O cinema da distopia brasileira 1


Leona Cavalli e Paulo Vespúcio Garcia em Um Céu de Estrelas de Tata Amaral

Nos momentos finais de Amarelo Manga, de Claudio Assis, Aleyona Cavalli lamenta que, embora haja dias nos quais tudo parece acontecer, sua vida é repetição e continuidade, sem nenhuma novidade transformadora. Em uma outra passagem, um padre, para quem a única fidelidade é a canina, decreta que o ser humano, atropelado pela falta de sentido da vida e da morte, está condenado a sofrer pela eternidade. As duas posturas ressaltam o mal estar espalhado pelo filme e servem como uma chave para uma terceira seqüência, esta documental, filmada nas ruas do Recife, na qual rostos anônimos ocupam a tela e expressam a falta de esperança no futuro. Imobilismo e impotência diante do infortúnio. Essas são as duas sensações transmitidas pelo filme. Apenas duas mulheres, Dira Paes e Aleyona, reagem, violentamente, ao que as oprime. Considerar libertárias suas posturas e atitudes seria ingenuidade. Aleyona tem à frente, pelo que se sugere, uma seqüência de opressões. Dira dá a impressão de ter se libertado de determinada condição, a de mulher submissa ao marido e aos desígnios divinos, para simular uma transformação com a mudança de cor do cabelo, mas pode estar se reduzindo, com isso, à condição de objeto sexual na qual está Aleyona. Não há possibilidade de final feliz.

Os olhares céticos em relação à vida e ao país têm sido mais ou menos freqüentes na produção recente do Brasil. Embora não se possa encarar os novos diretores de longa-metragem como parte de uma "geração", por não terem a mesma idade, ou tampouco propósitos em comum, muitos desses profissionais revelam em suas imagens que, apesar de não terem um discurso pronto para discorrer a respeito, não vêem sentido no antigo ideal de "país do futuro", título da reportagem do escritor austríaco Stephen Zweig, em 1941, quando celebrava a convivência cordial entre diferentes raças e religiões no país, em uma convicta reafirmação da lógica superior da História . Pois a História, dentro dessa lógica, teria se enganado, segundo esses filmes. E não parece acaso histórico que essas perpectivas amargas, às vezes atoladas em impasses, concidam com o Brasil do Real e das gestões Fernando Henrique Cardoso. Podem ser vistas sim, a despeito de suas singularidades, como sintomas de seu tempo. E também como diagnósticos, intuitivos ou racionais, do desalento da terra brasilis. São obras de uma ressaca sem bebedeira. A neodemocracia pós-regime militar esvaziou a utopia alimentada nos anos anos de chumbo. O futuro chegou e não era como o esperado.

O grupo de diretores que filmou, nos últimos 10 anos, a infelicidade descrente, apontando a degradação aparentemente irreversível de um estado de coisas, caminha com os tropeços do país, sem dúvida, mas também com o do audiovisual. A iniciativa de retomada da produção, em 1994, depois do abalo císmico gerado pelo meteóro Collor, tinha pouco de projeto cultural. Era sobretudo uma concessão pública para a classe cinematográfica sossegar em seu canto. Essa ausência de projetos, portanto – seja do cinema, seja do país – são tematizadas na tela. A democracia, ao contrário do regime militar e da resistência a ele, fez-se sem bússola. Esse cinema distópico reflete isso no percurso seguido pelos personagens. O conjunto de filmes realizados por esses diretores, sem olhos para os próximos capítulos da História, não tem um projeto de país ou felicidade. Sem falsas imagens de estabilidade, visam a pôr o espectador em desconforto, seja pela forma mais áspera e agressiva, seja pela temática de ruptura de relações, não de conciliação ou redenção. Também abriram mão de uma totalização do país, menos por opção e mais por falta de condições (históricas e autorais). Optam pela visão do fragmento, do microcosmo, do conflito interno (na mesma família, na mesma classe social), não entre mundos distintos.
Não é apenas por opção narrativa que a estrutura aparece aos pedaços, pela reunião de estilhaços que não elaboram uma noção de continuidade. Fernão Ramos, em artigo no Caderno Mais2, vê nessas imagens, de acordo com termos cunhados por ele, um "naturalismo cruel", com um "narcisismo às avessas".

