Conversa entre Fernando Meirelles e Ruy Gardnier

Após ler o texto “E Se Cidade de Deus Traísse a Mais Forte e Longeva Tradição do Cinema Brasileiro”, Fernando Meirelles escreveu uma carta comentando certos pontos do texto original de Ruy Gardnier, que respondeu às suas considerações – em seguida, Fernando respondeu novamente à réplica de Ruy. A Contracampo tem então o prazer de publicar abaixo esse diálogo estabelecido entre um realizador e um ensaísta – diálogo este que, por não ter sido feito a princípio com a intenção de ser publicado, se deu à maneira informal que caracteriza a troca de cartas por internet, com os comentários divididos a partir da reprodução de trechos do texto inicial. Vamos então manter a estrutura original aqui, tendo em vista a melhor compreensão desta troca de idéias que se segue. Para os comentário de Fernando Meirelles usaremos abaixo as inicias FM, para as réplicas de Ruy usaremos as iniciais RG e para as tréplicas de Fernando usaremos FM – TR.

E se Cidade de Deus traísse a mais forte e longeva tradição do cinema brasileiro?

Fernando Meirelles: A provocação inicial é muito boa. Vejo sempre duas maneiras de fazer o que quer que seja andar para frente, do cinema brasileiro ao meu casamento: Seguir a tradição e ir evoluindo passo a passo, ou pela ruptura, a revolução. Mesmo que Cidade de Deus tenha rompido com a tradição, isso é apenas por um momento, pois em pouco tempo esta possível novidade estará incorporada à tradição. Mas na verdade nunca me coloquei esta questão em relação a este projeto. Esta é uma preocupação de críticos - que, assim como os funcionários das locadoras, têm entre outras a função de colocar os filmes nas prateleiras certas. Quando um diretor quer contar uma história, ele nunca se preocupa em qual prateleira vai estar seu filme.

Ruy Gardnier: Considero talvez mais importante sugerir outras possíveis prateleiras, especular, abrir novas chancelas. Crítica significa “pôr em crise”, o Inácio Araújo não pára de repetir, sempre. Ao pôr algo em crise, tentamos forçar o leitor a pensar acerca de coisas das quais ele tinha já certezas bem definidas. Mas de fato não é provocação, é uma hipótese de trabalho, e eu a empenho para tentar, no texto, fazer um ensaio da repercussão que Cidade de Deus teve com segmentos da intelectualidade brasileira e da crítica. Espero que tenha ficado bom.

Fernando Meirelles – Tréplica: Achei tão bom que comecei a responder espontaneamente, só para “ouvi-lo” mais. Gosto de ler críticas que põem em crise, como essa, ou mesmo as que apenas colocam os filmes na prateleira certa, só não tolero as que usam filmes como trampolim para um exercício de vaidade ou aquelas onde o crítico escreve sobre o que faltou nos filmes. “O filme não toca em determinada questão... não menciona determinado fato”... É muito comum ler críticas sobre o que não foi filmado. Mas vamos falar das tradições do cinema brasileiro.

David Neves não parava de se assustar que ninguém falasse da tradição de simplicidade, de "preguiça", do denominador menos trabalhoso possível na realização de um filme nacional. Essa "preguiça", contudo, não é uma vontade de fazer-porco, mas antes uma certa concepção de mundo, uma certa vontade de banhar a película de realidade, de interferir o mínimo possível para que o mundo faça por si só o seu trabalho e a câmera consiga registrá-lo tal e qual.

FM: Sinto que essa afirmação é retórica, Ruy. Sabemos que não existe a possibilidade da não-intervenção. Ao escolher um simples enquadramento o diretor já está fazendo opções e interferindo. Não é possível ser isento. Nem uma câmera de segurança é neutra. "Banhar a película de realidade" não existe e também não é o que vejo em 90% dos filmes brasileiros, onde os enquadramentos buscam um equilíbrio formal, os atores recitam textos elaborados, descolados da realidade, num tom em geral alguns pontos acima desta realidade. O cinema brasileiro é um dos campeões de intenções, metáforas, alegorias e da mão forte de seus diretores. Não há nada de neutralidade em nosso cinema. É um cinema com poucos planos mas muito elaborado, a meu ver. Eu leio alguns roteiros de colegas onde já está lá escrito: "a câmera percorre os beliches, onde as mulheres dormem...". Ou seja, ao pensar na história o diretor já sonha com seus planos anos antes de ir filmar.

RG: Não é retórica, Fernando. Creio que existam duas formas majoritárias de aproximação que um artista cinematográfico tem com sua matéria expressiva: ou ele tenta apreender certos dados de seu entorno (aquilo que poderíamos, se fossemos idealistas, chamar de “realidade”) e realizar um trabalho a partir disso (realistas, modernos) ou os cineastas que tentam imprimir um esforço de subjetividade própria na massa a princípio informe do real (maneiristas, clássicos). Tem diretor que nem faz questão de planos, de enquadramento, mandam o fotógrafo simplesmente colar no corpo do ator. E esses 90% de filmes brasileiros dependem do recorte que se utiliza. Se você utiliza o recorte dos anos 90 para cá, você está completamente correto em sua interpretação, concordo em tudo contigo.

As citações se acavalam: "é a improvisação e as soluções a curto prazo a característica mais encontrada" (Sobre técnica no cinema brasileiro, Contracampo 39/40);

FM: Discordo disso. O cinema brasileiro é até formal demais.

