Sganzerla: o outro caminho


Helena Ignez e Paulo Villaça em O Bandido da Luz Vermelha de Rogério Sganzerla

(Artigo apologético por Bernardo Oliveira)

O que sei de Rogério Saganzerla? Diversas sessões em salas empoeiradas, ou, no mais das vezes, em cineclubes improvisados; também uma "boa palavra", uma profissão de fé, declarações, entrevistas, artigos, lidos e relidos no mesmo passo das descobertas e desilusões cinematográficas. Se, como diz Ezra Pound, o papel positivo da crítica é "melhorar a arte que critica", e a má crítica, por sua vez, analisa o poeta e não o poema, como então manter a distância crítica quando a obra alude irremediavelmente a seu criador? E se ao constatar isso, o crítico ainda percebe que a própria identidade do autor, seu status, é impiedosamente destruída pelo próprio autor-criador? E mais: como fica este mesmo crítico quando o próprio criador-autor é pulverizado em cada plano de seu próprio filme, arrastando consigo toda a humanidade e até mesmo alguns alienígenas? E se no final, todos esses alienígenas se confundirem com o próprio autor? E se o alienígena comprar uma câmera, levar para o Xingu e sair de lá com alguns takes de Morengueira e Gonzagão? Qual a função da crítica? Esta é uma das perguntas que me fiz após conhecer a obra de Sganzerla. Uma entre outras tantas, zilhões…

O que sei de Rogério Saganzerla? Nada mais proveitoso para o crítico de cinema que um filme de Rogério Sganzerla. Neles, o crítico apreende o melhor exemplo da pluralidade como método, com a qual poderá começar a pensar em dar cabo da enorme tarefa definida por titio Pound (meu tio da América…). O ato de escrever sobre cinema, esta modulação mais ou menos obrigatória do espírito cinefílico, é geralmente deflagrado quando um determinado filme nos sugere que algo extrapolou a tela. Eu mesmo comecei a escrever sobre cinema impulsionado pelo Bandido da luz vermelha, agindo sob as ordens de um comando superior. Não se trata de vocação, nem de balela, mas de um estímulo bruto: as imagens dos filmes de Sganzerla comandam uma revolução na mente do jovem cinéfilo: algo range em sua cabeça e logo depois escoa obrigatoriamente pela caneta; trata-se de um imperativo. Assisti em vídeo pela primeira vez numa cópia já velha, ouvindo muito mal as palavras sublimes de Paulo Vilaça: "odeio ‘mortandela’". Me intrigava o simples fato de alguém colocar essas palavras na boca de um personagem de cinema. Atribuo a este filme, e a esta frase, a minha descoberta pessoal do cinema brasileiro, a consciência de sua história, de sua importância e leveza, além desta misteriosa, aparentemente eterna capacidade de retornar.

O que sei de Rogério Saganzerla? Sei que seus filmes tratam sobretudo da vida, e de seus modos de vivê-la. Trata-se menos de arte e engenho — e todo o Ezra Pound, tão cuidadosamente decorado, vai por água abaixo. O que sei de Rogério Saganzerla é o mundo, como em nenhum outro cineasta. Nem em Glauber, nem em Godard, esses ensandecidos. Muito menos em Bressane e Hitchcock, verdadeiros ascetas. Nem Fellini, nem Nelson Pereira, nem ninguém. A descoberta do cinema, sua profunda complexidade, suas premissas históricas e membros atrofiados (Rosselini), sua "evolução": durante toda a vida, o cinéfilo e o crítico se defrontam com a pergunta baziniana, que ainda vale: o que é o cinema? Questão de escolha, de mise-en-scène, de método, mas também questão de grana. Que os mais apressados não se assustem com a palavra método; ela não designa tão somente uma ferramenta, mas, sobretudo, o pleno entendimento do jogo mais ou menos livre das idéias e dos valores. O cinema é um organismo sensível por onde tudo pode passar, inclusive o inominável, amorfo, fugidio. Logo, um canal privilegiado tanto para a descoberta e análise de novas formas de vida quanto como termômetro debochado dos valores em curso: Sem essa aranha (lançem em vídeo/DVD madefãkers!!!) e Tudo é Brasil.

