A
política íntima de Karim Aïnouz


Emiliano
Queiroz e Lázaro Ramos em Madame Satã
de Karim Aïnouz
Já no lançamento
do primeiro (e, até agora, único) longa-metragem, Contracampo
achou em Karim Aïnouz um baluarte para lutar contra o bojo da produção
cinematográfica nacional. A chegada de Madame Satã
foi saudada com estrelas e mais estrelas no Festival do Rio, onde o filme
estreou no Brasil (depois da boa recepção em Cannes que
em geral só faz o crítico suspeitar mais da obra: a vaidade
de reconhecer um grande cineasta antes dos outros é uma doença
congênita de qualquer crítico que mereça essa atribuição),
depois ganhou entrevista e capa em novembro, chegando por fim em janeiro
a figurar entre os dez melhores filmes do ano. Na crítica e na
entrevista que se seguiu, os valores defendidos (contra grande parte do
cinema feito no país hoje, tanto os "comerciais" quanto
os "autorais") foram o da construção de um filme
a partir dos personagens, da confiança nos personagens e no respeito
de seus costumes para a criação de uma ficção
e, posteriormente, na decisão formal de fazer o enquadramento seguir
os atores e deixá-los naturalmente fluidos diante de nós.
Hoje, batalha ganha,
é hora de dilatar a percepção do cinema de Karim
Aïnouz. Se Madame Satã já não forçasse
essa necessidade de retomada da discussão, alguns de seus curtas,
Rifa-me (ainda não totalmente completo) e Paixão
Nacional o fariam. A visão desses pequenos filmes, o primeiro
circulando entre os vinte minutos e o segundo entre os dez, expande e
remodula algo facilmente perceptível em Madame Satã,
mas que em meio a tanta coisa que o filme trouxe a fulgurante descoberta
de Lázaro Ramos, a redescoberta de Marcélia Cartaxo, a veemência
do relato e a radicalidade do posicionamento social espelhando-se na veemência
dos partis-pris formais do filme acabou colocado em segundo
plano nas discussão sobre o filme (dentro e fora de Contracampo):
1. Onde surge o
político? Assistindo a Rifa-me, Paixão Nacional
ou Madame Satã, temos a impressão de que estamos
diante de momentos na vida dos personagens e nada mais. Rifa-me
filma momentos prosaicos na vida de uma mulher de Quixeramobim que decidiu,
para conseguir dinheiro e sair da cidade, rifar a si mesma por uma noite
no motel. poderíamos imaginar essa história filmada de várias
maneiras: o retrato miserabilista da mulher que encarna todas as contradições
de seu sexo (entre o sujeito e o objeto) e de sua sociedade (a prostituição
é o comércio por excelência e a o expurgo social)
(façon Cacá Diegues, Alex Viany) ou a tragicomédia
simpática explorando uma situação social limite à
Guel Arraes ou Andrucha Waddington. Aïnouz pega o desvio, e decide
filmar sua história como um "caso" social, o caso Rifa-me:
câmera distanciada, fixa, planos gerais, o filme escapa do sentimentalismo
subjetivo como da comédia de costumes, foge tanto do discurso decorado
do realismo socialista (cada personagem deve representar e estar subsumido
a sua classe) como da atribuição fácil da culpa (não
vem nenhuma voz over falar da foma, da miséria...). Se existe algum
gênero no qual os filmes de Aïnouz podem ser inseridos, ninguém
vai acreditar que seja no de "cinema político". Entretanto,
existe um componente político muito forte em cada filme de Karim
Aïnouz, mas nunca se está muito certo de onde ele surge. Certamente
não é no tema: é pelo olhar e pela relação
com aquilo que filma que Aïnouz faz nascer o político de suas
histórias que, aliás, são tão políticas
quanto quaisquer outras.
2. A política
nasce do íntimo. Naturalmente, Karim Aïnouz escolhe como
protagonistas de seus filmes personagens desviantes, aqueles que não
seguem os trilhos da moral e dos bons costumes embora seja bastante
imaginável um filme seu sobre o esfalfar da classe média
à maneira de Fassbinder, Chabrol ou Ana Carolina. Seus personagens
estão presos a situações íntimas insustentáveis.
Em Paixão Nacional, a narração pós-mortem
é de um homem que morreu de frio preso do lado de fora de um avião
tentando deixar o Brasil. Paralelamente, as lembranças desse homem:
o encontro com um francês com quem teve relações homossexuais,
o orgulho de nunca ter sido chamado de viado, o desejo de deixar o país.
