A Morte num Beijo, de Robert
Aldrich

Kiss me Deadly, EUA, 1954
Parece
inegável que A Morte num Beijo, de Robert Aldrich, é
um filme sintomático de sua época. Realizado em 1954, durante
a paranóia da guerra fria e da ressaca do machartismo, é
uma obra sombria. Assume seu vínculo com o expressionismo alemão
e reproduz as deformações do período, seja pela amoralidade
dos personagens, seja pelas expressões e atitude de tipos "estranhos",
projetados na tela para acentuar o clima sinistro da narrativa. No embate
às vezes estéril sobre categorias do noir, útil apenas
para quem analisa o cinema como um catálogo, o filme certamente
seria um exemplar "puro" do gênero, pois, além
de construir seu mundo em vez de referir-se a outros mundos construídos
antes (como fizeram Roman Polanski em Chinatown, Ridley Scott em
Blade Runner, Joel Coen em Gosto de Sangue e Curtis Hanson
em Los Angeles, Cidade Proibida), dialoga com estatutos do cinema
"negro". O mais explícito deles são as sombras
nas paredes e no rosto dos atores, de modo a evidenciar o lado escuro
deles, como se seres aparentemente angelicais fossem demônios. Nesse
lodaçal de imagens turvas, pouco confiáveis, move-se um
detetive particular, especialista em casos de alcova, que investiga as
razões pelas quais, depois de dar carona à uma mulher, tentaram
pôr fim à sua vida.
Esse protagonista
é um anti-herói sem nenhum caráter, cujo ganha-pão
inclui chantagens e a exploração de uma secretária,
também sua amante, que usa o corpo como isca para serviços
sujos. A atmosfera de impasse dos anos 50 está no próprio
mistério. Não há muito sentido nas pistas levantadas
e, quando se chega a uma chave para o enigma, essa solução
revela-se um beco sem saída, com efeitos catastróficos.
Mas nenhuma informação visual teria o poder de ser um documento
daquele momento e ainda manter frescor quase 50 anos depois se não
fosse a encenação nada careta de Aldrich. Obra do início
de sua carreira, quando fazia até três longas-metragens por
ano, Morte Num Beijo é um autêntico filme B, feito
com pouco dinheiro, muita criatividade na escolha dos enquadramentos e
um obsessivo senso de efeito estético, tanto nos variados ângulos
da câmera e na fusão/sobreposição da imagens
como na disposição dos elementos no quadro.
Aldrich assumia a
influência de Orson Welles em seus primeiros filmes, mas, neste
especificamente, deixou de ser só influenciado para também
influenciar. Jean-Luc Godard assumia tê-lo adotado como uma das
referências para Alphaville e, conscientemente ou não,
é possível ver sua sombra pairar sobre David Lynch, especialmente
em A Estrada Perdida e Cidade dos Sonhos. Assim como esses
dois, Morte Num Beijo confunde muito, explica pouco e, nos primeiros
minutos, tem uma ruptura narrativa, a moda das de Lynch. A suposta protagonista,
que aperece no primeiro plano clamando por carona na estrada, morre no
início do filme, mas permanece figura central, exatamente por sua
ausência. Na retomada da narrativa, o novo protagonista, agora o
detetive picareta, vive uma situação insólita. Não
tem idéia do que está ocorrendo, como se vivesse em um pesadelo,
e tentará exatamente descobrir isso. Aldrich filma a errante trajetória
de seu personagem sem atenuar o niilismo condutor da atmosfera e de todas
as situações. Com sua câmera sedutora e fluência
narrativa, livre do peso das produções de grandes estúdios,
mantém o ar moderno nas imagens. E no espírito.
Cléber Eduardo
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