O cineasta como manipulador


Lars Von Trier com Nicole Kidman no set de Dogville

O que você pensaria de alguém que o colocasse numa sala escura junto com um grupo de pessoas, e a partir de então pudesse fazer com que vocês vissem ou ouvissem o que ele bem quisesse, da forma que ele quisesse? Um sádico, talvez? Um manipulador nato? Alguém impondo sua individualidade sobre a de outros, sobre uma massa? Se isso tudo se aplica ao que o cineasta tem poder de fazer, podemos ver que é um poder e tanto, e mais: que se bem usado pode significar um domínio completo sobre um bom número de pessoas. Pois é exatamente este ponto da relação realizador-platéia que Lars Von Trier mais parece apreciar. Se vemos o cineasta como um manipulador, ele é o mais cineasta entre os cineastas. Para se ter uma idéia, seu curta de estréia, feito aos 21 anos de idade, começava com um crédito que o dedicava a uma menina morta de leucemia, o que depois Von Trier confessou ser uma completa mentira que ele colocara ali para ganhar a simpatia do espectador. Segundo consta, este seu exercício de poder não serve só para a platéia, mas também para seu elenco (o que podemos confirmar vendo o documentário com o making of de Os Idiotas, e pelas histórias inúmeras sobre sua relação com Björk no set de Dançando no Escuro).

Talvez ainda mais importante, ele possui enorme controle e domínio da mídia que cerca o cinema, como podemos ver no genial lançamento do Dogma, ou pelas lendas que cercaram o seu eventual ganhador da Palma de Ouro, ou ainda se vemos agora, pelo controle absoluto exercido em Cannes 2003 das atenções da mídia para seu mais novo filme, Dogville. O que fica bem claro pela soma destes talentos é que Von Trier nasceu para a profissão que exerce. Sabe como ninguém atrair os holofotes para si e para seus filmes, e uma vez que eles estejam direcionados, sabe como agir para mantê-los ali. Faz os filmes exatos para uma época onde vida e obra parecem tão misturados perante o foco constante da mídia, tornando-se a si mesmo uma lenda (com requintes como o medo de avião que o faz ir da Dinamarca a Cannes em 3 dias de viagens de carro, etc). Mas, se tudo isso é inegavelmente parte da obra de Von Trier, uma vez que muitas vezes ela pareça tão calculada a causar tais impactos, não é isto por si que o torna importante e interessante para nós aqui. O que nos importa afinal, são os filmes, o que acontece quando o holofote sai dele um pouco e recai sobre a tela do cinema. E, neste ponto, Von Trier é hoje um dos cineastas mais importantes do cinema mundial.

Tendo estreado em longas em 1984, com O Elemento do Crime, a primeira vez que seu nome surge com destaque para as platéias mais numerosas é com Europa, em 1991, quando concorre à Palma de Ouro em Cannes, e ficando "só" com um Prêmio Técnico, mostra o dedo médio para o júri, do palco do Festival. Os filmes de Von Trier até então são experimentos impressionantes de domínio de linguagem, absolutamente influenciados pelo cinema de gêneros norte-americano (onde Elemento do Crime remete ao policial de suspense, Epidemia (1987) a uma mistura bizarra de horror e documentário, até Europa, que recolhe pedaços do filme noir para misturar com seu retrato da Guerra). São todos filmes que causam sensações muito fortes e extremas no espectador, porque Trier trabalha sempre com as tintas mais carregadas, sem medo de pular meio-termos. Em 1994, realiza a primeira parte de uma série de TV que muitos consideram seu principal trabalho, The Kingdom, ela mesma uma mistura de série de TV sobre hospitais com filmes de horror, que possui efeito direto sobre o espectador.

No entanto, o Von Trier que nos interessa aqui é o que começa em 1996 a sua chamada "Trilogia do Coração de Ouro", com o doloroso Ondas do Destino, que ganha o Grande Prêmio do Júri em Cannes, e o César de Filme Estrangeiro. Nele, o diretor começa uma série de linhas que irão marcar seu trabalho futuro: seu diálogo com o melodrama, o uso livre da câmera na mão como forma de estar sempre junto aos atores e emprestar uma urgência sufocante ao seu filme, e a personagem feminina principal surgindo como vitimizada, incapaz de se impor de alguma forma (todas por demais tomadas pelo seu "coração de ouro"). O filme lança de vez o nome de Trier nas graças da mídia internacional, e ele certamente não se mostra nem um pouco despreparado. Para seu próximo filme, o golpe de gênio que garantiu a maior projeção ao seu nome: o manifesto do Dogma 95.

Assinado por outros três diretores dinamarqueses, o manifesto vira o centro das atenções e polêmicas no mundo do cinema em Cannes, 1998, quando são lançados dois filmes: Festa de Família de Thomas Vintenberg, e Os Idiotas, de Von Trier. O manifesto propõe uma série de regras de "austeridade de produção", sob o suposto motivo de uma volta ao que havia de mais belo no cinema, e teria se perdido. O manifesto em si é uma grande idéia pela atenção que consegue, mas ele só se complementa porque os dois filmes são impressionantes: o de Vintenberg muito mais pela dramaturgia e pela abordagem de tema incômodo (o abuso de crianças nas famílias), de fato poderia sobreviver como bom filme sem qualquer regra de realização já que suas amarras são da ordem dos personagens e dos atores. Já Os Idiotas, não poderia nem ser feito satisfatoriamente sem estes pressupostos estéticos.