É chegado o fim do filme, e precisamente neste momento o espectador deve, preferencialmente, se perguntar: qual a minha interpretação deste filme que acabei de ver? E aquilo que eu não sei, que minhas antenas não captaram, onde fica? Ora, não é, ou pelo menos não deveria ser próprio da crítica aspirar à impessoalidade, como faz o jornalista. Infelizmente, há hoje em circulação nos principais meios de comunicação do globo, uma noção de "crítica" estreitamente vinculada à objetividade funcional do jornalismo, o que é prejudicial para a própria crítica, mas também para o leitor. Quem se dá bem mesmo é o dono do jornal, que presta mais um serviço pelo qual pode cobrar. Nos filmes de Sganzerla tudo passa, inclusive aquilo que ele não se propõe a fazer passar. Quem dará conta? Se hoje vemos uma enxurrada de filmes sobre os quais nada passa — ou pelo menos, muito pouca coisa…— e estamos plenamente satisfeitos, certos de mais uma "descoberta"! Recusar a imposição pseudorelativista de um cinema "posto-à-parte" é a primeira grande lição que tirei dos filmes de Sganzerla. Antes era o cinema de arte; agora, o cinema de "questionamento" ou cinema de "forma", em contraposição a um cinema "comercial". Um filme é um filme, sempre complexo, sempre expressivo. Spielberg, Julia Roberts, Vá e Veja, não interessa… Há em qualquer filme um amontoado de expressões e possibilidades, que são geralmente recalcadas em função de fatores comerciais, mas que explodem no cinema de Rogério Sganzerla, estilhaçando toda ou qualquer superficialidade. E isto é a tarefa crítica… e o crítico se perde ante a beleza de uma paisagem tão povoada:

— Tio Pound, como tomar parte neste grande espetáculo, se para isso tenho que vivê-lo?

Já em Documentário, seu primeiro curta-metragem, observamos o contraste entre a extrema delicadeza e suscetibilidade que advém de qualquer grande descoberta e a carga pesada do momento político. Jovens entediados beiram o patético, falam de sexo e cinema, planejam a realização de algo do qual não fazem a menor idéia. Escrevendo paralelamente para jornais, Sganzerla se mostra elogioso para com o cinemanovo: Saraceni, Glauber, Ruy Guerra. Cineasta-pensador, não se propõe somente à conquista do mundo, mas também à afirmação de uma política: seu cinema é crítico, e sua crítica é cinematográfica. O bandido da luz vermelha reinventou valores antes enraizados no cinema brasileiro e na imagem que dele se fazia (inclusive já superava algumas arestas cinemanovistas, embora isso seja outro assunto). Num texto de apresentação do filme, Sganzerla, com 23 anos, diz buscar um "outro caminho" em relação aos caminhos tomados pelo cinema novo (corrigidos ou não), e num certo sentido, pelo conjunto de toda cinematografia mundial. Quer dizer, ele já compreendia a vacuidade de qualquer "movimento", já se autoexcluia de qualquer arregimentação política, e assim se posicionava na linha de tiro — aquela velha estória: "estamos juntos, porém não estamos misturados" (Mestre Marçal).

Depois, o segundo filme: A mulher de todos. A primeira cena: um gordo na praia, entra na água e começa a comer/beijar uma imensa bola preta (crítica da crítica?), enquanto a narrativa em off pergunta: "será este o marido do século XXI?". Depois, o mesmo gordo, rico e empresário, abre uma coca-cola e raspa a tampinha com sofreguidão. Ele observa o "prêmio" e reclama: "pô, eu procuro cultura e só me dão dinheiro." Nada mais engraçado, urbano, agressivo, desengajado, anti-cinemanovo… Antes de terminar o filme, eu já queria fazer uma revista de cinema. Mas não era somente por gosto, mas por outros dois motivos: em primeiro lugar, sem querer parecer "triste", era a angústia perante tanto assunto, tanta poesia, tanta criação… era a pretensão, a vontade ilusória de "resolver" tudo aquilo; em segundo lugar, algo me atormentava: era o monstro da minha ignorância, o ranço de uma cultura frágil, de uma auto estima claudicante, de um pseudonecessidade de "atualizar-me" perante o colonizador, de não parecer selvagem, negro, dominado. Era o medo do Brasil, um medo que vigora no país como sua maior fraqueza, uma enorme e fedorenta nuvem de fumaça que vem à superfície revelar-se, exprimir-se,… Hoje, são os Olavos de Carvalho e os Diogos Mainardi, meras atualizações daqueles que, no início do século, se posicionavam contra as filmagens dos negros e das mazelas urbanas por considerá-las difamadoras do Brasil no exterior. Quando este medo, este "complexo de inferioridade", bate de frente com a superioridade de Sganzerla tudo muda. Sobretudo a interpretação, a intenção, a crítica…

