-camada, fazendo um comentário sobre si mesmas, uma crítica inscrita em suas aparências mas que sabe fugir de qualquer pretensão negativista. A contemporaneidade urbana, a paisagem fragmentada de Hong Kong, aparecem como cenário de uma vida onde a esperança melancólica do sucesso (traço comum numa cultura recheada de grandes êxitos e ainda maiores falências) não é observada com desprezo, mas com interesse por seus pequenos afetos, seus parâmetros de intensidade. O programa de culinária e a página de receitas na internet de Ms. McBing aparecem, a um só tempo, como o orgulho sincero de uma mulher e o retrato de uma certa glamourização da rotina e da repetição como forma de se obter a saúde, a melhor receita, a forma correta de execução. Galinha, peixe, arroz e papel, galinha peixe, arroz e papel: a rotinização industrial transcriada através de um olhar que busca nos gestos banais de midiatização, os traços dos desejos e afetos de uma mulher e de seu filho.

Nesse sentido, a sequência da falsa viagem às Malvinas se destaca pelo jogo que estabelece entre os desejos de fuga do menino para um lugar longe dali ("um outro lugar", como diz a propaganda da TV) e as possibilidades de um afeto livre que fazem as palmeiras de um shoppingcenter se tornarem cenário de uma ensolarada praia. A virtualização dos espaços (fenômeno intensificado no espírito contemporâneo) e a fantasia do sonho infantil de estar fora de si comentam-se reciprocamente. O desejo de sucesso para além do cotidiano reiterativo (mas conquistado através dessa reiteração – "sem trabalho não há lucro" como diz Ms. McBing), se perde em planos inférteis de sucesso e realização (aqui o filme brinca com a obsessão de progresso de um pequeno Estado capitalista como HK) e se faz em patética beleza quando o porquinho trafega pelos cenários endurecidos da metrópole.

Quando Ms. McBing resolve fazer de McDull uma estrela olímpica (resgatando um esporte há muito esquecido: o "agarramento de bolinhos de arroz") e pretende colocar seu filho num lugar de destaque nas manchetes internacionais, o filme prepara seu último movimento. A profusão de esportes exóticos que se candidatam a uma vaga nos jogos asiáticos com sede na cidade é um retrato do descompasso entre as tradições de HK e seu desejo de se afirmar através das sempre novas demandas de sucesso e vitória. Nem mesmo um velho mestre do "agarramento de bolinhos" escapa (ao mostrar a força de sua panturrilha) de ser comparado a uma máquina, a um jogo de videogame, aos gráficos de poder que povoam a imaginação de McDull e sua mãe. O fracasso da tentativa de McDull de se tornar um rosto conhecido (o "agarramento de bolinhos" não é escolhido como esporte olímpico e o treinamento é interrompido) marca o tom maior da melancolia com que o filme subverte a aparência amena de suas primeiras imagens.

My Life as McDull, no entanto, não é um filme sobre um loser que aprende a dar a volta por cima (típica de um certo cinema do "I can do it" norte-americano), mas um curioso filme de redescoberta do tempo, das formas de se colocar diante da vontade de um futuro e da realização da vida cotidiana. Do período de explosão industrial e financeira da década de 70 passando pela época de seu reingresso à China continental (2000) e insinuando um futuro incerto, McDull-Hong Kong fala de seus fracassos e de seus desejos e olha para as próprias pernas com a alegria. Quando McDull torna-se adulto, caminhando por ruas chuvosas (e por fim aparece como um ator de carne e osso do qual não vemos o rosto), suas panturrilhas, endurecidas pelo tempo e pela busca do futuro idealizado, parecem se tornar tão inúteis quanto também aquelas sobras as quais ele sente sua própria presença.

Essa alegre desilusão, que vem se sobrepor à esparançosa melancolia de sua infância, parece ser a resposta do narrador à extrema beleza e desconcerto de uma vida repleta de carências, de faltas, de um consumismo cotidiano inflado e desanimado. O topo do pódio: expandidos em economia, desconcertados culturalmente, acumulados de informação e fracassados ao mesmo tempo, McDull-Hong Kong se narram, agora, diante de um protagonismo onde não mais o futuro glorioso se anuncia, mas onde um presente banal, belo e inesgotavelmente impregnado em seu corpo, está instalado. Esse pós-capitalismo expansivo, essa desilusão com o progresso de nossos atos, essa arte de tentar recriar a vida como teatro de marionetes em que possamos não mais nos lamentar ou redimir, mas rir docemente das agruras e alegrias de nossos atos. McDull é a história de um homem que se narra, e ao se narrar, parece descobrir o peso de suas pernas.

Corpo que se realiza sobre si mesmo e que não chega a lugar algum senão no presente em que se está. Não a humildade ou a celebração da fraqueza, mas a descoberta de uma vida impregnada no presente pesado de suas próprias pernas (e celebrada assim). A narração que foge das mãos (controle manipulador) do narrador-menino (e de sua mãe) e se instala no trafegar incerto de suas pernas endurecidas. Na memória muscular de seu caminho, uma fábula infantil que nada ensina às crianças porque elas (as tais crianças) parecem não existir: elas são meros desejos perdidos, vontades deformadas de um futuro brilhante. A infância não mais revista como um lugar a ser reencenado, mas como um passado redobrado sobre as memórias de nossas vontades. Toe Yuen, faz, em seu primeiro longa (com o texto de Brian Tse e os desenhos de Alice Mak, criadores da série original), um filme infantil invertido, feito para adultos não porque tenha uma estrutura complexa demais para os mais novos ou porque não dialogue com a estética dos desenhos animados para crianças, mas porque se dá como a retroprojeção redimensionada desse lugar incerto de cores pasteis, desses animais rechonchudos, dessas vozes adocicadas, desses movimentos imaginados em calorosas fantasias.

A criança vem depois do adulto - e não o inverso. My Life as McDull é nesse depois, é nesse agora.

Felipe Bragança