A saída da asfixia só é viável pela violência. Em seus distintos universos temáticos, sociais e estéticos, obras como Bicho de 7 Cabeças, de Laís Bodanski, Latitude Zero, de Toni Venturi, Um Céu de Estrelas, de Tata Amaral, Cidade de Deus, de Fernando Meireles, Kenoma, de Eliane Caffé, Dezesseis Zero Sessenta e Mater Dei, de Vinicius Mainardi, Durval Discos, de Anna Muylaert, Carlota Joaquina, de Carla Camurati, Anahy de Las Misiones, de Sergio Silva, e Matadores, Ação Entre Amigos e O Invasor, de Beto Brant, escancaram o amargo sabor de distopia. Não são os únicos. Diretores com mais idade e experiência, como Ugo Giorgetti (em O Príncipe), Ruy Guerra (em Estorvo), José Joffily (em Dois Perdidos Numa Noite Suja) e Sergio Bianchi (em Cronicamente Inviável) também fazem o vinho virar vinagre. Esses e outros trabalhos serão analisados, sob esse enfoque, em um livro ainda em preparação, O Cinema da Distopia Brasileira. O fato de a maioria ser de cineastas paulistas, ou radicados em São Paulo, não pode ser ignorado, embora apenas com o aprofundamento da pesquisa, no momento em fase inicial, seja possível irmos um pouco além de suposições.

Ismail Xavier tem se debruçado, nos últimos anos, em um recorte intitulado, por ele mesmo, de cinema do ressentimento: "(...) há um potencial dramático ligado a projetos de vingança adiados, remoídos, que encontram no cinema atual uma variedade de manifestações, tornando a figura do ressentimento um dado notável, quase um diagnóstico nacional. (...) podemos verificar toda uma galeria de figuras cuja ação é projeto falido pela base"3. Ismail parte da premissa de que ainda há um projeto. Nos propomos em nossa análise a questionar se há projeto qualquer nesses filmes e personagens ou se a substituição de uma reivindicação organizada por reivindicações individuais não teria dinamitado o ideal de uma construção coletiva. Mais que ressentidos, algo mais compreensível em quem perdeu algo no passado, temos aqui um cinema de deserdados. No lugar de perda dos referenciais, encontramos a ausência deles. Não temos mais o cineasta como dono de um mandato social que lhe permite emitir seu discurso em nome do povo para conscientizá-lo. O cineasta fala sobre o povo, mas não mais em nome dele. Nem para ele.

Reunir filmes em grupos é uma prática aberta ao risco de se sacrificar a riqueza e singularidade dos trabalhos no varejo para se construir uma noção generalizante da reunião desses trabalhos no atacado. Não temos a intenção de moldar a especificidade de visões à categorização proposta, mas, sim, procurar pontos de contato em óticas distintas sobre situações específicas ou mais amplas. Ou seja: sobre o mundo particular dos personagens e sobre os contextos geradores de seus conflitos. Muitas das abordagens são restritas ao ambiente familiar-conjugal, sem referências diretas ao estado de saúde da sociedade. Outras obras expõem a problemática individual, mas evidenciando-as como reflexo de questões sociais. Agruparemos esses filmes sob um conceito flexível e ampliado de distopia em O Cinema da Distopia Brasileira. Segundo a definição de Gustavo Remedi em Neorrealismo Latinoamericano, La máquina del horror, a distopia caracteriza-se por "toda subespécie discursiva, nas organizações sociais invertidas, desviadas e terríveis". No artigo "La hora destemplada", publicado no semanário Brecha de Montevideo, Luis Pérez Aguirre abre mais o leque. Usa o termo para definir a onda de desencanto vivida por quem viveu batalhas em nome de um futuro idealizado. A distopia é vista ali como um choque de realidade contra projeto só possíveis em sonhos.

