O vôo do condor


A Coragem do Povo de Jorge Sanjinés

Percorrendo a imensa galeria de nomes que compõe o cinema contemporâneo nos deparamos com poucos que apresentam uma trajetória de tamanha singularidade quanto a de Jorge Sanjines. O caminho desse fundamental cineasta merece esse adjetivo por ser o seu cinema, entre outras coisas, uma eterna busca, uma incansável investigação de formas expressivas feita para alcançar um objetivo maior: a liberação de seu povo.

Pouca ou quase nenhuma imagem da Bolívia havia sido mostrada no exterior antes da projeção de Ukamau / Así es (1966), seu primeiro longa metragem, no festival de Cannes de 1967. Entre muitos, George Saudoul ficara chocado com a grandiosa força que persistia em Ukamau do primeiro ao ultimo fotograma. Uma crueza incrível possuía aquele registro das comunidades aymaras (é o primeiro filme falado em aymara) onde a tristeza e a melancolia eram sentimentos que sopravam unidos com o vento frio do altiplano boliviano.

Utilizando um personagem protagonista, procedimento que mais tarde seria motivo de uma séria autocrítica, Sanjines narra a história de uma vingança que também é a da luta do índio contra a exploração do homem branco. No caso, o homem branco era um mestiço, um atravessador que comprava os produtos cultivados pelos camponeses para vendê-los por um preço mais caro na cidade. Ele é desenhado como a encarnação do mal, as suas atitudes parecem ser unicamente a expressão de sua personalidade e não de um contexto social mais amplo onde a cultura da exploração impera e é diretamente proporcional aos traços brancos possuídos. Ramos, por também ter sangue branco correndo por suas veias misturado ao sangue índio, prefere optar pela porção dada pelo dominador. A porção que não o faz se juntar aos brancos, mas que lhe dá o direito de subjulgar aos índios, a sua metade renegada.

A longa e paciente espera sofrida por Andrés até concretizar sua vingança sobre Ramos é pontuada justamente por essa oposição índio x mestiço. Através de uma montagem alternada, Andrés é mostrado em plena harmonia com a natureza, é unido a todos os membros de sua comunidade e possui uma enorme devoção pela mulher morta, enquanto Ramos é o extremo oposto. Ele bebe e bate na mulher, as suas relações de amizade são marcadas por desconfianças e traições. Sem fazer parte de uma cultura própria e autêntica, sua existência é sustentada pela violência e pela exploração do outro. Tipificação de mestiço, característica do romance indianista boliviano do qual o filme se filia.

A vingança de Andrés é solitária, outro fator que fez Sanjines pensar e modificar em filmes posteriores. Atitudes como essa nas comunidades camponesas são extremamente raras. O problema e a dor de uma pessoa são compartilhados com a coletividade, e é por ela que se busca uma solução. O personagem guarda a tristeza dentro de si apresentando um individualismo incompatível com a sua cultura. O seu lamento é apenas exteriorizado através da música emanada por sua quena. O som da flauta indígena possui a função dramática de anunciar a presença de Andrés e também de atuar como um demônio que aterroriza a consciência de Ramos. Estas duas funções são manejadas com maestria na seqüência da perseguição.

Andrés é um fantasma que segue o rastro de Ramos pelos sinuosos caminhos das montanhas. Este não sente a sua presença, mas escuta, atormentado, a melodia que anuncia a sua morte. O canto andino se amálgama com perfeição à densidade da fotografia, potencializando o aspecto rude e austero da paisagem que servirá de palco para o eletrizante duelo final. Um duelo impressionante onde a paisagem é um terceiro participante e os objetos que dela fazem parte, as pedras, são as armas. Uma colcha de retalhos de diferentes tradições cinematográficas aparece nesse embate. Se por um lado o posicionamento dos personagens e o início de sua planificação nos remete aos westerns, o seu desenvolvimento é montado com uma precisão e vigor que não deixa nada a dever ao cinema mudo soviético. Conscientes ou não, as influências ornamentam a luta que culmina com a vitória de Andrés. Abaixo de seu rosto aparece escrito o título do filme, Asi es, assim seja.

Se em Ukamau constatamos a predominância da questão racial sobre o tema da luta de classes, em Yawar Malku/ Sangre de condor ( 1969 ) ocorre o inverso. Aqui é esmiuçada a dualidade entre campo e cidade para enfatizar a idéia de que o operariado urbano e os camponeses fazem parte de uma mesma luta. Ignácio, chefe da comunidade, desconfia da aparente cordialidade dos americanos, funcionários de um centro de maternidade do Cuerpo de Paz instalado na região. Entrevistando as mulheres atendidas pelo centro e fazendo uma investigação sobre o seu procedimento ele descobre que este estava pondo em prática um sinistro programa de esterilização das mulheres camponesas.

