Fragmentos do espelho de Alice

Kiyoshi
Kurosawa
É de manhã. Num quarto de hospital,
uma enfermeira vai e vem na tela, concentrada em seus afazeres profissionais.
Ao fundo do plano, atrás de uma porta aberta, um rapaz está
deitado, num outro quarto. Ele está naquela cama há vinte
anos, vítima de um coma. Acompanhamos a atividade trivial da enfermeira,
quando de repente, algo se move no fundo do plano. É o rapaz, ele
se moveu. Ele se senta e, ao tentar se levantar, titubeia e cai, como
se não soubesse mais caminhar.
Era na companhia de um amigo que eu assistia
numa sala de cinema parisiense a essa cena inesperada, logo no início
de License to Live de Kiyoshi Kurosawa. A surpresa desse corpo,
supostamente inerte, movendo-se inesperadamente, a violência dos
seus gestos desengonçados e da queda, rompendo a quietude da manhã
– tal uma marionete cujos fios rompem-se inesperadamente – foram demais
para meu amigo. Com a espontaneidade de uma criança, ele soltou
um grito visceral: "Caralho!" Um "Caralho!" sonoro, do fundo da alma,
profundamente carioca, para surpresa e escândalo da platéia
daquele cinema de arte.
* * *
O cinema de Kurosawa é antes de tudo
um cinema do plano. O rigor do enquadramento, a força sugestiva
das imagens, um gosto pela austeridade da composição, pela
simplicidade quase geométrica, e sua duração no tempo,
dão a cada plano uma grande densidade. Como observou um crítico
da Cahiers du Cinéma, é uma arte da opacidade, da
sugestão, em que cada plano é oferecido ao espectador como
um enigma, um bloco a ser interpretado.
Interpretação: palavra-chave
desse cinema, no qual o sentido não é dado – ele deve ser
conquistado pelo espectador. Daí o desconforto no qual muitas vezes
somos mergulhados. Nada é certo, nada é óbvio. O
universo de Kurosawa é próximo ao nosso, mas é mergulhado
na estranheza. Em Cure, cidadãos comuns assassinam sem razão.
Em Charisma, todos lutam para proteger ou destruir uma misteriosa
árvore acusada de destruir a floresta que a cerca. Kurosawa gosta
de metáforas. Metáforas visuais, como a água derramada
em Cure que se alastra pelo chão como a estranha pulsão
de morte na mente dos homens. Metáforas narrativas, como em Charisma,
espécie de conto alegórico.
Imagens por vezes quase oníricas,
próximas do universo de um David Lynch, abrem as portas para o
inconsciente. Um imenso celeiro abandonado, em meio a um campo deserto,
o cadáver ressequido de um macaco torturado, uma árvore
sem folhas, seca, alimentada por soro, como um doente. É preciso
então se deixar levar, aceitar escorregar aos poucos num mundo
próximo do nosso, porém misterioso ou ameaçador.
Quando a imagem nos remete a um mundo familiar,
muitas vezes são os personagens que não se comportam como
se esperaria. Em Charisma, a floresta é exclusivamente povoada
por personagens imprevisíveis, cada qual habitado pela sua loucura
individual. Em License to Live, o personagem principal não
tem passado, age de forma estranha, deslocada.
É preciso se deixar perder. Cada filme
é um mergulho no espelho de Alice.
* * *
Diferentemente de Akira, com o qual não
tem o menor parentesco, o cineasta Kiyoshi Kurosawa ainda é pouco
conhecido fora do Japão. Dos mais de vinte filmes que dirigiu,
apenas seus últimos cinco filmes foram exibidos no estrangeiro.
Não é para menos: Kurosawa começou a carreira na
indústria do filme de gênero: policiais, thrillers, eróticos.
Filmes baratos, obedecendo a códigos estabelecidos, escritos, filmados
e montados a toque de caixa. Do filme B, Kurosawa aprendeu a economia
de linguagem, a eficiência. Um cinema aparentemente simples, onde
muitas vezes a montagem se faz no plano. Porém, o enquadramento
esmerado, o uso sutil da luz, a duração dos planos, o ritmo
dos seus filmes, são próprios do cineasta.
Nessa escola do cinema popular, do filme
de artesão, Kurosawa destoa, por tentar conciliar seu estranho
universo com um cinema que não gosta de surpresas e muito menos
de mistério. Cure, primeiro filme a sair do Japão,
não deixa de ser um filme de gênero. Um misto de filme de
serial killer com filme de horror (há algo próximo do universo
dos vampiros, na maneira como o mal se propaga). A idéia central,
aliás, foi de certa forma retomada no megasucesso The Ring,
esvaziada, é claro, de qualquer conteúdo mais profundo,
e reutilizada pelo próprio Kurosawa em Kairo, seu penúltimo
filme, numa perspectiva mais filosófica. Ao visitarem um site da
internet, jovens morrem e transformam-se em fantasmas. Mais do que a história,
Kiyoshi Kurosawa interessa-se em descrever um mundo de pessoas sós,
corpos cuja ausência de vitalidade já tratou de transformar
em espectros. Insensivelmente, as pessoas desaparecem da tela, deixando
um estranho rastro nos muros. Da mesma forma, os fantasmas surgem na imagem
sorrateiramente, como se tivessem sempre estado nela. Aos poucos, a imagem
vai sendo habitada pela presença do invisível e cada plano
ganha uma densidade incomum.
* * *
O gosto do cineasta por um cinema metafórico,
quase alegórico, nem sempre dá os melhores resultados. É
que o seu discurso por trás da alegoria por vezes carece de maior
complexidade. Charisma é um filme capenga justamente por
isso. Kurosawa é muito mais feliz quando não busca controlar
o significado do seu filme. Ou melhor, quando luta contra esse significado,
como em Cure ou License to Live. É desse embate entre
um cinema de gênero, narrativo, e um cinema lacônico, onírico,
que provém sua originalidade. Ao lembrar que cinema é, antes
de mais nada, som e imagem, propõe novas pistas.
* * *
Bright Future, o último filme
de Kiyoshi Kurosawa, acaba de ser apresentado em Cannes.
Carim Azeddine
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