RG: Mais uma vez questão de recorte. O cinema brasileiro pós-90, sim, é formal demais, atém-se demais ao roteiro, improvisa pouco e em geral faz filmes muito presos, às vezes quase mumificados. Mas lembre que o David Neves escreveu essas coisas entre os anos 60 e 80...

FM - TR: Limite é um filme formal, não? Mazzaropi é formal, os filmes da Vera Cruz, da Atlântida são formais, os discursos altamente elaborados e recitados em tom grandiloqüente dos filmes de Glauber são formais, as pornochanchadas dos anos 70 são formais com suas falas artificiais, seus personagens estereotipados. Sinto que o cinema brasileiro foi sempre muito construído, seja no texto, na interpretação ou mesmo em sua fotografia. Jorge Bodansky foge disso, o cinema marginal também escapa desta corrente, e claro que há outras exceções. Me identifico com este cinema mais espontâneo. Ensaiei CDD por um ano sem mostrar o roteiro aos atores, neste processo reescrevemos oito versões deste roteiro, sempre incorporando o que ia aparecendo, mesmo assim quase nunca os atores repetiam o mesmo texto ou as mesmas marcas em cena, nem entre um take e outro durante a filmagem (o que foi o inferno para o montador). Uma das poucas cenas contruídas, quando o Cabeleira tenta conquistar a Berenice enquanto ela lava louça, acabou ficando artificial perto do resto, é das piores sequências do filme na minha opinião, apesar do texto do Paulo ser ótimo e da interpretação ser muito boa. É porque ali dei marcas aos atores e havia um texto bem decorado, pois havia no texto uma “piada” com as palavras. A cena ficou formal e me incomoda. Parece outro filme.


"Em Nelson Pereira dos Santos fica mais ou menos estabelecido o que é linguagem padrão do cinema brasileiro", O cineasta brasileiro típico pouco medita, tem um processo mecânico de criação e sobretudo parece não ter eu interior. (Conclusão Estética, Contracampo 39/40); "De certa forma uma preguiça inicial o aproxima do problema", "O cinema direto no Brasil luta contra as maiores dificuldades a ponto de, tão entretido com elas não chegar sequer a teorizar sobre sua própria essência.

FM: Não sei se entendi bem isso, mas aí pode estar uma chave para a diferença entre este cinema ao qual ele se refere e CDD. A tal ruptura da tradição a que você se refere. Em CDD as questões técnicas ou as "dificuldades" eram a coisa menos importante. O foco todo era a atuação, os diálogos. Como filmar, eu e o Cesar combinamos numa mesa mas íamos decidindo mesmo na hora, não havia dificuldade, era apenas ir achando as opções que melhor nos entregassem o que queríamos. A "dificuldade" que nos ocupava era sempre em relação ao roteiro ou à interpretação.

RG: Porque o filme que vocês fizeram já estava todo na cabeça de vocês, era um problema já resolvido.

FM - TR: Na verdade, havia uma intenção clara, que era colocar o espectador naquele universo, mas como faríamos isso foi mesmo um aprendizado que o próprio processo nos mostrou. Mesmo depois do filme montado ainda refizemos as narrações umas cinco vezes. CDD não é obra de um gênio com uma visão, mas sim de um grupo de trabalhadores dedicados que com empenho foram lapidando-o a cada passo.

RG: Lembre que não é só de intenções claras que é feita uma ideologia, mas também (e às vezes principalmente) de todas as pressuposições técnicas e estéticas que se assimila naturalmente. Sua maneira de escrever esse último parágrafo faz supor que chegar em locação para filmar não alterou nada (ou alterou pouco) o filme que você imaginava fazer.

FM - TR: O que quis dizer é que o foco de nosso trabalho era sempre a história e a interpretação. Tudo girava em função disso. Nunca fizemos um plano porque era bonito ou esperto. Aliás, há poucos planos espertos ou virtuosos no filme e muitas vezes o Cesar desistia de um enquadramento dizendo “- não funciona, está muito bonito”.

RG: Nada contra, não sou advogado de nenhum verismo documental. Mas um cineasta realista jamais faria isso. E o cinema brasileiro, seja por uma “preguiça” de princípio (um interesse de se submeter ao real) ou mesmo como preguiça ou falta de talento (muitos cineastas menores são “realistas” porque é mais fácil), tem tradição nesse gênero de cinema. E quando eu digo que você trai essa tradição, quero dizê-lo, alto, em forma de elogio. Não tem nada menos parecido com essa tradição do que o cinema brasileiro dos anos 90, que é classicista e “careta”, mas por viver assombrado pelo fantasma do cinema novo não assume (ou não tem condições artísticas, isso é, talento) seu veio ficcional. Cidade de Deus assume, faz um thriller com um material “nosso” (as favelas), injeta cinema americano (Scorsese, Stone, os irmãos Scott, sim senhor, e nada contra), injeta ficção (crença) naquilo que nossos pruridos cinéfilo-cristãos julgavam como sagrado (a vida dos pobres brasileiros favelados). É um elogio, tá?

FM - TR: Eu fui fazendo comentários pontuais sobre nosso processo, mas entendo o que você quer dizer e concordo. Em CDD há sim uma postura menos ligada ao nosso cinema ou menos respeitosa com a vida dos pobres brasileiros. Menos respeitosa no bom sentido, quero crer.

