Jarmusch
e a busca de um outro olhar


Estranhos no Paraíso de Jim Jarmusch
Quando aquela geração de cineastas que despontava em fins dos
anos 50 e ao longo dos 60 começou a filmar, o cinema já possuía uma história
considerável, possuía grandes nomes e movimentos distintos, possuía convenções
de linguagem, estilos consagrados, enfim, havia alcançado a vida adulta
– e suas formas e conteúdos, portanto, já estavam na fase de reprodução.
Foi, sem dúvida alguma, um período de intensa experimentação e renovação.
Se diretores como Godard, Glauber Rocha, Antonioni
e Straub podiam já contar, para a sua formação, com um vasto repertório
de filmes vistos e leituras relacionadas a cinema (ao contrário dos pioneiros,
os quais ainda possuíam como principais referências estéticas o teatro,
a literatura, as artes plásticas, a música...), o que ocorrerá aos cineastas
que surgem nos anos 80 e 90 será um pouco diferente. Para esses últimos,
há o constante contato com o cinema, obviamente, mas há também a grande
influência da televisão, do computador, dos jogos eletrônicos e de tudo
mais que compõe o cardápio audiovisual contemporâneo. É uma geração para
a qual a televisão, longe de ser novidade, é um item doméstico obrigatório,
faz parte da casa tanto quanto a geladeira, ou melhor, tanto quanto as
janelas.
Jim Jarmusch é um dos principais representantes
desse cinema que ganha corpo no início dos anos 80. Seus filmes abrem
espaço para o universo híbrido e pluralizado da geração que almoça e janta
assistindo à televisão. O resultado de tantas possibilidades de entretenimento,
de tantos lugares a visitar, de tantos programas de TV, contudo, aparece
nitidamente como tédio e ausência de rumo. Um cinema pós-punk: não no
sentido de um bando de pessoas vestidas de preto e com o rosto pálido
repleto de melancolia, mas sim de um tédio neo-existencialista que se
apossa da juventude antes revoltada e ativista. Os personagens de Jarmusch
não se revoltam mais, mas também não querem se assumir como deprimidos
– simplesmente se entediam. Personagens que precisam superexcitar seus
nervos cansados, exaustos; precisam do brutal e do artificial – a sutileza
nada lhes fala ao coração constipado. Daí o tédio, aquele ar bocejante,
aquele olhar sempre desinteressado do mundo. Parece bastante sintomático
o surgimento de Joe Strummer (ex-integrante do The Clash) bêbado e resmungão
num bar de Memphis (aquela Memphis periférica e soturna de Trem Mistério)
em que negros jogam sinuca ao som de black music. “Que droga de
vida!”, ele fala com desencanto após ameaçar arrumar confusão e sair do
bar. Em seguida, num gesto de extrema banalidade, dará um tiro no balconista
de um mini-mercado, fato desencadeado pela indignação com a postura racista
do balconista, e provocará uma desastrosa noite no hotel (cujo recepcionista
é o cantor Jay Hawkins!) que abriga os personagens das três estórias de
Trem Mistério, filme satírico na mesma medida em que aponta sinais
claros de decadência e saturação na sociedade de consumo.
O protagonista de Ghost Dog, seu filme mais
recente, incorpora justamente a derrota de um olhar atento e fascinado
com o mundo. Em meio a uma tocaia, ele, que mata por encomenda, desliga-se
da missão e passa a observar um pica-pau através da mira do fuzil – cena,
como muitas outras do filme, reverberada pelo desenho animado a que um
mafioso assiste na TV (às vezes a cena do desenho antecipa um acontecimento
do filme, e a televisão como que passa a deter o destino dos personagens).
Ghost Dog, dono desse olhar, é um autêntico misantropo, o “estrangeiro
entre os homens” (cuja fórmula se propaga desde o Mersault de Camus).
É perfeitamente natural que ele morra ao fim do filme, para ratificar
a idéia (e a postura defendida por ele) de que não pertence a esse mundo
– para não deixar dúvida com relação a isso, baseia sua filosofia de vida
num livro de ensinamentos samurais do Japão medieval e se comunica com
seu contratante utilizando pombo correio.