Dizer que é o principal filme chega a ser bobo, pois talvez seja o único filme efetivamente do Dogma. Mas, mais importante do que isso: é um filme que dá tapas na cara de todos o tempo todo, o que passa a ser uma marca do cineasta. Realizado com enorme liberdade, o barato filme (outra grande sacada pragmática dos "dogmáticos") bate firme em todas as convicções burguesas sobre sucesso e vida em comunidade, e propõe um jogo de estupidez a partir de uma juventude mundialmente entediada, onde as amarras sociais ficariam finalmente soltas. O filme incomoda em todos os sentidos (desde estético até pela sua afronta direta aos personagens "burgueses" que surgem em cena). Aparentando pelo início que não buscaria maiores encaminhamentos narrativos tradicionais, o filme no entanto vai mais uma vez para um encontro com a chave do melodrama, e uma mulher sendo "abusada" por outras pessoas. Aqui, Karen (que é a continuadora da Bessie de Ondas) deixa clara a principal característica que une as heroínas de Von Trier: o desejo acima de tudo de pertencer, de ser alguém que possa ser "igual aos outros", mesmo que os outros sejam um bando de idiotas. Quando Karen se mostra a única incapaz de separar o jogo da vida real, quebram-se as paredes da ilusão, e o final do filme mostra mais uma vez o poder de manipulação de Von Trier. Ele faz um filme absolutamente radical e quase experimental que, no entanto, circula bem pelo mundo, em grande parte pela sacada do Dogma, que vira diploma de qualificação artística a ser usado pelos quatro cantos daí em diante.

Na sequência, a consagração e o fecho de ouro da trilogia por ele imaginada. Dançando no Escuro lhe dá a Palma de Ouro pela retomada de mais do que apenas um gênero (o musical) de acordo com as matrizes de outro (o melodrama, desta vez escancarado): o introduz na problemática da América que o obceca daí por diante. Fazendo com que seu filme se passe nos EUA, país onde nunca foi, Von Trier faz de sua Selma uma imigrante que também quer apenas ser mais uma americana e viver o sonho da felicidade (que surge como sequências musicais encenadas com enorme inteligência e criatividade técnica), mas a quem isso é impossibilitado a cada momento, ao final pelas mãos do sistema judicial americano (que é ironizado numa sequência com Joel Grey, famoso como o mestre de cerimônias de Cabaret). O filme se revela não só absolutamente capaz de um completo domínio e verdadeira catarse da platéia, como além da Palma dá uma notoriedade ainda maior ao diretor no seu enfrentamento com a idéia de América. Os americanos se enfurecem com o seu retrato pintado por alguém que nunca foi até sua terra.

Mal sabem eles que este enfurecimento será o combustível que fará surgir a idéia do filme seguinte de Trier, este sim uma radical rendição dos Estados Unidos: Dogville que, de fato, talvez seja o grande filme dele até agora. Neste, mesmo terminada a sua trilogia, mais uma vez temos uma protagonista feminina que luta desesperadamente para ser aceita pela sociedade (americana, mais uma vez). Só que, principal das diferenças: ao fracassar, no final, sua resposta não poderia ser menos condenscendente e vitimizada. O diálogo final do filme, neste sentido, parece quase uma resposta às heroínas de seus filmes anteriores.

Trier consegue no filme retomar o seu caráter constante de experimentação visual-dramatúrgica, encenando todo o filme num palco suspenso onde nada é naturalista: as casas são só marcações no chão, como uma enorme planta baixa, há um cachorro representado da mesma forma, não há portas e no entanto há ruídos delas se abrindo e fechando. Mas, o que impressiona mesmo é o que está por cima deste formato: um conto claramente simbolista e metafórico, uma tentativa ainda mais aguda de "condensar" o pensamento sobre o caráter norte-americano numa encenação de vingança e violência, de opressão e humilhação, onde o melodrama já não surge mais como ponto de chegada, mas como dado inicial a ser superado. Narrado como um conto fabular por uma voz de sotaque claramente britânico (simbolizando o olhar externo sobre aquele ambiente), o filme se encerra com os créditos finais sobre a música "Young Americans", de David Bowie (outro estrangeiro).

Recém-lançado em Cannes, o filme impressionou a todos, mas sua não-premiação num festival onde claramente não havia filme superior a ele é a prova de que o discurso de Von Trier é capaz de provocar o mesmo ódio desenfreado que a admiração. E talvez esteja nessa capacidade de encostar dedos em ferida muito propositalmente (e como um garotinho que gosta de causar incômodo) que o cineasta mais tenha encontrado a chave do seu sucesso. Isso, e um domínio da linguagem cinematográfico capaz de levar o espectador a seu bel prazer, e de se renovar a cada filme, sempre superando o anterior em nível de ousadias formais e dramatúrgicas. O cinema de Von Trier, goste-se mais ou menos dele, é dos poucos no mundo hoje sobre o qual não se pode deixar de falar, de se posicionar. Ele consegue tornar o cinema uma arte necessária mais uma vez, uma arte única e ao mesmo tempo um somatório de todas as outras (seu novo filme remete ao teatro e a literatura o tempo todo), que suga do seu próprio passado as bases para um futuro absolutamente desconhecido, mas ao qual se quer desesperadamente conhecer sempre. É, hoje, talvez o cineasta que mais foi bem sucedido em fazer com que cada novo filme seu tenha, de todas as maneiras, uma necessidade de ser visto. Se isso não é manipular a todos, ao mesmo tempo, eu não sei o que é. Lars Von Trier, homem de cinema.

Eduardo Valente