Em nosso campo de análise – o cinema brasileiro distópico, de 1994 a 2003 –, observaremos filmes que, sem obedecer completamente às definições acima propostas, salientam aspectos negativos da realidade, por meio da ficção, sem vislumbrar possibilidades de transformação. Estas obras refletem uma expectativa sombria para o futuro, sustentada por evidências ásperas do presente. O tempo a vir será, para os diretores distópicos, pior que o corrente. Eles não se limitam a uma visão dura do real. Olham para frente com falta de perspectiva de mudanças, de modo a se elaborar, teoricamente que seja, uma noção de sociedade justa, calcada em pressupostos necessários à civilização, derivada das bases da República, de Platão. A utopia está associada à narrativa de viagens sobre lugares ideais, com seus modelos de organizações sociais alternativos, superiores e perfeitos, exemplificados em obras como A Utopia (1516), de Thomas More, fonte de inspiração dos reformadores sociais, A Cidade do Sol (1623), de Campanella, e A Nova Atlántida (1626), de Bacon.

Já nos relatos distópicos os planos deram errado, tudo saiu mal e os projetos de progresso com igualdade não vingaram. Nesse estado de coisas, nada tem mais sentido. E o idealizado trem histórico parece seguir viagem por um trilho onde os passageiros não sabem onde vai dar. Os personagens dessas cinzentas narrativas estão, de modos variados, à margem do que gostariam de integrar. Nos filmes distópicos, portanto, os personagens estão fora. Passam por um processo de despersonalização e deslocamento, que resulta no sentimento de viver em um mundo hostil e desfigurado. Em Utopia e Distopia, Enzo Baldino vê a distopia como disfunção de um projeto, uma alteração de ordem prevista, um desvio de objetivos. Na literatura, pelo menos desde o fim do século XIX, esses descarrilamentos são frequentes. Nenhum foi tão incutido no imaginário e nas reflexões do século XX como os tematizados por George Orwell. O escritor alinhou-se com o desencanto ideológico de Eugeny Zamiatin (Nós), autor soviético que rompeu com o comunismo, e de Arthur Koestler (Do Zero ao Infinito), para expor, como escreveu, "que a busca da igualdade transformou-se na democratização da pobreza". O cinema também trilhou pelas falência de projetos, seja em filmes cujo futuro é apocalíptico, seja em outros cheio de sombras (os expressionistas alemães, os noir).

Há quem prefira, em substituição à distopia, usar o termo desencanto. Ou ainda desilusão. Mas em muitos casos, por nunca ter havido encanto ou ilusão da parte dos criadores, estes conceitos são equivocados. Não há como haver o desgaste de algo não-existente. Esse tipo de distopia não seria assim uma falência da utopia, mas a inexistência permanente dela. Esse talvez seja o fenômeno a distinguir parte da produção de estreantes dos últimos nove anos. Não se trata de um cinema de desiludidos, mas de quem, pelo momento histórico em que se formaram, nunca tiveram a possibilidade de se iludir. Em um texto sobre os filmes Rodrigo D: No Futuro (Víctor Gaviria, Colombia, 1990), A Hora da Estrela (Suzana Amaral, Brasil, 1985), e Lo que vendrá (Gustavo Mosquera, Argentina, 1988), Gustavo Remedi primeiro afirma que todo projeto cultural, utópico ou não, pressupõe uma agenda histórica elaborada por grupos organizados, encarregados de levar um programa coletivo adiante para, em algum momento, entrar em conflito com outras agendas históricas, sempre com uma subjetividade social de acordo com essas tarefas. Nos três filmes comentados por Remedi, porém, as agendas históricas estão ausentes e, segundo suas palavras, "as subjetividades sociais são tão patéticas quanto inviáveis".

São vários os olhares recentes que poderiam se enquadrar nesse diagnóstico. Fiquemos com O Invasor, de Beto Brant, eleito recentemente, em votação promovida entre críticos pela revista Cinema, como o número um da retomada (pós-94). Temos ali a morte da luta de classes, do oprimido da periferia capitalista contra o opressor. No lugar, vemos uma sociedade, ainda que força, de dois andares da pirâmide.