O tema da preguiça que levantei com certa constância mais acima é importante para caracterizar um estado de espírito, uma inquietude e uma postura interrogativa a respeito de um novo e comunicativo veículo de informação." (A Descoberta da espontaneidade, Contracampo 39/40). A obsessão de David Neves com o problema pode espantar hoje, depois que passamos uma década inteira com um cinema brasileiro empolado, de produções caras (por vezes inexplicavelmente caras em relação ao público que conseguiram)

FM: Bem lembrado.

RG: Às vezes dizem que eu falo isso mais do que deveria. Acho que, em se tratando de dinheiro público, nunca podemos esquecer dessa responsabilidade, de que há filmes brasileiros que custaram R$2 milhões ao contribuinte e não foram vistos nem por 20 mil pessoas.

e logística razoavelmente difícil. Todavia, o questionamento de David Neves, realizador e crítico, ainda é possível hoje, e com resultados a retirar ainda bastante curiosos.

FM: Preciso entender esse negócio da preguiça melhor. Você concorda com isso, Ruy?

RG: Preguiça sim é um termo provocativo, mas que, ao menos para mim, está bem claro na argumentação do David Neves. Qualquer coisa, visite nossa edição especial sobre o trabalho de cineasta/crítico do David e leia os textos dos quais eu retirei as citações. Acho que a coisa vai ficar mais clara. Sobretudo o texto "A descoberta da espontaneidade”.

A primeira conclusão é a de que, confrontando essas passagens de David Neves com a produção contemporânea brasileira, a simplicidade e a "preguiça" ainda parecem importar muito na decisão do filme para permanecerem mortas como conceito. Ao menos um cineasta brasileiro decisivo, Eduardo Coutinho, estabeleceu um método definitivo baseado na simplicidade, nessa preguiça positiva que é ter delineadas de forma absolutamente simples a produção e a filmagem de seus projetos.

FM: Concordo. Eduardo Coutinho aprendeu a se ater ao que importa. Vai direto na veia. É um cinema lindo. Não chamaria de preguiça, mas de maturidade. Mas deve-se ressaltar que num documentário, onde as intenções do diretor estão mais abertas ao sabor do que vai acontecendo, é mais tranquilo ter esta concepção econômica. Aí sim pode-se tentar deixar a realidade "banhar o filme".

RG: Bom, então aqui você entendeu o princípio dessa “preguiça” (embora implique com a palavra ainda, natural... o que sempre me incomoda é o que cada um quer dizer quando fala tal ou tal palavra, não a palavra em si).

Mas com os outros também não é muito diferente: de Carlos Diegues, conhecido por sua pouca preocupação com os aspectos expressivos e com o estilo, até Carlos Reichenbach, que seria seu exato oposto no sentido da filmagem, passando pelos realizadores defilmes de grande orçamento (Sérgio Rezende, Paulo Thiago) e pelos realizadores de um cinema de natureza intimista (Tata Amaral, Walter Lima Jr.), nunca houve interesse em rebuscar a linguagem, em recorrer a figuras de linguagem parnasianas no processo de conceituação ou de realização dos filmes. O que existe é a forte concepção de clareza e praticidade: algo que pode ser filmado em um único plano não precisa ser filmado em dois, abandono de qualquer elemento expressivo que possa ser considerado rococó (quando esses elementos são colocados nos filmes, como a visita da mãe ao covil dos seqüestradores em Através da Janela ou nas paisagens brasileiras retrabalhadas via computador em Deus É Brasileiro, o grau de grotesco é constrangedor).

FM: Concordo que quando conseguimos ser simples e eficientes temos sequências de uma força expressiva impressionante. Mas o problema é que muitas vezes é sim necessário mais três ou quatro planos para fazer chegar ao espectador a intenção dramática de uma determinada cena - e, como estes planos não são feitos, muitas vezes a "clareza e praticidade" correm o risco de virar "pobreza e inexpressividade". É muito triste quando se percebe a intenção do diretor e constata-se que ela não chegou até a tela. Detesto quando me pego no cinema pensando: "Ah! O diretor quis me dizer isso... Acho que isso deveria ser um momento sensual...isso deveria ser um clima tenso...". Vira caricatura de filme. Vejo por trás de alguns filmes uma visão interessante do diretor, mas ao mesmo tempo uma falta de instrumental para fazê-la chegar ao espectador. E mais uma: Sinto que as paisagens retrabalhadas do Cacá estão dentro da tradição brasileira sim. São como os diálogos retrabalhados de muitos filmes, ou a tom de interpretação um pouco armada tão comum em nossos filmes.

RG: Concordo com tudo. Gênero, número, grau. Mais uma vez, escrevi o texto para elogiar, não para deplorar.

FM - TR: Ok. Não estou reclamando. Apenas comentando.

De certa forma, mesmo que lateralmente, com genialidades e competência, com talento e aplicabilidade diferenciadas, o cinema brasileiro, mesmo o atual, parece mesmo ser muito mais devedor do cinema de Nelson Pereira dos Santos do que, digamos, do cinema da Vera Cruz. Mesmo que impere hoje uma vontade de ser a segunda, o que se vê na tela não passa além de um primeiro malfeito (Como Nascem os Anjos, Central do Brasil), ou mesmo pessimamente feito (Mário, Lara)

FM: Não entendi. Central do Brasil gostaria de ser Vera Cruz? É isso? Em que sentido?

