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Quentin Tarantino talvez seja o cineasta americano mais influente dos anos 90. Tornou-se o paradigma de uma nova fase do cinema independente, mas, paradoxalmente, porque se tornou um diretor mainstream, capaz de, sem sacrificar sua autoralidade estilística, narrativa e temática, ganhar um camarote na linha de produção de Hollywood. Uma horda de iniciantes saiu à caça de uma trilha parecida. Passaram a fazer filmes empenhados em soar diferentes, mas, acima de tudo, que chamassem atenção da indústria de imagens. O processo tarantinesco era extraordinário. Planejou um longa-metragem com US$ 14 mil, enviou o roteiro a Harvey Keitel e atraiu outros atores por causa dele. Assim foi o parto de Cães de Aluguel. Na seleção do que acontece e do que é ignorado, arregalou os olhos de muitos críticos e levou a Miramax a estender o tapete para o autor. Nesse novo panorama, surgiu Pulp Fiction. Sucesso de público e prêmio em Cannes. Inspiradas pelo êxito da Miramax, as companhias abriram os braços. Criaram departamentos e empresas irmãs que, tão preocupadas com o lucro como as produtoras gigantes, passaram a investir em um nova geração. A nova turma tem se esforçado para sacudir as telas, geralmente com histórias cínicas e centradas em tipos patéticos que, em linhas gerais, não conseguem conduzir seus planos sem tropeçar nos buracos. Tais personagens são espelhos de muitos desses diretores. Prometeram uma nova onda e só andam fazem marola. Tarantino também deu um norte para realizadores do mundo inteiro ao filmar cenas violentas como sádicas anedotas e ao dar aos diálogos a função de não dizer muito sobre as situações do filme e nada sobre os personagens. Em seus três longas-metragens e no episódio de Four Rooms, as conversas são reduzidos a papos furados. Aprendeu com Elmore Leonard, segundo suas declarações, de cuja lavra extraiu Jackie Brown. As conversas fiadas são sérias. Discute-se seriamente tanto sobre o sentido da letra de "Like a Virgin", de Madonna, na abertura de Cães de Aluguel, como sobre a legitimidade capitalista de um milk shake custar US$ 5, o assunto de John Travolta e Uma Thurman em Pulp Fiction. Os personagem são narradores. Sempre tem algo para contar ou um tema para desdobrar. Já a violência e seus praticantes são assumidamente glamourizados, comprometem-se apenas com o entretenimento de quem assiste e escancaram a perversidade do autor ao tornar prazeroso o abominável. Nenhuma dúvida. Tarantino é um grande manipulador sem um sistema moral a mediar a relação do espectador com seu material visual. Pode-se até ouvi-lo rindo da própria perversidade. Quando filma armas, tiros ou corpos ensangüentados, ele emprega-os como um artifício para, acima de tudo, manter os olhares em seu brinquedinho. Ele seduz pelo humor e pelo choque. Seduz também pelas pausas em sua atividade. Não filma com menos de três anos de intervalo, e desde Jackie Brown tem dado um chá de espera de cinco anos. Kill Bill só estreará em outubro. A Miramax atrasou o lançamento, supostamente, para atenuar as precoces polêmicas. Talvez seja puro golpe de marketing para atiçar os ânimos. No novo filme, Uma Thurman faz uma vingadora. Não qualquer justiceira, mas uma samurai grávida. Seu uniforme amarelo é homenageia Bruce Lee em O Jogo da Morte. Também há referências à série Kung Fu, a começar pela escalação de David Carradine. Tarantino finalmente usa como motivação uma de suas paixões: os kung fu movies dos anos 70. O filme é divido em 10 capítulos e, no lançamento, pode ser repartido em dm duas partes de 90 minutos, que seriam lançadas com um ano de diferença. As filmagens foram realizadas nos estúdios Beijin (China). Yuen Woo Ping, o astro da preparação de cenas de lutas orientais, supervisionou as acrobacias. Um videogame foi criado a partir do filme. As notícias publicadas até o momento falam de muita violência. E muita besteira. Não é o caso de satanizar ou sacralizar o cineasta como tanto se fez e se faz há quase 10 anos. Porque uma atenta observação sobre sua pequena obra não pode ignorar a natureza de travessura de seu cinema. Tarantino brinca com os enquadramentos, com os movimentos de câmera, com as estruturas narrativas e com as trajetórias de personagens derrubados pelos imprevistos programados por ele (o autor). Não filma para se expressar, mas pela expressão em si. Não faz filmes para transmitir algo, mas pelo fazer cinematográfico. Esse prazer pela construção de um mundo com artifícios variados é detectado em cada plano. Alguns parecem existir apenas para se colocar a câmera naquele lugar ou para cortar de um ângulo do ambiente para um outro. São planejados, mas, em vez de resultarem cerebrais, excessivamente pensados, parecem espontâneos, como se não pudessem ter sido filmados de outra maneira. Não há maneirismo, mas alternativas. Planos curtos e longos, com movimento e estáticos, histéricos ou com falas mansas. Há quem veja nesse procedimento os sinais de uma forma vazia. Tarantino não passaria de um cinéfilo que, depois