Viagem ao Fim do Mundo,
de Fernando Coni Campos



Karin Rodrigues (de costas) em Viagem ao Fim do Mundo

Filme-poesia sem lirismos de orelha de livro. Poesia composta de recortes, montagem de palavras – fluxo de ironias machadianas e reversos de experimentação. Vamos, então, aos pedaços:

"Escrevia-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí e fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião."1

Avião-hipopótamo que convida a um passeio não se sabe para onde: "Pela minha parte fechei os olhos e deixei-me ir à ventura." Modernidade-máquina-aeronave-hipopótamo. Máquina-sonho, cobiça, desejo – o tempo acelerado da memória dos arquivos, das colagens de sons que catalizam movimentos.

A alegria do fim – tempo acelerado em que cada século é um relâmpago – acúmulos de desejos, não há início. Pop e erudito, vanguardas e cultura de massas – desilusão alegre dos homens sentados ao lado de Pandora.

A caixa cinematográfica de Coni: Ironia do tempo conquistado a medida que nos consome. Não há narrativa senão a ausência de eventos. Pocketbook + viagem de avião por montanhas desertas (onde nunca tocaremos os pés) + trocas de olhares com belas moças (de quem nunca mais ouviremos falar).

Nem ver. Rever: não mais apreensão do tempo. O século futuro de Coni é o século sempre presente – um atropelo de si mesmo.

A utopia não resiste às imagens ininterruptas do novo – "Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, inveja que baba, a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo."

O apocalipse risonho da Tropicália. As bombas cantadas na ironia explodem o planeta uma, duas, três vezes. Soy loco por ti America – e só. Nada persiste, tudo re-existe.

O rosto atônito da freira que ama a todos. Desejo maior, delírio – pergunta única a escorrer das narrações. Dos fragmentos bíblicos de nossas reiteradas ambições indecifráveis. A cruz, a moda, o pop, a bíblia, o rosto de jesus na cruz, a moça da capa.

A viagem, a caixa de ferro que voa. Nos rostos projetados em si mesmos. Seios nus, o vulto da mulher na praia. Não há lugar-cinema senão o que delira. Coni não se amargura, ironiza, fragmenta, mastiga, provoca. Não chegará a lugar algum – enquanto nada acontece, a vida se dá.

Filmar como a um rastro debruçado sobre si mesmo, convidando-nos ao jogo. Machadiando, Coni sussurra, conta segredos, insinua intimidades sem nunca, nunca, querer fazer de si o lugar da certeza, o lugar de quem revela. Não há teologia que caiba em Coni. A Viagem está sempre começando, está sempre terminando. Não se desdobra - se redobra, se remete.

"O maior defeito deste filme és tu espectador – parafraseia Machado – tu tens pressa de envelhecer. E o filme anda devagar. Tu amas a narração direta e nutrida. O estilo regular e fluente. E este filme e o meu estilo são ciprestes que viram á direita e à esquerda, andam e param, resmungam, murmuram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem. E caem."

Tudo é destruição e novidade a cada plano, tudo é resto de tudo e pedaços de revistas – colagem de sempres. A publicidade fala – repete, remói clichês, reitera idéias – seu uso é o uso do ciclo de gestos comuns, de memórias comuns que permeiam a presença.

Não há um lugar da imagem senão o de sua própria projeção. O leitor se vai quando o avião aterriza, finda-se a farsa da narração e os delírios retornam a seus espaços perpétuos. A casa, o convento, o lugar. A jovem no espelho, que não a decifra.

"E fixei os olhos, e continuei a ver idades, que vinham chegando e passando, já então tranquilo e resoluto, não sei se até alegre."

* * *

Em 1968, Fernando Coni Campos, futuro ex-cineasta, filma um filme e o intitula Viagem ao fim do Mundo. Trinta e cinco anos depois, o filme é exibido no Cinesul em grande tela e o som (desgastado pela instabilidade da película) não sossega. Aperto os ouvidos para lhe entender as palavras, curvo o peito para frente.

Raros serão os cineastas e os deuses a conseguir terminar e inaugurar o mundo tantas e tantas vezes em míseros (e aqui nós brincamos de cronometrar viagens mais uma vez...) 90 minutos de projeção.

"A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa, se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus." * Um filme eternamente a ser revisto.

Felipe Bragança

*As citações em itálico nesse artigo foram retiradas do capítulo O Delírio de Memórias Póstumas de Brás Cubas, inspiração central do filme.

 


1. As citações em itálico nesse artigo foram retiradas do capítulo O Delírio de Memórias Póstumas de Brás Cubas, inspiração central do filme.