Em Stranger than Paradise, de 1984, a inércia
e a pasmaceira imperam. Os amigos Willie e Eddie conversam no carro: “Vamos
à Flórida”, Willie sugere e Eddie, mesmo nunca tendo estado lá, responde
entusiasmado: “Sim, as praias de areia branca e mulheres de biquíni, o
cabo Canaveral, as aves raras, os flamingos!”. Ele conhece a Flórida à
distância, por intermédio de um Discovery Channel da vida. Nada mais próprio
de seu tempo.
Willie recebe a visita de Eva, sua prima húngara,
com hostilidade. A presença dela o incomoda por remeter à origem que ele
tenta negar. À medida que o tempo passa, no entanto, ele descobre nela
alguma coisa que lhe falta, alguma coisa que o faz querer sair do lugar,
quebrar a inércia. É por causa de Eva, a estrangeira, que Willie e Eddie
resolvem viajar. Quem vem de fora é sempre quem questiona os hábitos mais
típicos de uma cultura, ou seja, os modos de vida que parecem os mais
esquisitos aos olhos dos estrangeiros, mas que são os mais normais aos
olhos dos nativos. Eva, recém chegada da Hungria, estranha tanto o nome
quanto o aspecto da TV-food. Além de não se contentar com a explicação
(para o nome) de que as pessoas supostamente a consomem em frente à televisão,
ela questiona a procedência da carne. “Mas isso nem parece carne”, ela
diz. “E daí? É assim que comemos
nos EUA”, Willie retruca mal-humorado. Essa cultura já corre em seu metabolismo,
por isso ele não a analisa. É Eva quem o fará repensar sua vida na América,
sua pretensa perda da raiz húngara. Ao mesmo tempo, ela consegue arrumar
emprego e enxergar perfeitamente a possibilidade de montar uma vida naquele
país. O filme termina com Willie pegando um avião para a Hungria (de volta
à origem) e Eva permanecendo nos EUA, numa inversão do que se esperava
que acontecesse.
Stranger than Paradise (que perdeu a Palma de Ouro
em Cannes para Paris, Texas, outra visão estrangeira da América
– esta literalmente, pois dirigida pelo alemão Wim Wenders) é um filme
em que a câmera pouco se move, não se aproxima dos personagens, não ultrapassa
o plano médio. O static deadpan style de Jarmusch, como os próprios
americanos gostam de chamar. As cenas se esgotam em um só plano, quase
sempre começando com os personagens já em cena, já enquadrados – aprisionados
pela imagem. Um plano começa, se desenvolve e termina às expensas do plano
que o precedera, ou do que o sucederá. Todo o filme é feito de planos
autônomos, indiferenciados, intercalados por tela preta. Planos não hierarquizados
pelo roteiro, cada qual com a mesma importância (ou falta de importância),
sem clímax – à semelhança da vida sem sobressaltos e do espaço homogeneizado
percorrido pelos personagens. Uma espécie de cárcere imagético: não adianta
fugir do presídio (como em Down by Law), pois o mundo que se estende
para além dos limites da cela não rompe com a monotonia. São os bordos
do próprio quadro que encarceram os personagens; mal se tem notícia do
espaço-fora-da-tela. Tudo perde a consistência, as estradas rodeadas por
paisagens naturais se tornam uma mesmice insuportável, um deserto sem
histórias. Willie e Eddie reclamam dessa monotonia, dizem que parecem
não ter saído do mesmo lugar. A anterior exposição permanente às imagens
lhes criou uma sensação de lacuna; todo espaço desprovido de imagens é
encarado como ausência (quando na verdade é a imagem quem se refere a
algo ausente).
As construções de beira de estrada em Stranger than Paradise
parecem demasiadamente ingênuas, feitas de retalhos, com nomes engraçados.
Lanchonetes, gift shops, placas, hotéis – tudo como que nascido
por acidente, improvisando nomes e instalações. O Velho Oeste descrito
por Jim Jarmusch em Dead Man é também uma colcha de retalhos, um
mórbido amontoado de instalações “sem arquitetura” habitado pela escória
da humanidade: uma civilização encontrada no lixo e colocada para funcionar
com pilhas gastas: Iggy Pop maltrapilho lendo um trecho da Bíblia em voz
alta; o matador profissional dormindo abraçado a um ursinho de pelúcia;
o índio chamado Ninguém citando versos do poeta William Blake, cujo nome
será emprestado ao personagem de Johnny Depp, um personagem inédito (no
figurino, nas fala, nas atitudes) em qualquer faroeste.