de anos ingerindo de tudo nas telas do cinema e da tevê, não digeriu nada antes de somar as referências. Não é tão simples. A infância e a adolescência passada diante da televisão e nas salas exibidoras, assim como a juventude vivida na locadora onde trabalhava como atendente/enciclopédia cinematográfica para os clientes, certamente ajudou o diretor a ver no cinema uma bússola para a criação. Os próprios filmes o inspiram e são usados como modelos. Seria inútil enumerar suas matrizes. São muitas: Jean-Pierre Melville, Jean-Luc Godard, Martin Scorsese, cineastas de Honk Kong e produções obscuras. Muitas produções obscuras. Mas o mais importante é perceber que, embora parta de suas variadas referências, Tarantino não se afoga nelas. Ele respira com seu próprio pulmão. Não porque cada elemento seja autêntico, mas porque a articulação deles assim aparenta. Nos casos dos roteiros filmados por terceiros, como Amor à Queima Roupa, de Tony Scott, e Assassinos Por Natureza, de Oliver Stone, apenas se tenta copiar o frescor do diretor. O ar de novidade criada com a reciclagem do já existente não chega a cegar os olhos mais inquietos para o espírito autoparódico de cada um de seus filmes e de algumas cenas em específico. A relação entre Harvey Keitel e Tim Roth em Cães de Aluguel, por exemplo, principalmente após o tiro levado pelo segundo, não esconde o risinho matreiro do cineasta por, beirando o ridículo, desmistificar a tradição máscula dos filmes de gângster. Ele explicita nessas passagens a implicações homossexuais dos chamadas histórias de macho. Esse diálogo com o próprio cinema não deságua em metalinguagem ou em desconstrução do espetáculo. Apenas nega o realismo. A imagem de Tarantino, ele faz questão de salientar, é uma imagem de cinema. Ele a manipula sim, mas não para iludir. Faz questão de, quando em quando, lembrar-nos: isso é um filme. Mas essa imagem não é moribunda ou estéril. Tem vida. Não significa que diga algo. Apenas existe, às vezes. No entanto, há um sentido no conjunto e, ironicamente, ele está na ausência de sentido. Os acontecimentos determinantes de viradas de trajetórias são gerados por acasos. Um acidente de carro é a razão do tiro em Tim Roth em Cães de Aluguel. Em Pulp Fiction, os imprevistos são multiplicados. John Travolta morre porque foi ao banheiro e, por esse mesmo motivo, Bruce Willis escapa de sua morte. Seqüências adiante o mesmo Willis quase morre por parar em um semáforo, onde encontra o sujeito de quem está fujindo, mas graças a um novo imprevisto surgido em uma nova fuga, seu perseguidor lhe dá passe livre para tocar sua vida adiante. Esse estar preso ao acaso dá outra estatura aos debates sobre gorgetas ou sobre qualquer outra bobagem. Os personagens querem, a rigor, extrair sentido de tudo. Precisam de uma ordem, de uma lógica, de referenciais. Não encontram. Vivem traindo e sendo traídos, desrespeitando códigos de conduta e tendo de dormir de olhos abertos. Nenhuma possibilidade de ordem. Isso também é negado, na fachada, só na fachada, pelas estruturas narrativas. As freqüentes fraturas na cronologia e a divisão do fluxo em blocos, cruzados em algum momento, ressaltam essa impressão de impossibilidade de um controle. Há algo de cruel nesse recurso. Porque o autor organiza tudo nos mínimos detalhes, despedaça a história para remontá-la como um quebra-cabeças, mas trata os personagens como marionetes. Ele organiza o caos. Não se trata da mesma visão do acaso expressa por Kryzstof Kieslowski. O cineasta polonês via a incapacidade do ser humano de administrar seus passos como ponto de partida para uma elucubração metafísica. Somos sujeitos de nós mesmos ou estamos à mercê de uma força superior?, pergunta, estupefato com o mistério e com a falta de resposta. Tarantino não se aproxima desse questionamento religioso. O acaso é só acaso. E só é possível controlá-lo como criador de histórias. Fora delas, não há sentido. A imagem de várias pessoas apontando armas umas para outras é sintomático desse estado de impasse e descontrole Uma outra característica alinha todos os filmes. Eles são protagonizados por gente ligada ao crime. Tipos medíocres, potencialmente descartáveis na sociedade de culto dos vencedores, que se impõe pela força como uma reação à sua condição, mas às vezes perdem. Muitas vezes. Esses criminosos são cativantes, apesar de um tanto patéticos. Nutridos e orgulhosos de referências pop, levantam a bola para serem vistos como fruto desse universo. Tarantino não os julga como deformidades produzidas pelo lixo cultural. Também não aponta o dedo para os vírus de seu mundo, como muitos de seus contemporâneos surgidos nos anos 90. Pelo contrário. Se o mundo está torto, ele faz parte disso. E celebra essa condição em típica vingança de nerd. Ao contrário de seus personagens, que tentam sair da periferia existencial, mas muitas vezes vão de lá para baixo da terra, o cineasta está no topo. E ostenta a pose de o mais mainstream dos independentes. Cléber Eduardo
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