Em contrapartida à visão desencantada do personagem, o filme
faz narrar o diário de viagem de um francês, encantado com
a sensualidade e as cores do habitantes do país. A "paixão"
do filme é usada nos dois lados da moeda: o encantamento de quem
está apaixonado e a dor de quem padece. Mas o curioso desse filme,
que não revela novidade nenhuma na temática (no cinema brasileiro
da década de 90 o que mais tem é filme sobre a relação
de amor e ódio com o país, Terra Estrangeira e Um
Céu de Estrelas encabeçando), é o propósito:
enquanto a personagem de Fernando Alves Pinto em Terra Estrangeira
tenta purgar o sentimento do país logo, ser a síntese
do pensamento do filme , Paixão Nacional mantém-se
entre as duas visões conflitante sem superação, negatividade
ou dialética: o Brasil é isso e aquilo, é
a tela preta de quem morreu tentando deixá-lo como a emoção
de quem acha aquilo um paraíso. O sentimento nacional é
um problema após o filme, não se termina nele.
3. O íntimo
engaja o político. E não nasce de uma tese a comprovar:
nasce, antes, de uma situação pessoal, de questões
individuais que engajam o resto da sociedade junto delas: o amor homossexual
e o desencanto com o país em Paixão Nacional, a prostituição
como único meio de sair de um lugar que não proporciona
a expressão em Rifa-me, a irreconciliável figura
de um malandro negro homossexual na primeira metade do século XX
em Madame Satã. Essa pequena mudança na estrutura
de construção do filme supõe uma grande mudança
conceitual na maneira de fazer filmes que toquem em problemas sociais
ou políticos. O que supõe também uma diferente maneira
de fazer ativismo político através do cinema. Tão
diferente que os mandarins da política velha nem se apercebem disso.
Não é mais a penalização das instâncias
do poder repressivo (O Caso dos Irmãos Naves) ou dos políticos
ou poderosos conservadores querendo manter as estruturas de poder (Os
Fuzis, A Queda) que se trata de filmar. Muito menos a necessidade
de educação e cidadania para a "construção
de um país" (frase de ressonâncias fascistas que povoa
o vocabulário de inúmeros quadros de nossa esquerda). Findas
de uma vez por todas as utopias milenaristas de esquerda (comunismo de
estado), cabe ao cinema ativista colocar em questão não
mais os figurões ou seus representantes, mas a própria sociedade
na medida em que ela não consegue conviver com seus cidadãos
desviantes. O ponto de partida não é mais abstrato como
uma ideologia (os ideólogos dirão que não há
nada mais concreto do que uma ideologia, o que de certa forma é
verdade também) ou um conteúdo programático que se
trata de ilustrar ficcionalmente, e sim a célula-base de construção
da sociedade: cada pessoa, na medida em que uma pessoa é uma multiplicidade
(de devires, de proposições, de cruzamentos com outras pessoas).
Madame Satã, tão exemplar do novo cinema político
quanto Rosetta, renova de forma inesperada com o antigo pensamento
que dizia ser político o mínimo gesto que fazemos diariamente,
cada decisão que tomamos diariamente.
4. A resistência.
E é sob a égide da resistência que Karim Aïnouz
enquadra (desenquadra seria um termo melhor, uma vez que ele próprio
subjuga o quadro de Madame Satã ao movimento e à
pele de seus atores) seus personagens. Morrer de frio nem que seja para
completar seu devir-viajante; ao menos nunca terá sido chamado
de viado, e isso já é uma vitória (Paixão
Nacional). Resistente a tudo, Madame Satã é a personagem
política por excelência: incapaz de encontrar algum lugar
social para dar expressão a seus atos tal como deseja, Satã
está pronto para desafiar qualquer instância moralizante
que o queira impedir de deslocar-se como bem quer: polícias, seguranças
de cassino, fregueses abusados ou machistas igualam-se nas posições
que ocupam: o funcionário da repressão está sub-repticiamente
presente em cada um de nós, nos risos, nos comentários jocosos
ou nas proibições formais. Madame Satã acertadamente
não faz nenhuma diferenciação: apela até para
as vias de fato (e nelas fará tradição) se só
através delas puder dar vazão à expressão
que define sua individualidade. Satã é como os galos em
rinha mostrados por instantes em Paixão Nacional: fronte em riste
para enfrentar todas as porradas e revidar na maneira do possível.
Tudo, até a morte, menos capitular.
Ruy
Gardnier
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