Tetralogia Máquina Mortífera,
de Richard Donner

Lethal Weapon, EUA, 1987-1998

É possível dizer que Máquina Mortífera, típico produto de grande estúdio, representa um projeto pessoal de Richard Donner. Como bastante raro nas séries cinematográficas que ultrapassam o segundo episódio, quando geralmente cada filme é encomendado a um realizador diferente, os quatro Máquina Mortífera são dirigidos por Donner e partem de sua vontade de fazê-los acontecer, de sua vontade de levantar recursos e produzi-los – daí podermos dizer que o projeto é seu, que dele dependeu a continuidade.

O absoluto sucesso de renda do primeiro filme havia criado um impasse: arriscar uma continuação que repetisse o êxito ou macular a boa reputação do episódio anterior? Embora tenha conseguido uma resposta de público razoável, Máquina Mortífera 2 revelou-se muito pouco eficaz como continuação: apesar dos momentos engraçados (Murtaugh sem poder levantar da privada por causa de uma bomba ali acoplada é extremamente hilário), pareciam cenas reeditadas, vilões reeditados, trama demasiadamente semelhante, as seqüências de ação se acavalavam sem deixar no espectador uma vontade de degustação prolongada (coisa que no primeiro filme era evidente), os próprios diálogos cômicos não estavam tão afiados (Leo, personagem de Joe Pesci que surge nesse filme, só começaria a funcionar efetivamente a partir do terceiro). A tirar pelo esgotamento criativo estampado nesse segundo filme, tudo dava a entender que Donner pararia por ali, o que não muito tempo depois, em 1992 (o segundo é de 1989), foi negado por Máquina Mortífera 3 (resultado superior ao segundo, mas ainda bastante aquém do pioneiro da série). Uma trilogia se fechara: três filmes em cinco anos.

Não, nada havia se fechado. Sete anos depois Donner decide que é hora de voltar à sua dupla dinâmica, ou melhor, de mostrar como essa dupla envelheceu e durante os anos de "reclusão" acabou por criar uma família (o sentido de união nesse quarto filme beira as raias da pieguice). Máquina Mortífera 4 é, ao mesmo tempo, o mais comédia e o mais drama dos filmes da série. Questão comercial posta de lado, havia a necessidade de resolver, no universo diegético, o paradeiro de Riggs e Murtaugh.

O fato é que Máquima Mortífera fez aparecer uma longa fila de buddy films policiais com tempero engraçadinho (o patético Money Train, de Joseph Ruben - onde a escalação de Wesley Snipes e Woody Harrelson tenta simultânea e equivocadamente repetir o entrosamento de White Men Can’t Jump e se aproximar da dupla mortífera Mel Gibson/Denny Glover – e Bad Boys – cuja continuação já tem trailer circulando pelos cinemas do Rio –, de Michael Bay, são bons exemplos). Andrzej Bartkowiak, antes diretor de fotografia de Máquina Mortífera 4, também fez um filme no rastro deixado por Donner: o fraco Contra o Tempo (Jet Li - que desponta no cinema americano com o próprio MM 4 - emperrado pela hiperdecupagem das cenas de luta, roteiro bobo, estereotipagens infrutíferas, atuações ruins). Jan De Bont, que dirigiu Velocidade Máxima e o segundo Lara Croft, entre outros, fez a fotografia de MM 3. Em suma, Máquina Mortífera congrega muitos nomes do cinema de ação americano de hoje.

Parênteses: membro da Sociedade Protetora dos Animais, Donner projeta em Riggs a facilidade de lidar com bichos. Em toda a série Máquina Mortífera pululam alusões a essa faceta pouco conhecida de Richard Donner (a cena inicial de MM 3, quando um fio cortado errado acarreta a implosão de todo um prédio, mas o gatinho que estava no estacionamento é salvo pela dupla de heróis; a cena com o tubarão no barco de Murtaugh em MM 4; a relação de Riggs com os cães).

Hábil contador de fábulas adolescentes (O Feitiço de Áquila, Os Goonies), Richard Donner realiza com Máquina Mortífera, de 1987, um filme mais violento e adulto. Se dois anos antes Os Goonies lhe garantia toda uma geração de fãs que menos de uma década depois já sofreria de uma nostalgia precoce ao assistir ao seu clássico infanto-juvenil na Sessão da Tarde, naquele momento a dupla Riggs/Murtaugh se configurava como alavanca de um subgênero – policial-comédia – estacionado desde Um Tira da Pesada, de 1984 (a própria continuação filmada por Tonny Scott no mesmo ano do primeiro MM não convenceu muita gente). Em tempo: sem o excelente 48 Horas (1982, dir. Walter Hill), é bem provável que esse subgênero nem fosse para frente.

O que faz de Máquina Mortífera, e isso serve para os quatro filmes, uma obra agradável e bastante eficiente como entretenimento está em grande parte na agilidade dos diálogos e na opção pelo formato clássico para as cenas de ação. MM é daqueles filmes em que o herói usufrui uma liberdade pela lei e sob a lei ao mesmo tempo, ou seja, a serviço das autoridades porém passando ao largo de sua cartilha. O distintivo de policial lhe permite fazer do espaço urbano um campo de batalha e perseguição, mas as imprudências (não recomendadas pela boa cidadania) sempre lhe custam caro (Riggs e Murtaugh vivem levando puxão de orelha, perdendo o distintivo ou sendo afastados de casos). O (velho) jogo de MM é justamente esse: a dupla em nome da conduta, da proteção e da justiça – mas agindo com má conduta (do ponto de vista das autoridades convencionais), elegendo métodos pessoais e pondo a sociedade em risco (no fundo nós espectadores sabemos que a destreza dos heróis não permite que essa sociedade entre em risco, mas seus superiores nada disso reconhecem). A constituição da dupla trabalha a previsível bipolaridade: o impulsivo e o contido, o viúvo que mora sozinho num trailer e o casado com filhos... O companheirismo que os une dá o tom sentimental observado nos filmes da série. E é mesmo quando a coisa fica pessoal que os heróis Riggs e Murtaugh (cuja casa é sempre invadida pelos vilões, que ameaçam sua família e fazem chantagem – lembrar que já no primeiro episódio sua filha mais velha é seqüestrada) realmente se empenham em solucioná-la.

Os dois filmes do meio, um tanto enfadonhos, criam um abismo entre o primeiro e o último, estes sim grandes produtos do cinemão. À medida que a série progride, o companheirismo se firma como sua principal mensagem, o que se explica na cena final de MM 4: todo o conjunto de personagens, que cresce de filme para filme, agrupado para uma foto e afirmando em uníssono: "somos uma família". Tal desfecho também confirma a visão utópica (característica, conforme afirmaria Fredric Jameson, da cultura de massa de não poder cumprir sua tarefa sem suscitar profundas e fundamentais esperanças e fantasias da coletividade?) que cabe aos finais felizes/libertários de Donner (a libertação do navio em Os Goonies foi sua maior expressão visual nesse sentido). Happy end como escolha dentro de um repertório cinematográfico tradicional ou como ilusão de harmonia social reificada? Relaxemos: that’s only entertainment.

Luiz Carlos Oliveira Jr.