Os canais se cruzam, misturam-se. O mafioso italiano
de Ghost Dog ouve Public Enemy e é fã de Flavor Flav. Ghost Dog
lê livros sobre o Japão medieval. O estrangeiro interessado na cultura
local de que tanto foge o personagem dela nascido. E todos vivem na América,
essa América de Jarmusch: o palco do artificial por excelência, dos estrangeirismos
domesticados, dos ícones da cultura de massa, do enlatado, da junk
culture. Quando o casal japonês da primeira parte de Trem Mistério
está para abandonar o hotel, a menina ouve um tiro e fica alarmada. “Relaxa”,
diz o namorado, “estamos na América”. Assim como o William Blake de Dead
Man acha uma arma sob o travesseiro da amante e ouve a justificativa
dela: “Estamos na América, não?”. Mas a terra das ficções resolvidas à
bala é mostrada sem encanto, ou melhor, destituída do antigo encanto.
Paradigmas do cinema americano clássico são desrespeitados (no bom sentido):
a máfia ridicularizada em Ghost Dog, o western B em Dead
Man, o road-movie errante em Down by Law e Stranger
than Paradise, a desconstrução da narrativa clássica no formato episódico
de Trem Mistério e Night on Earth (e neste último filme,
aliás, a personagem de Winona Ryder recusa uma proposta de ser atriz em
Hollywood com o maior descaso, como se aquilo não valesse nada). A mitologia
que encantara multidões mundo afora já não funciona dentro do próprio
nascedouro – os clichês secaram a fonte. Somente os estrangeiros são capazes
de ainda tentar compreender essa mitologia, de vibrar, refletir ou se
divertir com ela. E Jarmusch se faz de estrangeiro para interpelar o imaginário
americano sem renegá-lo, apenas injetando sangue novo para desobstruir
as artérias entupidas por fast-food. É preciso um olhar de fora,
um olhar ainda não contaminado pela repetição tediosa dos signos dessa
cultura clicherizada (no que a TV desempenhou um papel maçante).
Jarmusch é o cineasta que busca esse olhar diferenciado e sabe
utilizar a cultura pop como ingrediente de obras tremendamente criativas
e cativantes. O cineasta que se diz influenciado tanto pela ficção pós-estruturalismo
quanto pelo cinema japonês de mestres como Ozu e Mizoguchi, que dialoga
com o filme B, com o pastelão italiano (Roberto Benigni foi seu ator mais
de uma vez), com nomes da música também distantes do mainstream
(dirigiu videoclipes para Talking Heads, Big Audio Dynamite, Neil Young,
Tom Waits, além de utilizar alguns deles como atores), que não ignorou
o formato curta-metragem mesmo depois de ter conseguido fazer longas (há
a série de curtas intitulada Coffee and Cigarettes), que incorpora
o desenho animado e a história em quadrinhos (vide Ghost Dog),
que é capaz de estabelecer enormes pontes culturais, como ao amalgamar
em Forest Whitaker o rap e o jidai-geki (Ghost Dog novamente).
Baluarte da “primeira geração” dos indies
americanos, Jim Jarmusch fez cinema independente de verdade: rodou Stranger
than Paradise aos poucos, com recursos mínimos, deslocado do esquema
de indústria (hoje em dia todo grande estúdio que se preza tem seu braço
“independente” bem desenvolvido e atento a jovens diretores). Sem ser
englobado pelo esquema hollywoodiano (como aconteceu a Soderbergh e tantos
outros que começaram independentes), ele realiza filmes espaçadamente,
com intervalos que chegam a durar alguns anos, às vezes com financiamento
de estrangeiros que querem ver seu trabalho – o que muitos americanos
talvez não queiram. Filmes que são sempre aguardados – e geralmente aplaudidos
pela crítica, valendo lembrar que Ghost Dog esteve na lista de
melhores de 1999 dos Cahiers du Cinéma.
Referência básica para muitos cineastas, desde Tom
Dicillo, que fez a fotografia de Stranger than Paradise (de Down
by Law em diante Robby Müller será o fotógrafo oficial de Jarmusch)
até o finlandês Mika Kaurismaki, que cita Dead Man constantemente
na comédia Absolutamente Los Angeles, Jim Jarmusch permanece reticente
com relação a trabalhos futuros, mas há rumores de que estaria preparando
algo ainda para 2003. Esperemos que tais rumores sejam verdadeiros.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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