Um cineasta do
desencanto: Michael Mann
Al Pacino e Robert De Niro pela primeira vez
frente à frente em Fogo Contra Fogo de
Michael Mann
1964. O jovem Cassius Clay treina para disputar
o cinturão dos peso-pesados com Sonny Liston, a luta de sua vida.
À sua volta, a cultura negra americana passa por um momento de
intensa efervescência, seja nos discursos de Malcolm X ou no soul
contagiante de Sam Cooke. O estímulo externo vem acompanhado da
memória de eventos simbólicos: seu pai pinta numa igreja
a imagem de um Jesus loiro de olhos azuis; na volta para casa, na parte
de trás do ônibus reservada às "pessoas de cor"
o pequeno Clay observa assustado à fotografia que estampa na primeira
página do jornal o rosto em pedaços de uma vítima
de linchamento. O homem observa o garoto por cima da leitura e fecha o
jornal num gesto agressivo; Clay fecha os olhos, entristecido com a lembrança,
e começa a socar o saco de pancadas com mais violência.
Os primeiros dez minutos de Ali (2001),
filme que comprova a grande fase por que passa o cinema de Michael Mann,
culminam no combate que elevaria Cassius Clay à categoria de campeão.
A vitória no ringue é carregada de significado e Mann filma
a batalha – magistralmente, diga-se de passagem – como um legítimo
ato político. Ali é um trabalho inestimável
em sua tentativa de construção imaginária de um herói
positivo, firmemente comprometido com a idéia de associar (ou sacrificar)
sua trajetória individual a um idealismo de base – afinal, não
é à toa que evoca-se a imagem de Jesus na gênese do
mito.
Muhammad Ali, assim como todos os outros
heróis de Mann, é um homem imerso em profunda melancolia.
Herdeiro de Sam Peckinpah, outro grande cineasta do desencanto, Mann filma
suas personagens entregues a um processo de envelhecimento, de desgaste
e confrontamento com seus ideais particulares. Em O Informante
(1999), seu filme anterior, Al Pacino e Russel Crowe fazem os papéis,
respectivamente, de um jornalista (Lowell Bergman) e um cidadão
comum (Jeffrey Wygand) que, aliados para trazer à tona uma importante
revelação sobre a indústria do tabaco, têm
que encarar um duro golpe: a verdade, diz Lowell a Wygand, não
importa; ela é construída de acordo com tais ou tais interesses
para servir a tais ou tais propósitos. A constatação
causa um profundo abalo em Wygand, que havia sacrificado sua carreira
científica e sua família em função desta revelação;
por outro lado, Lowell – um ex-aluno de Marcuse – é obrigado a
rever suas próprias certezas a respeito de sua profissão
sentindo na pele o fracasso de um projeto de geração, dobrado
a interesses corporativos.
Este aspecto de desencanto se apresenta em
toda a obra de Mann. Em Profissão Ladrão (1981),
um de seus primeiros filmes, James Caan é um dedicado especialista
em roubo de jóias que resolve se aposentar e constituir uma família.
Para o último grande golpe, ele se alinha a uma quadrilha que termina
por aprisioná-lo numa estrutura de poder que põe em risco
seu código de conduta. Profissão Ladrão é
uma provocante aplicação de uma visão marxista à
proposta de revisão de gênero: tudo gira em torno do trabalho,
que constitui o objeto de estudo privilegiado da narrativa; a câmera
se deixa hipnotizar por cada gesto que constitui o último grande
assalto, uma longa seqüência em que vemos apenas a aplicação
prática da elaborada técnica dos ladrões. A trama,
por sua vez, se desenvolve rumo a uma vingança kamikaze de Caan
contra os agentes da exploração de seu trabalho.
Mann insiste, correndo o sério risco
de parecer anacrônico, em revisitar pontos estratégicos da
agenda da esquerda liberal (trabalho, imprensa, minorias) sob a ótica
do indivíduo e das implicações morais do gesto político,
o que indica a presença de um idealismo de base em seu discurso.
Como suas personagens, Mann trilha um caminho muito particular com seus
filmes: nascido no mesmo ano que Martin Scorsese, Mann entraria para o
cinema seguindo os passos de uma geração posterior, descolada
do traço de cinefilia-enquanto-religião do brat pack; estudou
na London Film School tendo como companheiros de classe figuras como Adrian
Lyne e os irmãos Ridley e Tony Scott, mas trilhou o caminho do
documentário engajado e das séries de televisão,
ao invés da publicidade, como preparação para seu
trabalho como cineasta. Sua contribuição para a TV americana
é imensa, tendo provocado com o sucesso colossal de Miami Vice
uma revolução no formato das séries policiais (um
terreno ao qual, ademais, retorna volta e meia), o que contribuiu, associado
à sua abordagem essencialmente formalista do cinema, para sua desqualificação
crítica como autor.
Em meados da década de noventa, Mann
passa a se dedicar exclusivamente ao cinema, entusiasmado pela boa recepção
de sua obra-prima Fogo contra Fogo (1995), um filme que poderíamos
qualificar como a mais ambiciosa (e bem-sucedida) tentativa de revisão
do cinema de gênero junto com Os Imperdoáveis de Clint
Eastwood. Tudo neste filme remete à estrutura épica: a ação
se desenrola num espaço mítico, uma Los Angeles de contornos
abstratos transfigurada no palco de um confronto de proporções
bigger-than-life. A história se articula em torno do encontro de
dois ícones do policial moderno, Al Pacino e Robert DeNiro, que
se reúnem para discutir, sentados à mesa de um café,
seus papéis na trama. A seqüência alterna em campo/contracampo
a verborragia histérica do overacting de Pacino à composição
metódica da canastrice de DeNiro, num jogo de reconhecimento e
identificação mútuos entre perseguidor e fugitivo,
figuras complementares e irreconciliáveis. Cada enquadramento (Mann
é um dos maiores estetas do cinemascope em atividade) acentua o
descompasso da personagem com o ambiente que lhe cerca: Pacino, em determinado
momento, expressa seu mal-estar em viver na casa decorada num estilo que
chama de "post-modern bullshit"; DeNiro e sua gangue, por sua
vez, subvertem o espaço público, fazendo das ruas um espaço
de guerrilha urbana numa das melhores seqüências de ação
do cinema americano em todos os tempos.
Fogo contra Fogo foi, sem dúvida
alguma, o filme que provocou a maior repercussão crítica
na obra de Michael Mann permitindo, por um lado, uma revisão necessária
de seus filmes e, por outro, inaugurando uma fase notável de renovação
de seu cinema. Há que estar atento a este processo, pois dele ergue-se
uma voz das mais interessantes trabalhando hoje no cinema americano.
Fernando Verissimo
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