A repressão não tarda em tomar as suas medidas executando uma chacina onde Ignácio é gravemente ferido. Este é levado a La Paz, cidade onde mora seu irmão Sixto, um ex-camponês agora operário em processo de aculturação. O centro da narrativa sai das mãos de Ignácio e passa para as mãos de Sixto, que procura desesperadamente remédios e sangue para o seu irmão.

Enquanto Sixto está atrás de sangue para trazer a vida, no campo os americanos semeiam a morte. O primeiro está tentando perpetuar sua cultura, mantê-la pulsante na conservação de seu chefe; e o segundo planeja sua extinção impedindo a proliferação de seu povo. Esse conflito se acentua quando o personagem entra em contato com a burguesia. Entrando em um restaurante onde é oferecido um banquete a médicos americanos que "muito ajudaram através de suas instituições na assistência ao povo boliviano" ele vê a hipocrisia reinante. Os convidados incomodados com a sua presença perguntam o que ele quer. Ao explicitar sua situação, Sixto é ignorado e o médico continua o seu discurso bajulador como se nada tivesse acontecido.

A tipificação caricatural dada à elite também é compartilhada pelos "gringos". Esbanjando futilidade e arrogância, subestimam a esperteza dos camponeses. Após uma assembléia onde Ignácio expõe o caso para a comunidade, observamos que tudo é decidido em grupo. Eles resolvem, então, enfrentar os seus malfeitores.

Observamos que o tratamento meticuloso dado à montagem em Ukamau continua aqui o seu processo de depuração e o momento chave para acionar esse recurso permanece sendo o do enfrentamento final. Estando presente em todo o filme, é no ajuste de contas que ele se potencializa ressaltando a face do herói, agora já encaminhando para a do herói coletivo que encontrará seu ápice em Coragem del pueblo (1971), e de seu opositor.

Sanjines nunca negou o caráter didático de seus filmes, querendo sempre deixar claro quem é o inimigo que deseja combater. No caso, o inimigo é o imperialismo americano, representado pelo Cuerpo de Paz, que após a polêmica causada pelo filme, foi expulso do país. Esse fato talvez tenha ampliado o desejo do realizador em produzir filmes que tenham resultados efetivos, filmes que sejam úteis para o povo e que possa mostrá-lo as suas verdadeiras possibilidades.

Saindo do sistema de exibição convencional, o grupo Ukamau vai sistematizar uma série de projeções realizadas no campo e em zonas mineiras promovendo debates e discussões. Tendo claramente um destinatário a ser alcançado: o povo andino, agora uma minuciosa reformulação estética precisa ser feita, pois não é o cineasta que deve ensinar ao povo os códigos cinematográficos, e sim é o povo que deve ensinar ao cineasta seus códigos para este fazer cinema.

Baseando-se nesses preceitos, Sanjines vai recusar certos cânones da dramaturgia cinematográfica estabelecida como o personagem protagonista e a planificação clássica para atingir o seu objetivo. Representar o povo através do personagem coletivo, e para ele ser mostrado em sua totalidade, o recurso solicitado é o plano seqüência integral. É só negando a planificação tradicional, plano de conjunto, plano médio, primeiro plano, que teremos a diminuição da autoridade do diretor insistente em fabricar uma emoção para fazermos ela brotar livremente através da participação dos atores, ou seja, do povo.

Personagens históricos é a terminologia adotada para designar a função dos atores em Coragem del pueblo. Reconstituindo o massacre da noite de San Juan, a denuncia do filme é feita pelas próprias vítimas interpretando elas mesmas no verdadeiro local onde ocorreram os fatos, o centro mineiro de Siglo XX. A força extraída por esse processo é realmente incrível. Não existindo um roteiro que indique marcações a serem tomadas nem falas a serem decoradas os atores criam a cena baseando-se em suas memórias. Prepara-se um espaço, liga-se uma câmera e pronto, os camponeses estão livres para criar e disparar contara os seus opressores.

O mesmo ocorre em El enemigo principal (1974), também uma reconstituição com os seus protagonistas verdadeiros. A seqüência do assassino sendo julgado pelo júri popular pediria claramente um primeiro plano em seu rosto minutos antes da sentença final. Isso não foi feito porque o efeito desse corte anularia o desenvolvimento do,plano seqüência que consiste na força da participação coletiva. A integridade do plano seqüência constrói uma distância adequada para o pensamento e critica da encenação. Picotá-la em diversos planos levaria o espectador para o caminho oposto, sufocando a sua reflexão.

