O
que "O Prisioneiro
da Grade de Ferro" revela


O Prisioneiro da Grade de Ferro de Paulo Sacramento
Muito mais importante
do que rever velhos clássicos, para um cinéfilo, é
ter a oportunidade de encontrar uma novidade, um novo talento, uma nova
grande obra. Descobrir um filme bom em meio ao crescente número
de novas produções é o que pode tranqüilizar
os amantes do cinema e garantir o futuro da realização cinematográfica.
A cinematografia precisa ser dinâmica e mostrar capacidade para
se adaptar às constantes revoluções para que o conjunto
das obras possa ser considerado válido, não adiantando se
apoiar apenas em projetos de resgate e conservação.
Atualmente, no Brasil,
se discute muito o modelo de produção e financiamento de
filmes. Distorções estruturais do modelo de captação,
mesmo garantindo uma certa estabilidade no número de obras que
chegam ao público, têm moldado as características
desse conjunto de filmes, atrelando-os a interesses corporativos que não
satisfazem exatamente aos anseios dos espectadores, da crítica
e dos produtores e distribuidores independentes. Nossa filmografia mais
recente parece que se voltou para um padrão imposto de fora. São
os conceitos de qualidade que não são universais mas que
são defendidos como primordiais por alguns grupos que conseguem
acesso ao grosso da ajuda financeira. Quando a distribuição
de recursos se concentra a renovação é prejudicada,
dificultando o aparecimento de novos nomes e atrapalhando a diversificação
formal e temática, enquadrando a produção em uma
lógica de altos recursos que não corresponde à realidade
da maioria dos realizadores.
A ética no
cinema precisa ter sempre em vista o estado das coisas. O filme nacional
não é um produto que pode se dar ao luxo de se posicionar
fora do contexto econômico e social brasileiro. Em outras palavras,
há os que fazem cinema vinculado às deficiências financeiras
e nem por isso fazem maus filmes. Vem daí a genialidade que consegue
adaptar as técnicas às necessidades, extraindo um produto
com alta qualidade formal e antenado com a realidade de onde é
produzido. A isso se pode dar o nome de criatividade ou, como Glauber
diria, visão de mundo.
Por dentro do esquema
O último É
Tudo Verdade, a maior mostra de documentários do país, exibiu
O Prisioneiro da Grade de Ferro, filme de Paulo Sacramento que
ganhou os dois prêmios mais importantes do evento, incluindo o de
melhor filme internacional. Impressionante, mas nem tanto, quando se verifica
o nome do diretor e suas realizações passadas.
Paulo Sacramento não
é um leigo ou aventureiro atrás de fama e fortuna no cinema
nacional. Jovem de uns 30 anos, cria da faculdade de cinema da USP, seu
nome aparece em uma grande quantidade de produções de curtas-metragens,
universitários ou não, na maioria das vezes como montador,
mas também como produtor. Dirigiu dois curtas, simples e baratos,
sem aparentemente mobilizar um grande aparato de produção.
Ave, de 1992 e Juvenilia, de 1994 já indicavam a
liberdade que seu diretor parece prezar, escolhendo temas nada convencionais
e tratamento formal adequado ao esquema independente, universitário
e ao mesmo tempo eficiente.
O Prisioneiro da
Grade de Ferro, seu primeiro longa, é fruto de uma mesma visão
sobre o cinema. Paulo Sacramento escolheu a captação em
vídeo digital e a transferência para película 35mm,
tirando o máximo proveito das deficiências e características
desse modelo de produção para afirmar a peculiaridade estética
inerente a ele. Câmeras digitais pequenas conseguem entrar no presídio
sem causar a interferência das pesadas câmeras de cinema.
