Fragmentos do espelho de Alice


Kiyoshi Kurosawa

É de manhã. Num quarto de hospital, uma enfermeira vai e vem na tela, concentrada em seus afazeres profissionais. Ao fundo do plano, atrás de uma porta aberta, um rapaz está deitado, num outro quarto. Ele está naquela cama há vinte anos, vítima de um coma. Acompanhamos a atividade trivial da enfermeira, quando de repente, algo se move no fundo do plano. É o rapaz, ele se moveu. Ele se senta e, ao tentar se levantar, titubeia e cai, como se não soubesse mais caminhar.

Era na companhia de um amigo que eu assistia numa sala de cinema parisiense a essa cena inesperada, logo no início de License to Live de Kiyoshi Kurosawa. A surpresa desse corpo, supostamente inerte, movendo-se inesperadamente, a violência dos seus gestos desengonçados e da queda, rompendo a quietude da manhã – tal uma marionete cujos fios rompem-se inesperadamente – foram demais para meu amigo. Com a espontaneidade de uma criança, ele soltou um grito visceral: "Caralho!" Um "Caralho!" sonoro, do fundo da alma, profundamente carioca, para surpresa e escândalo da platéia daquele cinema de arte.

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O cinema de Kurosawa é antes de tudo um cinema do plano. O rigor do enquadramento, a força sugestiva das imagens, um gosto pela austeridade da composição, pela simplicidade quase geométrica, e sua duração no tempo, dão a cada plano uma grande densidade. Como observou um crítico da Cahiers du Cinéma, é uma arte da opacidade, da sugestão, em que cada plano é oferecido ao espectador como um enigma, um bloco a ser interpretado.

Interpretação: palavra-chave desse cinema, no qual o sentido não é dado – ele deve ser conquistado pelo espectador. Daí o desconforto no qual muitas vezes somos mergulhados. Nada é certo, nada é óbvio. O universo de Kurosawa é próximo ao nosso, mas é mergulhado na estranheza. Em Cure, cidadãos comuns assassinam sem razão. Em Charisma, todos lutam para proteger ou destruir uma misteriosa árvore acusada de destruir a floresta que a cerca. Kurosawa gosta de metáforas. Metáforas visuais, como a água derramada em Cure que se alastra pelo chão como a estranha pulsão de morte na mente dos homens. Metáforas narrativas, como em Charisma, espécie de conto alegórico.

Imagens por vezes quase oníricas, próximas do universo de um David Lynch, abrem as portas para o inconsciente. Um imenso celeiro abandonado, em meio a um campo deserto, o cadáver ressequido de um macaco torturado, uma árvore sem folhas, seca, alimentada por soro, como um doente. É preciso então se deixar levar, aceitar escorregar aos poucos num mundo próximo do nosso, porém misterioso ou ameaçador.

Quando a imagem nos remete a um mundo familiar, muitas vezes são os personagens que não se comportam como se esperaria. Em Charisma, a floresta é exclusivamente povoada por personagens imprevisíveis, cada qual habitado pela sua loucura individual. Em License to Live, o personagem principal não tem passado, age de forma estranha, deslocada.

É preciso se deixar perder. Cada filme é um mergulho no espelho de Alice.

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Diferentemente de Akira, com o qual não tem o menor parentesco, o cineasta Kiyoshi Kurosawa ainda é pouco conhecido fora do Japão. Dos mais de vinte filmes que dirigiu, apenas seus últimos cinco filmes foram exibidos no estrangeiro. Não é para menos: Kurosawa começou a carreira na indústria do filme de gênero: policiais, thrillers, eróticos. Filmes baratos, obedecendo a códigos estabelecidos, escritos, filmados e montados a toque de caixa. Do filme B, Kurosawa aprendeu a economia de linguagem, a eficiência. Um cinema aparentemente simples, onde muitas vezes a montagem se faz no plano. Porém, o enquadramento esmerado, o uso sutil da luz, a duração dos planos, o ritmo dos seus filmes, são próprios do cineasta.

Nessa escola do cinema popular, do filme de artesão, Kurosawa destoa, por tentar conciliar seu estranho universo com um cinema que não gosta de surpresas e muito menos de mistério. Cure, primeiro filme a sair do Japão, não deixa de ser um filme de gênero. Um misto de filme de serial killer com filme de horror (há algo próximo do universo dos vampiros, na maneira como o mal se propaga). A idéia central, aliás, foi de certa forma retomada no megasucesso The Ring, esvaziada, é claro, de qualquer conteúdo mais profundo, e reutilizada pelo próprio Kurosawa em Kairo, seu penúltimo filme, numa perspectiva mais filosófica. Ao visitarem um site da internet, jovens morrem e transformam-se em fantasmas. Mais do que a história, Kiyoshi Kurosawa interessa-se em descrever um mundo de pessoas sós, corpos cuja ausência de vitalidade já tratou de transformar em espectros. Insensivelmente, as pessoas desaparecem da tela, deixando um estranho rastro nos muros. Da mesma forma, os fantasmas surgem na imagem sorrateiramente, como se tivessem sempre estado nela. Aos poucos, a imagem vai sendo habitada pela presença do invisível e cada plano ganha uma densidade incomum.

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O gosto do cineasta por um cinema metafórico, quase alegórico, nem sempre dá os melhores resultados. É que o seu discurso por trás da alegoria por vezes carece de maior complexidade. Charisma é um filme capenga justamente por isso. Kurosawa é muito mais feliz quando não busca controlar o significado do seu filme. Ou melhor, quando luta contra esse significado, como em Cure ou License to Live. É desse embate entre um cinema de gênero, narrativo, e um cinema lacônico, onírico, que provém sua originalidade. Ao lembrar que cinema é, antes de mais nada, som e imagem, propõe novas pistas.

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Bright Future, o último filme de Kiyoshi Kurosawa, acaba de ser apresentado em Cannes.

Carim Azeddine