Elogio da fábula


A Viagem de Chihiro de Hayao Miyazaki

Quando Cathy Whitaker acena o adeus para seu amado na estaçao de trem, ao fim de Longe do Paraíso, temos a sensação de que alguma coisa se encerra, de que um ciclo é quebrado e finalmente existe a possibilidade de não precisar ocultar os sentimentos. Porém, a experiência sentida é a da tristeza: no mundo que nos conta Longe do Paraíso, não há o menor espaço para a satisfação dos próprios desejos senão um último momento de despedida antes da total imersão na infelicidade. No entanto, o filme não acaba na plataforma da estação. Ainda vemos Cathy deixar o local e pegar seu carro. O último plano é distanciado, visto de cima e, logo, com uma perspectiva de onipresença divina. É a retomada final do diretor, o espaço para Todd Haynes escrever em seu último parágrafo uma espécie de "moral da história" do filme; em todo caso, uma última reafirmação daquilo que já vínhamos sentindo ao longo do filme sobre a impossibilidade de uma sociedade específica, a americana (e pouco imoprta se é a dos anos 50 ou a de hoje), em permitir que seus indivíduos/personagens dêem vazão a seus desejos mais fortes e honestos. Só que o plano não é inteiramente denotativo. Há um último movimento de câmera em que a grua sai de Cathy para reenquadrar uma paisagem prosaica ao fundo, devidamente emoldurada por um galho florido de árvore transformado pela mise-en-scène de Todd Haynes em arranjo floral.

Naturalmente, mais um efeito de dissonância entre relato e imagem se faz sentir – o último, em todo caso. Pelo simples fato de que não existe no plano emocional do filme um correlato de beleza para a exuberância que vemos exibida na tela. Não conseguimos purgar em nenhum dos personagens o mundo de beleza que a construção de imagem do filme não cansa de continuamente produzir. Reside aí toda a maestria de condução de Todd Haynes em Longe do Paraíso: pegar dois mundos de valores tradicionais e ancorados na recente memória americana (o puritanismo dos anos 50 e o quase barroquismo dos melodramas americanos da época, sobretudo os de Douglas Sirk) para constatar a crise de ambos os modelos, refletindo-os conseqüentemente – pois o filme se faz em tempo presente – na sociedade americana de hoje. No plano do relato, Haynes institui uma fissura irreconciliável com uma possível felicidade no fim do filme; já no plano da imagem, Haynes faz sempre questão de colocar a imgem "produzida" demais, posada e teatral demais para o naturalismo reinante. Nesse efeito produzido por essa percepção lacunar dos dois planos de composição do filme, nessa produção de dissonância reside toda a contemporaneidade de Longe do Paraíso: ele nega no plano do relato do filme qualquer possibilidade de purgação de todas as belas imagens que se perfilam na tela e enchem nossos olhos. A genialidade do filme é fazer com que toda essa beleza pareça demais, pareça hedionda, doa em nós por não haver nada nela que corresponda à situação que nossos personagens vivem.

Mas essa constatação, porém, não pode deixar de entrever um profundo problema que o mundo contemporâneo tem com a produção de imagens e com o modo de usufruir delas. Estamos definitivamente longe do classicismo e de uma relação ingênua com o mundo das imagens, em que um Jean Renoir ou um John Ford poderiam extrair beleza de nossos grandes gestos do cotidiano e nos maravilhar com eles. Ou então um cinema inteiramente fantasista, assinado Vincente Minnelli, Stanley Donen ou Charles Walters – ou, na série B, Jacques Tourneur ou Robert Siodmak – poderia transfigurar o mundo em algo que não era exatamente o que víamos dele, mas algo que gostaríamos que o mundo fosse. Dessa época é uma expressão célebre, atribuída muito erroneamente a André Bazin – graças a uma espécie de "pegadinha" feita por Godard – e na verdade de Michel Mourlet, que diz assim: "O cinema substitui ao nosso olhar um mundo que corresponde aos nossos desejos."1 Empresa classicista, senão marcadamente solipsista – o cinema deveria lidar não com a realidade vivida em conjunto entre os indivíduos de uma comunidade, mas exclusivamente com os anseios mais marcadamente individuais e fantasiosos que temos –, essa frase e essa defesa do cinema exclusivamente pela fascinação assustam por retirar do cinema seu elo com o mundo real, fazendo com que uma mulher não seja uma mulher, mas a mulher; não um amor, mas o amor; não um gesto belo, mas o gesto belo por excelência. De qualquer forma, essa concepção do cinema traz à luz uma dimensão relevante e fundamental do cinema, de onde ele tira grande parte de sua importância social e existencial para as pessoas: o maravilhamento com as imagens grandes, e com um mundo construído para criar uma identificação pela beleza com o espectador.

