Apresentação de Gus Van Sant

 

Independentemente da Palma de Ouro em Cannes, pelo recente (e bastante esperado) Elephant, a (re)visão de conjunto da obra de Gus Van Sant é uma proposta que já faria sentido mesmo sem a existência do prêmio. Elephant é seu décimo longa-metragem e representa a confirmação de uma cinematografia significativamente ousada e criativa, sempre com traços pessoais evidentes, seja na esfera independente ou a serviço de um grande estúdio.

Para compreender a guinada dada por Van Sant com seus dois últimos filmes, afastando-se dos projetos caros financiados por estúdios e retornando às raízes indies – muito mais do que isso, na verdade, uma vez que Gerry e Elephant, acima de simplesmente terem sido rodados sem o aparato de Hollywood, são compostos por processos interessantíssimos (o roteiro mínimo, o estudo de paisagem, a liberdade do ator – ora tendendo para Beckett, no caso de Gerry, ora tendendo para a prática neo-realista de atores não-profissionais fazendo o que fazem na vida cotidiana, como em Elephant) –, mostra-se necessário analisá-lo desde o princípio.

Gus Van Sant, que ingressara na arte através da pintura, como autodidata, desenvolveu uma idéia de cinema a partir dos filmes experimentais dos anos 60, mormente os nova-iorquinos. Embora suas primeiras referências tenham sido cineastas como Stan Brakhage, Jonas Mekas e Ron Rice, ao elaborar seus filmes Van Sant adota um modelo que reúne, segundo ele próprio, o visualmente tradicional e o intelectualmente abstrato, de modo que suas narrativas obedecem a certos padrões (montagem invisível, causa-efeito, pouca ambigüidade no plano das ações) sem abrir mão de temáticas nada tradicionais – a exemplo das drogas e do homossexualismo (mais importante que os temas, porém, é a abordagem que Van Sant lhes confere, não aderindo aos clichês internos que certos subgêneros acabam se auto-inculcando) – e de uma estética tributária tanto da mais próspera contra-cultura americana (Warhol, Burroughs) quanto do já citado cinema experimental e das artes plásticas com que Van Sant lidara nos primeiros anos de sua formação artística.

Drugstore Cowboy, de 1989 (mesmo ano de sexo, mentiras e videotape, do Soderbergh, outro filme que prenunciava uma nova tendência para que o cinema americano se abriria nos anos 90), é o mais antigo dos filmes disponíveis de Van Sant. Ali já se encontram as marcas do autor, num filme até mais sóbrio – ironicamente mais sóbrio, tendo em vista sua temática (as drogas) e sua inspiração mor (os beats) – do que os dois que o sucederam (Garotos de Programa e Até as Vaqueiras Ficam Tristes, o primeiro um sucesso de crítica que manteve a carreira de Van Sant em ascensão, o segundo um fracasso comercial que termina por ser uma espécie de abismo entre a fase inaugural independente e a incursão pela indústria). Entre Um Sonho Sem Limites e Encontrando Forrester, a prova de que os estereótipos ainda rendem bons filmes se trabalhados com sensibilidade e apuro.

Algo que fica claro no trabalho de Van Sant é a proximidade com os atores (tanto que muitos deles se tornam seus amigos), o que decorre da busca de um conluio entre ele – o autor – e o personagem que cria. É uma aproximação tripla: o diretor com o ator, o ator com o personagem, o diretor com o personagem. Nos seus filmes, Van Sant quer se tornar o personagem (cf. entrevista na Cahiers du Cinéma nş 579).

A ausência de Mala Noche, de 1985, primeiro e raríssimo longa de Van Sant, continuará sendo motivo de lamentação. O filme – a estória de amor de um jovem branco com um imigrante mexicano clandestino, embalada por um estilo free cinema – dispôs de orçamento mínimo e fez carreira bem sucedida no circuito independente. Mas ainda carece de uma cópia em vídeo ou DVD. Assim como Gerry permanecerá inaudito (o filme nem teve estréia comercial no cinema).

Pendências à parte, resta-nos conferir aquilo de que mais comumente se fala quando o assunto é Van Sant: da mescla do experimental com o narrativo nos primeiros filmes (Drugstore Cowboy, Garotos de Programa) às grandes produções com atores famosos (Gênio Indomável, Encontrando Forrester), passando pelo exercício estético rigoroso de Psicose (a então inédita e corajosa experiência de um remake plano-a-plano), todos os filmes merecem atenção, todos – Até as Vaqueiras...

Luiz Carlos Oliveira Jr.