Esses gauleses são todos
loucos

Nas histórias de Goscinny e Uderzo,
a folclórica pequena aldeia da Gália onde moravam Asterix,
Obelix e cia era o último reduto de resistência ao Império
Romano em toda a Europa. Desnecessário dizer o quanto o fino humor
dos dois responsáveis pela série falava muito mais dos mitos
que perduram sobre algumas das principais características nacionais
de vários países (principalmente, mas não somente,
europeus), buscando uma gênese destas marcas contemporâneas
num passado longínquo, sempre pelo viés do humor. Sendo
uma criação francesa, ainda mais desnecessário seria
apontar como este humor se aplicava com muito mais adequação
aos próprios franceses/gauleses. Não por acaso a mítica
resistência gaulesa ao Império tinha muito do propalado orgulho
francês, e, especificamente, de sua relação mais recente
com o "império" norte-americano sobre a cultura e o pensamento
mundial. Relação esta em tudo superdimensionada na seara
do cinema, com a presença mundial do produto hollywoodiano sendo
uma realidade bastante "imperial", e vendo-se que os confrontos
com os franceses nesta área sobre as questões da resistência
cultural já foram pano para muitas mangas (em especial na passagem
de Jack Lang pelo Ministério da Cultura francês).
Recentemente, em especial nos últimos
dois anos, o cinema francês conseguiu uma participação
no mercado interno (e, de forma bem mais amena, mas ainda assim destacada,
no mercado mundial também) notável. Boa parte desta "resistência",
porém, foi bastante contestada por representantes do cinema francês
mais confrontador por ser, de uma forma ou de outra, uma reprodução
dos modelos de produção e narrativa hollywoodianos dentro
da indústria francesa (e, num paradoxo interessante, os filmes
com os personagens de Goscinny e Uderzo são alguns dos mais diretamente
relacionados com esta vertente). Com isso, o "específico cultural"
francês estaria sendo perdido naquilo que se tornava, então,
uma simples questão de mercados e lucros. Quanto a esta questão,
foi extremamente enriquecedor poder ver, na última edição
do Anima Mundi, dois filmes franceses de longa-metragem em animação
tornando plenamente palpável esta questão, esta verdadeira
divisão de pensamentos e formatos de cinema.
Por um lado, pudemos ver Les Enfants de
la Pluie, de Philippe Leclerc. Assim que o filme começa, na
cópia que foi trazida ao Brasil, já podemos antever a problemática
acima descrita, pois vemos um filme falado em inglês. Ora, não
é preciso ser muito antenado para saber o quanto a língua
é um dos principais redutos de radicalização francesa
quanto a seu específico cultural, ainda mais em relação
ao inglês. Ao vermos este filme francês (a bem da verdade,
franco-coreano) falado todo em inglês, já podemos ver um
primeiro aceno a uma idéia de cinema francês "for export".
No entanto, embora a língua desta cópia seja o sinal mais
claro, está longe de ser o principal: o filme é, de fato,
todo pensado dentro da mesma lógica dramatúrgica do grande
cinema de animação (ou mesmo "de ação")
hollywoodiano. Num mundo claramente dividido entre bons e maus, temos
um vilão megalomaníaco a ser derrotado, um romance a ser
consumado, etc. Só que isso tudo feito "à moda antiga",
que significa menos uma questão de técnica de animação
e muito mais da ausência do humor e da auto-ironia tão presentes
na animação americana pós-anos 90, em especial pela
via da Pixar (mas não somente).
Les Enfants de la Pluie é,
de fato, um filme "pesadão", uma tentativa de repetir
este modelo de produção (inclusive, os visuais do filme
lembram muito o trabalho com animação não-digital
da Dreamworks, como nos exemplos de O Príncipe do Egito
ou Sinbad), e com isso soando incrivelmente inadequado, sem controle
de ritmo ou qualquer tipo de interesse de roteiro além de sua visão
mais rasa – há na gênese do projeto (adaptado de um romance),
é verdade, uma clara alusão à questão palestina,
mas isso fica no mais óbvio nível de metáfora, sem
nenhum interesse real. O filme seria o equivalente francês ao que
seja o pior da "macaqueação" ligada, por exemplo,
a uma tentativa industrial como a da Vera Cruz, no Brasil: apreende-se
o que há de mais básico em know how e equipamentos de um
modelo externo, e tenta-se forçá-lo por cima de um contexto
nacional completamente diverso. O resultado, na tela, é capenga,
quando não risível, e absolutamente esquecível. Produto
de segunda mão, sempre.