O final de O Invasor escancara a distopia. Depois de mostrar projetos pessoais pautados pela transgressão da lei e de qualquer valor ético, um dos lados do triângulo, Marco Ricca, dá um passo atrás e, sentindo-se com a corda no pescoço, ensaia um arrependimento e descobre não haver mais espaço para uma reconstrução da ordem. O mundo do qual faz parte já vive uma metástase. Brant talvez seja o cineasta que mais tem se dedicado a essa questão. Tornou-se o autor da falência ética, seja entre assassinos profissionais em Os Matadores, seja entre ex-guerrilheiros urbanos em Ação Entre Amigos. Outros desfechos acenam com o muro no fim da rua. No caso de Anahy de las Misiones, de Sergio Silva, com um abismo no fim do trajetória. Poucos finais são tão fortes em seu simbolismo para essa produção recente como este.

Em outros filmes, como Um Céu de Estrelas, de Tata Amaral, Latitude Zero, de Toni Venturi, e Bicho de 7 Cabeças, de Lais Bodanzki, o fim é a ruptura. Em Um Céu de Estrelas, há um assassinato em reação à opressão, mas em seguida vem a prisão. Nenhuma saída. Em Latitude Zero, novamente uma morte, mas, na seqüência, abre-se uma possibilidade de dias melhores, com a partida da protagonista, filho no colo, para outra aventura. Não se vê ali, necessariamente, sinais de progresso, apenas uma alteração de cenário. Em Bicho de 7 Cabeças, em vez de morte, há rompimento familiar. O personagem principal precisa abrir mão de sua origem, dos mais próximos, para construir sua identidade sem tantas paredes. Há libertação, sim, talvez, mas com fim dolorido, portanto, com feridas. Nessa ordem dos finais sem saída, ou com saída de punhos cerrados, pelo confronto sem negociação e sem conciliação, as abordagens sociais mais diretas sofrem uma alteração se comparadas as dos anos 60. Em Cidade de Deus, por exemplo, pobre mata pobre. É seu próprio opressor. Lutam pela ascensão econômica, mas não social, e não vislumbram inimigos fora da favela.

As referências, citações e homenagens ao Cinema Novo, como as de Central do Brasil, de Walter Salles, e 2000 Nordestes, de Vicente Amorim e David França Mendes, precisam ser melhor analisadas. Elas parecem menos uma reivindicação de herança e mais uma busca de legitimação pela aproximação, talvez com a intenção de, assim, protegerem-se de discursos críticos ou, mais provável, seduzirem as viúvas de Glauber e Nelson Pereira. Mais interessantes são aqueles filmes, como Kenoma e Latitude Zero, que seguem seus próprios caminhos e, sem postular a herança cinemanovista, acabam por monologar com ela. Mostram que o passado, como exibido nos anos 60, prossegue no presente, mas com novas falências. O filme de Toni Venturi, exasperado nas interpretações, explicita essa falência. Seus protagonistas são seres urbanos que tentam renovar a vida em um grotão do Brasil. Também não há nada do qual se partir para um novo projeto. Apenas um garimpo abandonado.

Para encerrar, cabe citar Frederic Jameson, para quem o contexto histórico organiza o cotidiano em diferentes épocas e também suscita determinadas modalidades de representação pertinentes com os conflitos gerados pelo momento em questão. Caberá aos novos diretores encontrar a forma mais adequada para emoldurar e emitir esses gritos enunciadores de uma falta de perspectivas. Alguns cineastas já estão ensaiando esses modelos. Que os contextos econômicos e as próprias formulações dos novos autores permitam a esses berros visuais ecoar pelo país e mundo afora com a contundência e aspereza necessária. Estão abafados ainda, desorganizados, míopes mesmos, configurando-se mais como sintomas intuitivos de um tempo e de um meio do que um equivalente estético e dramático dos pontos de vistas sobre esse cosmos.

Cléber Eduardo

  1. O Cinema da Distopia Brasileira é um projeto de ensaios em desenvolvimento pelo autor do texto

2. Folha de São Paulo, 3 de agosto de 2003

3.Entrevista à Revista Praga, editora Hucitec, n.9, pp.127-8