O filme, maior do que um longa-metragem convencional, de temática
atual, que documenta a vida dentro do mal afamado Carandiru, aponta o
comprometimento do seu diretor com um ideal próprio do cinema brasileiro
e com um projeto de viabilização da produção
que tem muito de luta e determinação pessoal. Luta que já
se mostrava clara na aventura de Paulo Sacramento ao produzir Amarelo
Manga, filme polêmico de Cláudio Assis. Esse filme, que
ainda não foi devidamente apresentado para o grande público,
não carrega apenas a marca autoral e provocativa de Assis, deixando
também à mostra o talento e a capacidade de Paulo Sacramento,
figura consciente das necessidades e possibilidades do cinema no Brasil.
Carandiru
ao contrário
O Prisioneiro da
Grade de Ferro não vem de uma moda de documentários
em vídeo, formato de captação quase que obrigatório
hoje em dia para produções do tipo. Nem quer fazer gênero
de filme-de-cadeia no rastro de Carandiru. Filmado antes da implosão
do complexo de prédios onde funcionava o presídio, o filme
tem a função principal de impedir que o problema caia no
esquecimento. As bombas puseram abaixo as celas e Paulo Sacramento, com
suas câmeras, reconstrói esse passado recente como que para
nos lembrar que a única coisa que mudou é que Carandiru
não mais existe, mas que as causas que um dia o edificaram continuam
muito presentes. Não é um ato de demolição
que mudará alguma coisa.
O documentário
não é nem um pouco memorialista. Paulo Sacramento estava
interessado no cotidiano, na normalidade, na organização
interna de um mundo tão estranho e, ainda bem, inacessível
para a maioria dos cidadãos que não cometem crimes. Para
entrar completamente nesse universo com seus apetrechos digitais e registrar
a realidade, a equipe promoveu uma oficina com alguns presos, escolhidos
de forma a englobar a variedade de tipos da cadeia. Dessa maneira uma
imensa quantidade de material foi fornecido pelos próprios presos,
dotando o filme de um grau de intimidade com o objeto poucas vezes conseguido.
A câmera vai a todos os cantos e redutos, grava a legalidade e a
ilegalidade, é curiosa e reveladora. A edição de
tanto material deve ter sido penosa mas formou um retrato completo das
pessoas que habitavam o lugar sem sensacionalismo barato. O problema carcerário
não é pontual e Paulo Sacramento tem consciência disso.
Daí o seu interesse no ser humano e sua realidade imediata. Não
há espaço para a tragédia da invasão do batalhão
de choque, tão valorizada em Carandiru. Em O Prisioneiro...
isso é uma lembrança, e como tal não é foco
de interesse por não elucidar o problema maior que é a situação
geral dos presos. Fica claro que no filme são eles que tem voz.
Parece que, ávidos por compreensão e tratamento de gente,
aproveitam essa rara oportunidade de se fazerem ouvir para falar como
pessoas quaisquer tentando manter a normalidade do seu mundo. Não
se ouve falar de crimes ou do que os levou para dentro daquela fortaleza,
o conteúdo é muitas vezes produzido pelos próprios
condenados. Porque nos importa saber quem matou ou porque matou se esses
detalhes não mudarão em nada a realidade vivida dentro daqueles
muros. O Prisioneiro..., um documentário, tem êxito
ao apresentar ao espectador de fora a chance de entrar quase que de verdade
em um mundo que não é o seu.
O Prisioneiro da
Grade de Ferro, como já deu para perceber, é um filme
importantíssimo, ligado às urgências do cinema atual,
podendo até ser uma grande contribuição para o debate
levantado por alguns segmentos do meio cinematográfico em torno
da questão do financiamento estatal e do dirigismo. A contrapartida
social está mais do que presente. Sem alarde, sem reclamar, mostra
o que nunca foi mostrado, transforma em seres humanos o que muitos consideram
bichos e abre o campo de visão da sociedade. Mas talvez, a sua
maior contribuição tenha sido revelar um humilde trabalhador
do audiovisual. Paulo Sacramento é muito modesto no trato mas extremamente
competente quando o assunto é cinema. Onde quer que esteja atuando,
na direção, montagem ou produção, empresta
a versatilidade e o vigor que um cinema tão cheio de problemas
como o nosso tanto necessita.
João Mors Cabral
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