RG: Eu acredito que a intenção clara de Central do Brasil é ser Nelson e que a intenção escondida (e, por isso, mais forte) é ser Vera Cruz (fazer a realidade invadir a tela desde que não toque no dramático, no esquema ficcional. Nenhum problema com isso, mas vamos admitir e ter claro o que fazemos). Mas digo, e acho que com clareza: “primeiro malfeito” se refere à herança realista do Nelson.

Mas eis que em 2002 surge um filme bizarro: Cidade de Deus.

FM: Opa! Bizarro? Qualé, meu irmão?

RG: Você ficaria impressionado se visse a definição que o Caldas Aulete dá de “bizarro”: “de caráter nobre; generoso; liberal”, “bem apessoado, de estatura alta e esbelta”. A acepção mais comum hoje, “esquisito, estranho, extravagante” (conforme a Enciclopédia Larousse), foi a tencionada por mim. Há de convir que Cidade de Deus é, em termos de estética, qualidade técnica, relação com a tradição, produção, etc., um OVNI. Só pra deixar claro, acho isso ótimo.

FM - TR: Gostei do Caldas Aulette, mas devo concordar com a Larousse: É verdade que CDD trilha alguns caminhos pouco comuns no cinema brasileiro. Vamos em frente...

Ele vem para chocar meio mundo com uma história quase épica,contada em ritmo dinâmico, esquizofrênico,

FM: Aqui vou ficar um pouco na defensiva: CDD não vem para chocar, mas para revelar de algum modo uma parte de um mundo que desconhecemos. O filme é o anti-choque, chocante é a realidade das comunidades do Rio. CDD é dinâmico sim, pois conta muitas histórias em 2 horas, e não tinha jeito, mas discordo que seja esquizofrênico. O Bráulio, roteirista, eu e depois o Daniel Rezende, montador, fizemos um enorme esforço para que o espectador acompanhasse todas as histórias sem se perder. Há uma linha narrativa clara, apesar do grande número de personagens. Em qual momento você sentiu que o filme está indo por duas direções ao mesmo tempo, como sugere a palavra "esquizofrênico"?

RG: Bom, Fernando, acho que você tomou a expressão num sentido literal que eu não esperava dar a ela. Digo esquizofrênico querendo expressar o enorme acúmulo de informações, histórias, movimentos de câmera, etc. Acho que essa “esquizofrenia” está no conceito do filme, na forma que você queria dar a ele, certo?

FM - TR: Vou ser muito honesto contigo, Ruy, acho CDD mais “esquizofrênico” (à sua maneira) do que eu gostaria que fosse. Simplesmente a primeira montagem, que já era rápida, estava com quase 3 horas e tivemos que tirar 48 minutos. Primeiro cortamos sequências inteiras e finalmente, quando não havia nada mais a ser cortado, começamos a diminuir o tempo de cada take. Na minha versão ideal o filme teria 16 minutos a mais, mas com as mesmas cenas, só respirando um pouco mais. E, ainda sobre esta “esquizofrenia”, te dou uma notícia em primeira mão: Como a Globo vai exibir o filme no ano que vem, combinamos que vou remontá-lo com 3 horas e pouco e dividi-lo em quatro ou cinco episódios, como uma micro-série. Acho que vou gostar mais desta versão para TV do que a do cinema. Quanto mais a história chegar ao espectador melhor. Nas chamadas talvez eu use: “Assista ao esquizofrênico filme Cidade de Deus em sua nova versão: Arrastada!”

do conjunto habitacional transformado numa das favelas mais perigosas do Rio de Janeiro. Como todos sabem, houve uma série de controvérsias e debates acerca de inúmeros aspectos do filme: estetização da miséria, cosmética da fome, interpretação dos atores, falta de ética em relação ao retrato das comunidades ou dos personagens citados,

FM: Opa! Essa de falta de ética eu não soube. Quem disse isso? As famílias dos personagens citados aprovaram o roteiro, assinaram um contrato e receberam por isso.

RG: Não estou acusando, soube de ler no jornal. Entre outras coisas, a preocupação acerca da mãe do Mané Galinha, em texto da Alba Zaluar no Jornal do Brasil que dizia mais respeito à relação dela com o Paulo Lins, é verdade. Outra vez, não é acusação.

FM - TR: Está certo, lembrei. Mas só para esclarecer: A Alba Zaluar de fato andou dizendo que a produção não havia pago e nem pedido autorização às famílias dos personagens reais. Quando mostramos que tudo havia sido feito da maneira correta, ela apenas respondeu que este assunto não lhe interessava mais, e então apareceu com um camarada chamado Batata dizendo que o nosso Cenoura era inspirado nele, que precisaríamos pagá-lo. Nunca havia nem ouvido falar sobre este camarada, o Cenoura do filme não se parece nem com o do livro.

violência mostrada com gratuidade, tarantinização, etc.