E então emerge o Brasil. Antes do cinema marginal, antes do cinema novo, antes do cinema: é muito difícil para o balzaquiano do século XXI compreender uma história tão distante como a história do cinema brasileiro. Por exemplo, compreender a chanchada, não enquanto uma categoria realçada por uma tradição crítica (Vianny, Paulo Emílio, Bernardet), mas como movimento efetivo do cotidiano de um povo que paga pra ver. É difícil também compreender os primeiros vinte anos de cinema no Brasil, quando competíamos em pé de igualdade com as maiores produtoras-distribuidoras do mundo. "Os homens gostam de mim porque eu sei dar carinho." Ora, uma personagem como Ângela Carne e Osso é quase um rito de iniciação: despojada dos cacoetes roliudianos, ela é a expressão da lascividade, uma agressiva e insinuante investida sexual, uma cantada. Helena Ignez me ensinou a compreender Dercy, Oscarito, Lewgoy, Grande Otelo; sua originalidade é uma ampla via de acesso para esta poética. Ângela me mostrou que o "humor careteiro" não era somente resultado da falta de grana, pra compensar as dificuldades técnicas. Era fruto de uma vontade, o desenvolvimento de uma "estética", de um savoir faire. A chanchada? Aprendi com Watson Macedo, via Rogério Sganzerla.

O que sei de Rogério Saganzerla? Uma verdadeira aula de cinema em entrevista ao caderno Mais! da Folha de S. Paulo, em 1994:

"Não há mise-en-scène no cinema contemporâneo porque não há escolha, definição da câmera frente ao real, posicionamento do diretor com o tema tratado, da montagem relacionada ao enquadramento, do diálogo com a humanidade. Isso os primitivos tinham de sobra (pois não tinham part pris nem ‘prejugés’), ao contrário da mediocridade conformista, do clamoroso academicismo elitista, do servilismo mais pernóstico atual, sem falar no oportunismo e na bajulação eletrônica."

Não há mise-en-scène? O que é mise-en-scène? "Definição da câmera frente ao real"? "Posicionamento do diretor com o tema tratado"? "Primitivos"? Cinema-diálogo com a… humanidade?! "Não é muita areia pro caminhãozinho de um diretor brasileiro?", me pergunta o brasileirinho-de-merda que há dentro de cada um de nós. "Não, absolutamente", responde o outro lado, já buscando na estante o dicionário de francês. Na mesma entrevista, Sganzerla cita Greed e reclama "ninguém mais vê Stroheim!". No dia seguinte estava eu à cata do filme e achei, além de Greed, Wedding March e Queen Kelly, numa versão especial… Ele sugere que o cineasta deve corresponder à complexidade do cinema através de um trabalho minucioso e lento de autopreparação e escolha. Elogia Spielberg porque lá ainda se vê alguma "invenção" (olha meu tio aí de novo…). Quando li essas idéias, superei todas as dicotomias, porque percebi que me atinha a critérios muito vagos e preconceituosos. Cada filme é uma escritura fina, fixada a partir de uma caligrafia determinada. Umas mais rígidas, outras ilegíveis; algumas feitas em computador, outras feitas sobre aço. Algumas escrituras permitem que se observe o autor, ou mesmo as circunstâncias em que nasceram. Os filmes de Sganzerla, a personalidade que estes filmes revelam, dão conta de uma caligrafia universal: seu caráter povoado, sua visão macroscópica, um tom sempre crítico, alegre e maldoso, convivem com a mesma angústia de Meliés, de Rosselini, de Cassavetes e Godard, a saber: de como o cinema pode vir a se tornar alguma coisa além da "maior diversão".

Se insisti na questão da formação é porque acho que os filmes podem educar. Mas a educação não pode se resumir a um conjunto de prescrições sem as quais não podemos viver. Entendamos amplamente a educação, a inteligência e a escolha, como dados concretos e contínuos de uma vida exposta aos riscos. Todos os personagens de Sganzerla correm riscos, vivem entre a estupidez e a sabedoria, são impulsivos, escandalosos, "boçais" como o Luz, mas também como os meninos de Documentário e os personagens que barbarizam a "descida do morro" em Sem essa Aranha. O que sei de Rogério Sganzerla é que seus filmes mostram que não há caminho pronto e decorado para um outro cinema: há que se construir este "outro caminho", há que se defrontar com este risco. Por isso a apologia da preparação, da formação. E, bem entendido, não se trata somente de risco financeiro. O outro caminho escolhido por Sganzerla leva seus personagens para o fundo do poço, mas somente após percorrerem toda a gama de boas e más experiências; também revelou para o cinema brasileiro uma outra realidade, que, no entanto, dada sua natureza rebelde, insiste em mantê-lo à parte, como mais um exemplar raríssimo, perdido na imensa riqueza da paisagem.