Essa é outra questão que Sanjines precisou avaliar. O papel desempenhado pela emoção em um cinema feito para fecundar a reflexão. A emoção ao invés de ser uma barreira é um estimulante para se chegar a uma visão objetiva. A emotividade não deve ser desprezada com o propósito de estimular unicamente a capacidade de reflexão e análise desembocando em um exagerado distanciamento, no sentido formulado por Brecht, na relação estabelecida entre espectador obra e sim ela deve ser provocada a ponto de se produzir um choque afetivo que se prolongue a um estado de efetiva objetividade.

A perfeita comunhão entre pensar e emocionar ocorre sempre em filmes que apresentam um certo grau de humanidade. Elemento primordial no cinema de Sanjines. Nele encontramos sempre um sentido amplo de beleza, uma beleza que brota de forma natural e espontânea. Para ele, ao contrário da arte burguesa que a elege como uma força suprema escravizante, na arte popular ela deve ser utilizada apenas como um meio e não como um fim. A beleza sem sombra de duvidas é uma ferramenta indispensável ao filme político. Sem a sua presença ele correria o risco de se transformar em uma ineficiente tese. Ineficiente porque o aspecto de tese que pode transparecer em qualquer filme político é o resultado de uma incoerência que o distancia de seus verdadeiros objetivos. Sanjines nunca defendeu qualquer tese, nem ao menos em El enemigo principal onde fora criticado por advogar o foquismo.

Na verdade a figura do velho narrador (recurso habilmente usado para pontuar os seguidos planos seqüência) no final faz uma avaliação que nega essa crítica. O orador popular, figura típica das comunidades quéchuas, denuncia o fato dos guerrilheiros terem se embranhado nas matas deixando o povo desamparado em um momento que as forças repressoras estavam por vir.

Aqui o senso de transparência e o didatismo já encontrado em Coragem del pueblo foram ainda mais ampliados. Se nesse vimos as fotos de todos os responsáveis pelos massacres a fim de mostrar os seus reais algozes com rostos e nomes, aqui presenciamos uma resolução. O povo julga o seu opressor e o mata.

Podemos agora traçar um paralelo entre os planos finais dos filmes de Sanjines até culminar no último plano de La nacion Clandestina ( 1989 ). Se em Yawar Mallku nos deparamos com o já antológico plano dos braços empunhando fuzis em um claro chamado à luta armada como conclusão do problema exposto, se em Ukamau vemos a vitória do oprimido após um embate corpo a corpo, se em Coragem del pueblo assistimos o povo unido descer as montanhas cantando em uníssono um contagiante brado de libertação, em La nacion clandestina presenciamos além do resultado prático de seu último ensaio teórico El plano secuencia integral, a dança que evoca o tema que permeia toda a sua obra: a morte.

Sebastian Mamani, para reintegrar-se à aldeia que abandonara e ser perdoado do mal que cometera contra os seus, precisa executar uma dança ritual que terminará com a sua morte. Sem jamais ter conseguido ser aceito na cidade sendo sempre um antígeno, um corpo estranho injetado no organismo da civilização branca e agora também recusado pelo seu povo , Mamani experimenta o drama de muitos mestiços, como o do escritor peruano José Maria Arguedas. Arguedas sempre viveu no "entre" duas culturas. Não sendo aceito pelos brancos por ser índio e não sendo aceito pelos índios por ser branco, o escritor encontrou no suicídio a sua solução.

O nosso personagem também se encontra em um buraco, em um espaço isolado localizado entre duas culturas, porém a sua dança longe de ser um suicídio é um sinal de arrependimento e humildade. A sua dança da morte é sagrada e constitui uma prova de que não se pode negar a origem. De uma maneira ou de outra ela sempre volta.

A morte misturada à poesia também aparece no som da quena de Andrés, em Ukamau. A dor proporcionada pela perda da mulher é transformada em música assim como a perda do irmão para Sixto é transformada no início de uma luta em Yawar Mallku . A sua respiração é uma constante no cotidiano dos mineiros em Coragem del pueblo e dos camponeses em El enemigo principal .

Sanjines afirma que um filme sobre o povo não é o mesmo que um filme feito pelo povo por intermédio de um autor. É assim que ele se vê, como um intérprete e tradutor de seu povo e é nesse anseio de construir um espelho social que faça nascer a autoconsciência e a autocrítica que percebemos nitidamente as bases de seu cinema.

Estevão Garcia