FM: Vejo isso como uma leitura rasa e apressada do filme, Ruy. Há apenas duas imagens fortes em CDD e mesmo assim não-gratuitas: O sangue no pé de um garoto, por 28 fotogramas, e uma bala que entra no peito de um outro garoto cabeludo no final do filme, por uns 15 fotogramas. Fora estes 2 segundos, toda a violência está construída na cabeça do espectador. Há um estupro, mas não mostro, na sequência onde Filé com Fritas é obrigado a matar um garoto a câmera está escondida atrás de sua nuca, apenas ouvimos o que se passou, mesmo a guerra das duas quadrilhas, que seria a grande sequência de ação em qualquer filme americano, foi filmada no escuro, de longe, fora de foco e com uma narração por cima para não dar o gostinho de espetáculo para o espectador. Eu precisava mostrar que a guerra estava matando muitos garotos, mas os coloquei no escuro, mal se percebe. Tarantino adora pedaços de cérebro no vidro do carro, corpos ensanguentados agonizando por minutos intermináveis. É o espetáculo da violência, coisa que evitei de todas as maneiras. São intenções diametralmente opostas, portanto. Quem empacota os filmes do Tarantino e CDD num mesmo saco me parece preguiçoso ou cego. Estes caras deveriam pedir uma vaga na sessão de turfe ou qualquer outra coluna do jornal.

RG: Concordo com você, mas tive que elencar todos os tipos de crítica feitos ao filme. Que haja no seu filme uma certa estilização da violência, me parece ponto pacífico. Você tem que filmá-la e filma, uma coisa que me espantou muito na primeira vez que vi o filme era como um assassinato inacreditável dava lugar cinco minutos depois a piadas, situações hilárias, etc. Nisso, acredito, existe algo de Tarantino sim. Embora já houvesse antes, com Leone. E, da mesma forma, existe estetização da violência em Martin Scorsese. Não acho que você precisa ficar tão na defensiva acerca desse ponto.

FM - TR: Não estou na defensiva, apenas exponho meu entendimento e minhas intenções. Como seria violência sem estetização? Você já esteve numa favela do Rio, Ruy? É um lugar muito divertido, muitas pessoas batendo papo, uma vida social rica como não se vê no asfalto, é como a vida numa cidadezinha do interior, mas com música no mais alto volume e a rapaziada tirando onda. De repente, um tiro, alguns momentos de tensão, silêncio, às vezes correria. Pouco depois a vida vai voltando: Música, bate papo, tiração de onda... Isso não é Tarantino não, Ruy, isso é a vida nas comunidades do Rio. Não vamos ficar neste ping-pong, mas acredito mesmo que em CDD não haja imagens de violência estetizada. Reproduzi algumas fotos que saíram na imprensa para mostrar os meninos mortos na guerra, fora isso, as sequências mais duras do filme são muito simples, a força dramática está no encadeamento do roteiro e na interpretação. A violência em geral é construída na cabeça do espectador.

Mas e se o grande choque que a comunidade de críticos, cineastas e pesquisadores teve não foi majoritariamente com nenhum desses problemas? E se houve um outro fator contingencial, que diz mais respeito ao lugar que Cidade de Deus ocupa dentro do cinema brasileiro, às suas referências estéticas, à sua filiação artística? Talvez o maior choque em Cidade de Deus é que é um filme que definitivamente não aproveita nenhuma influência do cinema brasileiro.

FM: Discordo em parte. Para mim, o melhor filme brasileiro e o que me fez querer fazer cinema foi Iracema, Uma Transa Amazônica. Jorge Bodansky é um camarada meio esquecido em nossa cinematografia, mas é minha maior influência no Brasil. CDD tem muito em comum com seus filmes. Mas não vou me estender agora. Aliás, uma pergunta: Por que os críticos brasileiros se esquecem sempre deste sensacional cineasta?

RG: Bem lembrado. Não faço idéia.

É talvez o primeiro filme brasileiro de envergadura que não quer se arrogar nenhum lugar na tradição (a primeira coisa que fizeram tanto Walter Salles quanto a Conspiração, logo que foram notados como momentos importantes para o cinema brasileiro, foi começar a citar nomes de realizadores nacionais). Fernando Meirelles, por mais contraditórias que tenham sido suas colocações nas inúmeras publicações que o entrevistaram,

FM: Exijo exemplos desta contradição, meu caro!! Matou a cobra, agora mostra o pau! Mas falei tanto que devo ter dado uns foras mesmo. Me diga onde foi.

RG: "Se eu quisesse dar uma visão sociológica ou se quisesse explicar as razões externas daquilo ali, não seria mais este filme", "Eu queria fazer um filme muito didático, que explicasse aquele universo". Ambos os comentários estão na mesma entrevista, feita por Tata Amaral para a Revista Trópico. Não fiz um longo estudo, Fernando, só ia lendo os depoimentos e vendo como certas idéias encerravam contradições. Uma que guardo de cabeça refere-se ao fato de você ter feito um filme chamado Cidade de Deus e depois ter dito que “é só um filme”, quando Cidade de Deus, o bairro, é uma cidade com gente viva, vivendo, morrendo, enfrentando agruras de ser pobre no terceiro mundo, etc.

FM - TR: Foi mal. Mas também frases fora do contexto podem parecer qualquer coisa...

RG: Mas, enfim, se a gente ficar discutindo sobre essas contradições, a gente vai reabrir discussões que eu acredito já terem sido esgotadas nos jornais brasileiros, nos debates, nas mesas-redondas. O que eu acho justamente é que você quis justificar tudo bonitinho, não quis se fazer de demônio de ninguém. Agiu como um RP do seu próprio filme. O que, em certa medida, é até justificável, dada a imensa gama de reclamações. mas eu acho, de cabeça fria e de fora (posição em que você não pôde estar), que foi um erro estratégico.