Por outro lado, de forma completamente diversa,
podemos nos aproximar deste tema da recente produção francesa
olhando o outro longa de lá exibido no Anima Mundi: Les Triplettes
de Belleville, de Sylvain Chomet. O filme, de fato, é em tudo
anti-hollywoodiano. Primeiro, pelo traço extremamente peculiar
da animação, que remete a todo um artesanato visual, impossível
de localizar temporalmente mas certamente remetendo a um passado (que
o filme toma como o tempo onde se passa sua narrativa). Depois, pela história
em si, onde fatos e encadeamentos narrativos são muito menos importantes
do que a noção de clima (que o filme cria brilhantemente
em pouquíssimos minutos) e, acima de tudo, de um surrealismo surpreendente
até na liberdade que domina o mundo dos desenhos animados (é
dado, por exemplo, a um cachorro no filme um momento subjetivo onde podemos
ver o seu sonho). E, finalmente, existe no próprio filme o abraço
a estes temas nacionais, tomando como ponto de partida um dos eventos
mais "nacionais" da França, a Tour de France, e depois
movendo a história para uma cidade que, não fica qualquer
dúvida, representa uma estilização visual e imaginária
de Nova York, vista num contraste enorme de pobreza e riqueza, e trabalhando
em especial o tema dos imigrantes.
Impressiona no filme a riqueza e a delicadeza
com que se busca o trabalho nos mínimos detalhes – o humor vem
dos menores gestos, frases, entonações. A construção
do filme em uma série de gags visuais-auditivas não deixa
qualquer dúvida sobre sua principal filiação cinematográfica
(assumida várias vezes, inclusive, dentro do próprio filme):
Jacques Tati. Mas não é só ele quem recebe referências
no filme, como vários outros ícones culturais e cinematográficos
que tornam o filme ainda mais delicioso em seus diálogos artísticos
(um dos mais belos sendo relacionado a Fred Astaire). Um diálogo
certamente involuntário, mas completamente direto, se dá
com o filme de Hong Kong exibido no Anima Mundi (My Life as McDull):
filme igualmente idiossincrático, e absolutamente "nacional"
(ainda que com referências e visualidade tão distintas quanto
são França e Hong Kong), mas igualmente distante de qualquer
"padrão de qualidade" de dramaturgia e animação.
Filmes completamente livres, que lidam em parte com um mesmo tema, verdadeiramente
sério mas tratado com enorme humor: os excessos de expectativas
dos adultos com suas crianças, que vivem num mundo regido por esta
necessidade de "sucesso".
O filme de Chomet se assume, sempre, como
uma viagem a um mundo completamente diferente (ainda que diretamente relacionado)
ao que possamos entender como realidade – e nisso parece buscar de volta
uma das funções primordiais da animação: a
de mostrar aquilo que não se poderia criar em imagens filmadas.
Missão esta que, aliás, a cada dia se torna mais e mais
difícil com o avanço da tecnologia de efeitos digitais,
onde quase tudo se torna possível de ser "filmado" –
podemos lembrar como, até bem pouco tempo, tanto O Senhor dos
Anéis quanto X-Men eram considerados "infilmáveis",
mas já tinham suas versões animadas. Talvez este seja um
dos principais problemas de filmes como Les Enfants de La Pluie,
hoje: seu trabalho de animação realista, antropomórfico,
parece completamente inadequado, e nos perguntamos o tempo todo o que
o filme ganhou tendo sido feito em animação. Em Les Triplettes
não restam dúvidas: pelo que o traço do animador
consegue nos transmitir em si mesmo já estamos num mundo que não
poderia existir de outra forma que não a animação.
A partir dali, o trabalho com o fantasioso, com o irreal, e muitas vezes
com uma super-realidade que só o desenho (ou a charge) pode transmitir,
demonstram o tempo todo qual ainda pode ser um papel que a animação
jamais deixará de cumprir, não importando os avanços
tecnológicos.
Na briga pela resistência da produção
francesa ao "ataque cultural" hollywoodiano, assistir a estes
dois filmes deixa bem clara uma coisa principalmente: embora seja sempre
difícil saber qual deles permitirá um maior percentual francês
sobre sua bilheteria (o que, no fundo, significaria permitir que mais
filmes franceses existam), é fácil ver qual opção
de trabalho mantém alguma relevância específica do
produto nacional em termos mundiais. Então, façamos assim:
que Les Enfants possa ao menos permitir que existam mais Triplettes.
Talvez não seja um ideal de modelo, mas trabalhemos com este por
enquanto, torcendo pra um dia se poder abrir mão do "intermediário"
(em todos os sentidos, algo nem tanto lá nem tanto cá).
Eduardo Valente
|
|