Essa fascinação "ingênua", sabemos, foi tudo aquilo que o cinema moderno tentou dissociar do prazer estético. Menos por uma vontade em ser do contra do que por uma constatação de que esse mundo imagético já não era mais possível na passagem dos anos 50 para os anos 60. Não era tanto a imagem que mudava quanto seu estatuto social: a televisão, as revistas, a publicidade tinham projetos imagéticos muito diferentes do projeto dos admiradores do cinema – aprendizagem ou paixão analítica, segundo a crença aristotélica de que arte produz a possibilidade de construção de conhecimento (mathesis). A partir dos anos 50 e 60, fica muito mais clara a natureza fascinatória da imagem em movimento e de sua apropriação para fins exclusivamente mercantis – divulgar, produzir motivações de compra, criar sentimento de não-pertencimento ao consumidor sem o produto, etc. Assim, nada mais natural do que terem nascido movimentos de cinema que buscavam outra relação com as imagens que não se pautassem mais na fascinação alienante da sociedade de consumo, mas na construção de uma realidade social e estética mais complexa, em que os personagens não são mais lisos e transparentes, e em que a própria tessitura formal dos filmes demanda esforço do espectador para ser acompanhada e compreendida (ao contrário da limpidez clássica). O cinema, tardiamente no século mas ainda muito cedo para sua própria história, converte-se em arte moderna.

Hoje, o mínimo que se pode dizer é que o cinema moderno, embora sempre minoritário em termos de visibilidade para os públicos ao redor do mundo, ganhou sua aposta. A imagem, hoje mais do que nunca, revela-se cada vez mais incapaz de um investimento fascinatório baseando-se numa certa inocência primitiva do mundo. Investi-lo dessa forma, hoje, só é possível sob a forma de uma certa nostalgia asseptizante e com fobia do mundo de carne e osso (O Fabuloso Destino de Amélie Poulain) ou de uma relação de crise de má-consciência nítida com o próprio projeto que se está desenvolvendo (todo o cinema de Steven Spielberg dos anos 90 pra cá). De resto, o cinema moderno – e o maneirista ou "pós-moderno", baseando sua estética numa espécie de falta constitutiva em relação a um referencial já perdido, a imagem "pura" do classicismo – estendeu sua suspeita por sobre toda a superficie do cinema e da imagem em geral: proclamou antes de todos que uma imagem não era apenas uma imagem, mas uma complexa síntese de referência ao mundo real, composição formal, manipulação narrativa e imagética, relação com o universo artístico de outras imagens, figuratividade do corpo e das ações humanas, etc. Ao longo dos anos 60 e 70, uma série de realizadores estabeleceram seus projetos de cinema buscando uma forma de beleza cinematográfica que não passasse por esse viés da fascinação ingênua, mesmo que alguns se tivessem aproveitado dela em alguma medida: Godard, Straub/Huillet, Fassbinder, Syberberg, Rocha, Rivette... Mesmo que esses cinemas tenham hoje visibilidade quase nenhuma no circuito cinéfilo internacional – não só no Brasil –, são nomes que deixaram sua marca indelével no cinema através da influência sobre os diretores dos anos 80 e 90 que, mesmo apropriando-se muito particularmente das preocupações desses cineastas – não dá pra dizer que são seguidores: antes influenciados mesmo –, prolongam a preocupação com a história da imagem e a idade do cinema, uma relação de citação crítica com outras obras de arte e questionam (muito embora mais nos quadros do cinema vigente, é certo) o estatuto da narração e o fetiche provocado pela imagem. Cineastas tão disparates quanto Brian De Palma, Quentin Tarantino, Takeshi Kitano, David Lynch, Abbas Kiarostami, Hou Hsiao-hsien, Todd Haynes ou Wong Kar-wai.

Mas isso já é razoavelmente notório. O que surpreende é que o cinema mais convencional não encontre realizadores com propostas estéticas tão vigorosas dentro do esquadro da linguagem narrativa canônica que poderíamos chamar, depois de Deleuze, do cinema do esquema sensório-motor: cada plano deve conter e ser somente o correlato das ações desenvolvíveis pelos atores em seu espaço, nem mais nem menos. Excetuando Clint Eastwood, que em diversos aspectos não é em nada um cineasta clássico (a relação com o envelhecimento, a sensação de ser um homem que volta do mundo dos mortos para vingar o dos vivos), não há no cinema americano nenhum ralizador que tencione restaurar um circuito de crenças baseado na ficção tradicional – Titanic talvez tenha sido o único projeto desse tipo, mas certamente não é um projeto em continuidade de James Cameron. O cinema americano hoje é ou artesanato (John McTiernan, Jonathan Mostow) ou claramente separado da cadeia significante de Hollywood (de Gus Van Sant a Larry Clarke, passando por Wes Anderson e Spike Lee).