FM - TR: Concordo contigo, Ruy, fui longe demais. O momento mais triste da minha vida nestes últimos anos foi num debate que aconteceu na sala Unibanco em São Paulo, onde me vi num banco dos réus, tendo que me justificar e quase me desculpar por ter feito CDD. No meio de uma fala percebi o absurdo da situação, parei de falar e fiquei muito deprimido. Não fui a mais nenhum debate depois disso.

jamais se considerou um filho do cinema brasileiro, jamais acreditou que seu filme dialogava esteticamente com qualquer filme já produzido no Brasil. Buscar a fonte do diálogo (cinema americano cínico, blablablá) é muito pouco interessante diante daquilo que vemos diante de nós. Num cinema completamente repleto de nepotismo e de aves raras que levam os filhos debaixo de sua asa - e aqueles que estão próximos e não têm pais tratam logo de ir para a asinha de alguém - Fernando Meirelles é o primeiro cineasta brasileiro em anos a dar de vista a se considerar um realizador órfão.

FM: Acho que falei bastante em entrevistas sobre Jorge Bodansky, sobre o Bressane ou o Sganzerla. Será que os críticos cariocas não os consideram cineastas brasileiros por não fazerem parte do Cinema Novo? O Cinema Novo tem importância inegável em nosso cinema, mas havia muitas coisas interessantes correndo à margem. Aquelas eram as minhas referências de cinema brasileiro.

RG: Não li essas menções. Mesmo assim, acho difícil que você me indique em que medida Cidade de Deus é um filme diferente graças a Bandido da Luz Vermelha ou Matou a Família e Foi ao Cinema. O Bodanski, o Bressane, o Sganzerla, nenhum deles quis fazer “cinemão”, confrontar-se com o cinema clássico hollywoodiano (o Sganzerla só quis na medida em que se confrontava com Welles, um repudiado dos estúdios). Você, sim. Outra vez, nenhum problema nisso.

FM - TR: Agora não estou na defensiva, Ruy, mas tenho dúvidas aqui: Eu não sei por que CDD parece “cinemão”. O filme não está apoiado em atores famosos, não tem a clássica trajetória do herói em 3 atos nem tem final moralizante, não usa sexo para prender o espectador, tecnicamente é menos que um filme do Candeias: foi rodado em 16mm, finalizado em vídeo, quase não usamos luz artificial e nenhum equipamento sofisticado para filmar, nem continuista tínhamos no set, para ela não nos aborrecer. Finalmente do ponto de vista da produção foi um financiamento totalmente independente onde corri 100% dos riscos e tive 100% de autonomia até o final. Uma por uma das caracteristicas do que entendo por “cinemão” não estão presentes aqui, Ruy, apenas o inesperado sucesso de público e a vontade de se comunicar com a audiência têm algo de hollywoodiano. Assim como os filmes de Sganzerla, CDD tem um repúdio pela grande eloquência, repare que não há diálogos “inteligentes”, não há construção de personagens pelos atores (eca!), não há planos virtuosos, a não ser um simples ligeirinho de 360 graus que rodava em torno do Buscapé. Este “efeito” de 30 reais a diária foi até comparado com Matrix, vê se pode... A espontaneidade, facilidade e inventividade das soluções dos filmes “marginais” são de fato inspiradoras para mim neste filme. Mas admito que CDD poderia estar em outra prateleira nas locadoras mas isso não vai acontecer porque as malditas locadoras resevam apenas uma prateleira lá no fundo para “Filme Nacional”... Mas você dizia que CDD é órfão...Vamos voltar a isso.

Mais órfão esteticamente - no sentido que seu filme não trava nenhuma linha de filiação dentro do cinema brasileiro

FM: Acho lindo a idéia de ser um ser independente, esta é a história da minha vida, mas a verdade é que o uso de atores não profissionais, filmar em locações reais, câmera na mão, tratamento naturalista, tudo isso que está em CDD está também muito presente no cinema brasileiro.

RG: Acho essa ressonância meramente pontual. A vontade de cinema que rege o filme é outra.

FM - TR: Entendo seu ponto de vista como um estudioso do cinema, mas o fato é que estas “ressonâncias meramente pontuais” são no fundo as decisões fundamentais para um diretor. Mas é interessante para mim ver onde se encaixa o filme no contexto da cinematografia brasileira, coisa que fiz muito pouco até agora. E você dizia que CDD só tem alguma relação com o cinema brasileiro em suas parcerias de produção...

do que na política de produção, já que na produção de Cidade de Deus houve acordos com as "famílias" (Videofilmes, Globo).

FM: Que acordos? Chama-se co-produção. Um negócio.

RG: Outra vez, não estou acusando ninguém.

FM - TR: E eu também não estou defendendo, apenas sendo rigoroso, Ruy. Vamos em frente.

E essa orfandade não deixou de ser notada.

FM: OK. Admito que me sinto um pouco como um cara que entrou sem crachá num clube muito fechado.

RG: Pô, até que enfim!

FM: O curioso é que os membros do clube têm me tratado muito bem e estou sendo bem aceito, enquanto os críticos, estes às vezes não perdoam este intruso "filho da propaganda com a televisão".

