Garotos de Programa, de Gus Van Sant

My Own Private Idaho, EUA, 1992

Garotos de Programa abre e fecha no exato mesmo cenário, com o mesmo personagem em cena: o jovem marginal interpretado por River Phoenix numa típica "highway" norte-americana. É claro que não é por acaso que esta imagem (assim como esta descrição) junta os três principais temas de que Van Sant irá tratar neste filme (e, pode-se dizer, em boa parte de sua obra): marginalidade, os dilemas de uma certa juventude, e, finalmente, a idéia de um constante movimento e busca (representado em mais de um filme dele pela iconografia da estrada). Mike, o personagem, perambula por boa parte do filme sem um objetivo fixo (embora mais adiante descubramos que ele possui um). É representante óbvio de um olhar de mundo de Van Sant sobre uma juventude em constante acerto de contas com suas origens (o passado), e com enormes dúvidas sobre seus objetivos (o futuro), vivendo da forma possível este presente: a paisagem de uma estrada da qual não vemos o início nem o fim, mas apenas um recorte, é perfeita para este drama (que pode ser traçado em paralelo mais óbvio tanto com Drugstore Cowboy quanto com o recente Gerry - mas que também tem reflexos menos óbvios em trabalhos como Gênio Indomável, Encontrando Forrester ou Elephant).

Dentro desta temática, Garotos de Programa certamente está diretamente em contato com os filmes feitos "em torno" dele (Drugstore e Até as Vaqueiras Ficam Tristes), pela proximidade bastante direta com um olhar muito específico sobre a cultura e o jovem americano (e a mitologia da estrada e da marginalidade): aquele dos "beatniks". A liberdade narrativa que Van Sant exerce aqui, e o tratamento que dá à noção de "construção de personagens" deixam esta influência bem clara – o elogio (problematizado sempre, aliás, visto mais como única saída possível) a uma conduta anárquica-libertária está no filme não só tematizada, mas na sua própria forma, tanto em estrutura como em estética. Alguns momentos deixam isso especialmente claro (como a utilização da animação das capas de revistas numa banca), mas a principal evidência é menos facilmente destacável do que sentida. Um trabalho que vai desde a direção de atores ao trabalho da escritura dos diálogos, e numa narrativa que joga os personagens de forma claramente anti-naturalista e necessariamente elíptica entre espaços distintos da paisagem norte-americana, chegando até mesmo à Itália.

A única constante neste caminho é a clara falta de completude encontrada em cada um deles, representada de forma mais direta quando o personagem de Phoenix parte em busca da mãe. A reconciliação com esta idéia de passado-herança (que tem um tríptico formado pelas imagens em super-8 que assombram Phoenix e a presença de dois "pais" de Keanu Reeves - um físico e um "guru") é o que os personagens buscam o tempo todo. Seu local no mundo parece indefinível justamente pela incapacidade de encontrar uma solução para este dilema (que de tão presente no filme, tem encarnação física num certo "Family Tree Hotel" - quase um "Hotel da Árvore Genealógica"), o que tem a ver diretamente com a fase de vida pela qual os personagens passam, e a idéia de "amadurecer" e tornar-se um indivíduo por si mesmo. Igualmente presente é a dificuldade de lidar com o presente a partir desta dificuldade de enxergar seu passado e futuro, como se pode ver na narcolepsia, muitas vezes auto-induzida, do personagem de Phoenix, que vai buscar descanso do que acontece à sua volta numa mistura de sonho e de passado.

Garotos de Programa, acima de tudo, tem como maior qualidade a capacidade (uma constante no cinema de Van Sant) de capturar como poucos, e possivelmente como ninguém, a energia destes personagens que tenta compreender. Talvez no seu retrato (que talvez possa ser chamado efetivamente de obsessão) da juventude, este componha o maior diferencial de Gus Van Sant: seus filmes nunca parecem ser "sobre jovens" e sim "com os jovens". Por isso mesmo, um cinema apaixonado e apaixonante. E que, se com o recente Elephant pareceu obter relevância muito maior que simplesmente o do drama de seus personagens, só poderia deixar de ser visto assim por aqueles que não ouviram, por exemplo, a sutilíssima inserção do hino extra-oficial americano "America, America" ao fundo da imagem do personagem de Phoenix perdido e dormindo naquela estrada ao final deste filme aqui.

Eduardo Valente