Resta um fato curioso, para voltarmos a onde começamos: Longe do Paraíso foi o filme mais bem acolhido pela crítica americana em 2002. Não exatamente por ser um filme conceito que tenta curto-circuitar nossa época com os anos 50 e realizar uma espécie de tratado da fascinação impossível, mas antes por ter feito aquilo que Hollywood não consegue mais: fazer uma linda história de amor "à moda antiga" (um uso muito pouco aplicável ao filme, devo dizer). O fato de um filme que denuncia a impossibilidade da fascinação ser elevado à condição de único filme que nos consegue fascinar nos revela um diagnóstico muito forte sobre o tempo de hoje: a imagem das coisas vivas já não consegue mais – no momento, ao menos – nos maravilhar de forma nenhuma. Não seria difícil Longe do Paraíso tornar-se mais palatável e menos duro com o epectador. A saída, extritamente narrativa, seria inventar um universo interior para a personagem de Cathy, mostrar ao espectador ao menos um mundo de memórias e/ou fantasias ao qual ela pudesse se apegar para, ao fim do filme, viver uma vida menos miserável. Mas não: é justamente a negação de qualquer "paraíso" possível que faz a força desse filme tão triste e vigoroso.

Um outro filme exibido recentemente, contudo, também instala uma personagem feminina num mundo estranho, um paraíso às avessas. É A Viagem de Chihiro, animação do diretor japonês Hayao Miyazaki. O filme conta a história de uma menina que viaja com seus pais para uma nova casa. Parando no meio do caminho, os pais descobrem uma trilha que dá numa espécie de "parque temático abandonado", como eles mesmos dizem. Instala-se o sonho: os pais tornam-se porcos, Chihiro perde os ideogramas de seu nome e se vê confrontada, sozinha, a um mundo estranho mas divino e maravilhoso, em que os seres e hábitos mais feios têm todo um encantamento particular, em que o feio e o bonito não designam conteúdos morais definíveis, em que os próprios personagens não são subsumíveis simplesmente por esses valores morais. A Viagem de Chihiro, no entanto, não tem nada de rito iniciático ou romance de formação, em que o personagem principal ganha alguma coisa que será necessária para toda sua vida adulta. Ao fim do filme, Chihiro treme da mesma forma ao passar pelo túnel escuro. Ela, como Cathy Whitaker em Longe do Paraíso, não reteve nada além da lembrança daquele mundo que ela acaba de deixar. Com uma diferença, porém: ao fim de seu percurso, a menina Chihiro vai carregar consigo para sempre, como uma memória positiva, a vivência daquele mundo. E, junto com ela, nós, os espectadores. Ao passo que, para Cathy, por mais que tenha havido momentos belos (a dança no bar, a confissão na rua, o momento final na estação), eram momentos belos apesar do mundo e não por causa dele.

Curioso estatuto da imagem, A Viagem de Chihiro é um filme de animação e Longe do Paraíso é em "live action". E, mais curioso ainda, Chihiro é o único filme em muito tempo com a clara proposta de maravilhar o espectador com um universo sem bula, estranho, díspar, porém adorável mesmo assim. Não é uma prerrogativa do cinema de animação: a Disney, por exemplo, costuma fazer um trabalho de redução das asperezas da vida real para poder construir beleza em seus filmes, ou então apoiar-se francamente numa estratégia antropomórfica para encantar o mundo com seus bichinhos nada animalescos. Em Chihiro, os humanos é que são animalescos, nem tanto mas não menos do que qualquer "deus sujo" que faz feder toda a casa de banhos em que a jovem Sen trabalha. É de um mundo inteiro a descobrir e da aparente infinitude desse percurso de descoberta que nasce a ficção e o maravilhamento de A Viagem de Chihiro. Que o único filme que nos propõe tal viagem profunda para daí retirar um intenso sentimento de fascinação seja uma animação, isso não diz muito a respeito da situação e da crise de crença na ficção do cinema contemporâneo? Será que já desconfiamos absolutamente de qualquer imagem já feita? O desvio pelo flerte com o documental, de Elephant a Dez, já nos fazia crer. Mas esse flerte não nos cria a fascinação, esse estranho "mundo que corresponde a nossos desejos" que um dia já fez todo o poder encantatório do cinema. Estaríamos, na falência da ficção live action, outorgando apenas ao cinema de animação que nos maravilhe com um mundo que se adeqüe a nossos desejos?

Ruy Gardnier


1. "Sur un art ignoré", in Cahiers du Cinéma, 98.