Tanto que a maior discussão que envolveu o filme - cosmética da fome contra estética da fome - foi aplicada tendo em mente como oposição o monumento-mór do cinema brasileiro ao qual, segundo uma certa concepção, todos devem pagar tributo: Glauber Rocha.

FM: Inegável o que este camarada provocou de movimento e estímulos em nosso cinema. Talvez o problema seja até o exagero desta influência, que às vezes nego por pura curtição, mas pode olhar com atenção que está em CDD também.

RG: Não vejo onde, mas você não tem nenhuma obrigação de se sentir influenciado por quem quer que seja.

FM - TR: Será que eu seria perdoado por isso?

RG: Ainda temos segmentos da crítica e da intelectualidade para quem as menções de nomes como Glauber Rocha e Paulo Emílio Salles Gomes devem vir acompanhadas de um “amém” que esses próprios camaradas recusariam terminantemente. Glauber Rocha é um culto pagão. Uma pena: sua memória seria muito melhor aproveitada se houvesse mais discussão e menos devoção a respeito desse gigantesco cineasta.

FM - TR: Concordo, já vi frases lançadas pelo Glauber, totalmente espontâneas e cheias de energia ou meras provocações, serem colhidas por estes estudiosos e santificadas entre aspas, onde se transformam em cânones ou dogmas e perdem toda sua energia. Os caras acabam sufocando o cineasta com seu amor e devoção. Você está certo, o próprio Glauber odiaria ver isso.

Curiosamente, Cidade de Deus se presta a essa discussão muito menos do que filmes que efetivamente dão uma imagem muito mais redentora da pobreza, como Central do Brasil, Abril Despedaçado, os filmes de Murilo Salles, Eu Tu Eles (em menor grau)...

FM: Concordo que CDD não é um irmão muito próximo destes projetos. A Ivana Bentes ficou famosa ao errar e empacotar todo mundo. Deu uma reduzida lascada. Mas já reviu.

RG: Isso é entre você e ela.

FM - TR: Estamos na boa de verdade, mas não resisti à piada...

Se todos esses podiam se ancorar de alguma forma na história do cinema brasileiro para se defenderem (Walter Salles nunca deixou de mencionar que era tributário de Nelson Pereira),

FM: O Walter Salles não só menciona o Nelson como apóia-o para que ele continue filmando. Aliás, Walter e o João são os camaradas mais generosos do nosso cinema. Eles investem nos filmes do Coutinho, mas nunca abrem a boca a esse respeito. O Nelson sempre lembra de agradecê-los.

Fernando Meirelles não pôde. E nem quis, ao que parece. Sem teto, ficou fácil o ataque aéreo. Cidade de Deus ainda não foi avaliado, muito menos analisado, como aquilo que é no atual momento do cinema brasileiro: um filme-OVNI, imprevisível e inesperado tanto em sua estética rococó,

FM: Rococó é a mãe. Caramba. O filme é tão básico, Ruy. Há pouquíssimos filmes brasileiros tão pouco formais quanto CDD. Em todos os níveis: Texto, interpretação, guarda-roupa, cenário, câmera, iluminação, maquiagem. Ele só tem uma montagem esperta. É isso. Acho que a turma vê mais do que há para ser visto.

RG: Pobre mãe. Ela não tem nada de rococó. E rococó não é xingamento, é um estilo artístico. Aleijadinho é rococó. Quem me salva, de novo, é a Larousse: “ornamentação abundante, sinuosa, assimétrica e luminosa”. Essa descrição tem mais a ver com a) Central do Brasil; b) Santo Forte; c) Vidas Secas; d) Fulaninha; e) Cidade de Deus?

FM - TR: F) Nenhuma das anteriores, Ruy.
Honestamente, acho que CDD não é nem barroco e nem rococó. Vejo-o como um filme despojado, porém rápido. Sua mãe também não é rococó, desculpe-me.

em sua montagem fragmentada, quanto em sua recepção, grande sucesso de bilheteria dos últimos 20 anos. Meirelles inverte a equação: para que filmar em apenas um plano o que quinze podem fazer melhor, dando mais sensação de vertigem e cativando mais meu espectador? Naturalmente, isso não desobriga o filme de todas as duras críticas que levou (e muitas das quais o redator destas linhas corrobora, como a tipificação, por exemplo),

FM: Opa! Não entendi a "tipificação".

RG: Sigamos Dadinho/Zé Pequeno do começo ao fim do filme, e só veremos como a maldade está incrustada em seu ser, desde moleque, sem razão aparente. É ele quem torna famosa a Cidade de Deus (ao matar por prazer os casais e funcionários do motel), quem organiza o tráfico e passa a protegê-lo com armas, etc. Você não vê problemas nisso?

mas é impossível de se perguntar: fosse o filme tão pouco herdeiro do cinema brasileiro e tão bem sucedido esteticamente, haveria tamanho bafafá para encontrar as mínimas inconsistências éticas e estéticas no filme? É muito mais fácil, contudo, atacar um órfão. E, sem a mínima intenção de vitimizar o cineasta - publicitário de carreira mais do que bem-sucedida,

FM: Sorry. Publicitário é o Washington Olivetto. Sou arquiteto, comecei no desenho animado, passei para a videoarte e depois gastei 10 anos da minha vida fazendo TV independente, fiz mais de 40 documentários curtinhos, muito programa de humor, Rá-Tim-Bum, Comédia da Vida Privada... Depois dos 32 é que entrei na publicidade para dirigir comerciais, mas eu era apenas um diretor de filmes de 30 segundos e não um publicitário. Até hoje ainda não entendo nada de publicidade. Também odeio videoclipe e fiz apenas um na vida, de graça, para um amigo. Ficou uma merda.

RG: OK, imprecisão minha. Ou questão de vocabulário.

ele sinceramente é a última pessoa da face da terra que caberia bem no quesito da vitimização (outra característica rara no cineasta brasileiro) -, cabe entretando ressaltar aqui a proveniência estética de Fernando Meirelles. E prospectar seu futuro dentro do cinema brasileiro. Será ele uma espécie de Luc Besson do cinema brasileiro?

FM:...que é um Almodóvar dos espanhóis, um Wong Kar-wai de Taiwan, o Sam Mendes dos ingleses, a Mira Nair dos indianos, o Ang Lee dos chineses, o Walter Salles do Brasil, o Kusturica, etc etc... Esses são cineastas que falam de seu país para um público internacional também. Não me desagrada este tipo de carreira, mas estou muito longe disso. E coloca longe aí.

RG: A questão era a de não ter medo do cinema americano como Luc Besson não tem.

FM - TR: Eu entendi, e nenhum destes outros aqui da minha lista tem este medo também…

RG: Aliás, nisso você não está sozinho. Temos Guel Arraes também. Juntos, vocês pegam temas nacionais e brincam esteticamente com eles utilizando procedimentos técnico-estéticos comuns em videoclip, videoarte, cinema americano, etc.

FM - TR: O Guel é outro cara muito mal compreeendido às vezes. Acho-o brilhante. Mas isso é outro assunto.

mesmo que realize filmes que vão do "bom, mas problemático"

FM: Apenas "bom" não existe a chance não? Me dá um crédito, Ruy.

RG: “Muito bom mas problemático” vai. Pobre Dadinho.

FM - TR: Ok. Eu ia deixar passar, mas vamos falar do Dadinho e da tipificação: Este foi o maior conflito meu e do Braulio Mantovani, roteirista, com o Paulo Lins. Na apresentação do Dadinho havia uma locução que dizia “Alguns já chegavam na CDD como se tivessem vocação para o crime...” O Paulo nos fez trocar a frase. Defendia que esta era uma concepção lombrosiana e que a perversão do Dadinho deveria ter alguma raiz justificável. Como só a pobreza não poderia justificar os requintes de crueldade do verdadeiro Zé Pequeno, resolvi ir conhecer sua mãe para encontrar a raiz de sua personalidade distorcida. Para minha surpresa, encontrei uma senhora muito esclaredida, numa casa muito em ordem com uma família estruturada. Sua filha estava lá também e é trabalhadora, tem uma vida regular. Perguntei-lhe como o Dadinho poderia ter saído daquele jeito e ela me disse que não entendia, que ele teve a mesma educação dos irmãos. Era o típico ovelha negra presente em muitas familias, pobres ou ricas. Esta figura do irmão errado é quase um arquétipo e era o caso do Zé Pequeno. O cara era cruel porque era cruel. Mantive-o assim no filme mesmo sabendo que iria levar chumbo de todo lado. E levei.

aos irregulares ou aos francamente sem talento, a simples figura do realizador periférico que dentro de seu próprio país tenta realizar um sistema que emula Hollywood (com dinheiro e iniciativa próprios, sem incentivos do estado, diga-se),

FM: Esse modelo de CDD não existe em nenhum lugar do mundo e nem eu pretendo repeti-lo. Entre o sistema de apoio do estado, como há em vários países, e Hollywood existe uma gama enorme de maneiras de financiar filmes, e me disponho a apresentá-los, se voce quiser entender. Passei um ano aprendendo e realmente posso te dar um panorama bastante amplo disso.

RG: Conforme queira, a Contracampo abre espaço e até te estimula para escrever um artigo sobre como você produziu Cidade de Deus e como pretende seguir produzindo seus filmes. Estimula, infelizmente, sem capital.

FM - TR: Ok quanto à falta de capital, mas interessa mesmo um artigo sobre financiamento nesta revista? Podemos combinar. Fico aberto.

mas dentro de si carrega um sonho de cinema nacional, mesmo diferente do cinema nacional que aí está (e que é também louvável, importante, bonito, etc.),

FM: Carrego mesmo. Assim como sempre quis fazer outra televisão no Brasil e outra publicidade...

RG: Não tenho dúvidas.

Fernando Meirelles já é, em termos de produção, a figura mais interessante do cinema brasileiro surgida em anos (talvez desde Luiz Carlos Barreto).

FM: Jorge Furtado vem aí, Aguarde!

A única, ao menos, que tenta fundar seu próprio cinema fora dos mecanismos e da política costumeiros (Lei do Audiovisual, reuniões com poderosos) e, talvez o mais decisivo, que tenta estabelecer outras bases para o audiovisual brasileiro, fora da televisão ou da regra da simplicidade (que por vezes pode ser um estorvo). Por hoje, Fernando Meirelles é um enigma. Cabe ao futuro, pois, desvendá-lo.

FM - TR:...ou esquecê-lo depois de assistir seu próximo filme...

Um abraço,
Ruy

Valeu,
Fernando.