Olivier Assayas


Maggie Cheung em Irma Vep de Olivier Assayas

Impossível refletir sobre a carreira cinematográfica de Olivier Assayas sem levar em conta sua passagem pelos Cahiers du Cinéma, onde escreveu artigos durante cinco anos (1980-1985), no período em que Serge Daney comandava a redação e ampliava o foco da revista (passada a fome de política e teoria dos anos 60 e 70, os Cahiers se abriam de vez para o cinema "popular" e outras coisas mais). Dentre os escritos principais de Assayas nesse período, estão os elogios a cineastas de predileção (Bergman, Bresson, Tarkovski) e as observações atentas acerca tanto das mudanças que o cinema mainstream sofria a partir dos novos efeitos especiais quanto das propostas de vanguarda. Após realizar alguns curtas e trabalhar nos roteiros de dois filmes de André Techiné, Olivier Assayas estréia na direção de um longa em 1986, com Désordre.

Ao contrário do que se pode pensar, ele não separa em momento algum duas fases em sua carreira (uma como crítico/pensador/teórico e outra como realizador): da mesma forma que Godard (também um ex-redator de Cahiers) revelou numa entrevista que sua primeira crítica publicada tinha sido tão importante quanto seu primeiro filme, Assayas enxerga o pensar e o fazer cinematográficos como uma coisa só, indivisível e auto-modificadora. "Pensar sobre um assunto pode, em si, ser um fim", Assayas afirma e, com isso, esclarece sua postura perante o cinema como processo hiper-abrangente e ultrapensado, esteja ele no papel ou já impresso em película.

O filme em que ele explicitamente exprime suas visões sobre o cinema é Irma Vep. Nesse filme, de 1996, são colocados em pauta o cinema francês contemporâneo, o cinema de ação de Hollywood e o de Hong-Kong (e as conclusões perniciosas que algumas pessoas extraem desse cinema), o cinema engajado, a vanguarda estilística, a posição do cinéma d’auteur face à ditadura do mercado, o caos e as reviravoltas de um set de filmagem, a produção de um filme em meio a turbulências e dissidências (e como, mesmo sob essas condições, a obra de arte pode ser concluída e considerada enquanto tal independentemente do – desconhecido pelo público – processo), enfim, tudo que diz respeito ao universo-cinema é buscado pelo diretor em sua incursão pela metalinguagem. Como ele próprio define, Irma Vep é "um retrato espontâneo da confusão do presente, um Polaroid dos dias de hoje". De fato, a espontaneidade marca muitos momentos do filme (no que recebe auxílio da opção de Assayas por planos longos, liberando os atores para progredir e improvisar dentro da cena sem a interferência do corte), com os franceses embromando um inglês altamente macarrônico para se comunicar com Maggie Cheung, a atriz que chega de Hong-Kong para protagonizar o remake do filme mudo anteriormente rodado por Louis Feuillade.

São confrontadas diferentes texturas e diferentes abordagens do cinema. Um dos filmes dentro do filme mostrado em Irma Vep é Class Struggle, de Chris Marker, precisamente na cena em que aparece o seguinte escrito na parede: "O cinema não é uma magia, é uma técnica e uma ciência, uma técnica nascida de uma ciência e de uma vontade: a vontade dos trabalhadores de se libertarem". Essa não é exatamente a definição da visão de cinema apresentada pelo filme de Assayas, mas antes um ingrediente da dialética mostrada pelo mesmo. Há, de um lado, essa visão marcada pela luta de classes e pelo marxismo, mas há também o "cinema fábrica de ilusão" que encantou René (Jean-Pierre Léaud), personagem que dirige o tal remake em Irma Vep, e o levou a contratar a atriz que viu num filme de Hong-Kong.

Se Feuillade considerava seus filmes "fatias da vida" representando "pessoas e coisas como elas são e não como elas gostariam de ser", o Irma Vep de Assayas mostra René imerso em crise artística e existencial justamente por não materializar suas vontades. O filme, à medida que vai sendo rodado, não lhe agrada. "São apenas imagens sobre imagens, não significam nada", desabafa René sob efeito de tranqüilizantes, depois de um surto que rendeu polícia e escândalo. O que ocorre aos demais personagens de Irma Vep não é tão diferente: retalhos de vidas confusas, em muitos momentos frustradas.

Os personagens de Irma Vep, assim como os de Água Fria ou qualquer outro filme de Assayas, estão em dificuldade de adaptação – a uma ordem, a um modo de produção, a uma cultura, a uma época. São pessoas com uma história de vida singular precisando se adequar a um sistema de relações uniformizado – e este, para Assayas, é o principal paradoxo que move o homem civilizado. As mudanças por que passou o homem, em especial aquelas do século XX, são indubitavelmente focos de atenção privilegiados por ele. Mudanças que abrangem várias esferas e que se fazem sentir não só nos modos de produção, mas também nos costumes e nos gostos individuais. Ao realizar um filme de época, como Les Destinées Sentimentales, ele não ignora o extenso filão subterrâneo de instintos e interditos que a historiografia oficial cada vez menos consegue esconder.

Les Destinées Sentimentales trata de uma mudança muito importante na história recente: o filme relata o início do século XX como o fim de uma inocência própria do romantismo oitocentista e o advento de uma era caracterizada pelo conflito. A Primeira Guerra Mundial e as primeiras crises do capitalismo surgem ao longo do filme e pontuam o fim da belle époque, das valsas alegres em salões nobres e luxuosos. "O que o mundo de hoje está perdendo é o amor", Jean Barnery, protagonista do filme, lamenta. Barnery é herdeiro de uma imensa fábrica de porcelana cujos produtos fornecem o gancho para a demonstração do arts-and-crafts do início do século XX (a burguesia se envaidecendo de seus objetos de decoração e de seus utensílios e ornando-os com o máximo de detalhes e babados) – Assayas fez um vasto estudo de época antes de realizar o filme.

A cena em que o choque de gerações e os sinais de mudança dos tempos melhor se caracterizam em Les Destinées Sentimentales é a da discussão entre Barnery (conservador) e seu filho (influenciado pelo socialismo revolucionário). É também uma conversa entre pai e filho que deflagrará o conflito de gerações em Água Fria: um comentário feito pelo pai sobre a pintura de Caravaggio reproduzida num livro introduz a distância existente entre ele e seu filho. O simples comentário do pai e a simples resposta (um discreto resmungo) do filho deixam transparente o quão pouco se entendem ou se comunicam.

Água Fria é um belíssimo filme ambientado em 1972 e no qual poesia e lirismo se fundem às cores gélidas trabalhadas pela fotografia (excelente trabalho de Denis Lenoir) e à trilha sonora ora agressiva outrora macia (um verso da canção de Janis Joplin ["Me and my Bobby McGee"] que embala os créditos finais, aliás, diz muito sobre o filme: "Freedom is just another word for nothing left to lose"). Em Águia Fria fica clara a (anteriormente já declarada) fascinação de Assayas por O Espelho, de Andrei Tarkovski. Os planos-seqüência em que lentos travellings descrevem imagens densas e estruturadas à maneira de um fragmento de memória (com destaque para a presença da água e do fogo) lembram em muito o referido filme de Tarkovski. Assim como O Espelho, Água Fria possui cenas que merecem ser vistas e revistas incessantemente.

A coerência final da personagem de Virginie Ledoyen em Água Fria (resumida numa cena indescritivelmente bela) corresponde à coerência de Assayas como cineasta de posições firmes tanto na política (entenda-se aqui uma comunhão de discurso e prática que se desenvolve em campos diversos, incluindo, obviamente, o cinema – basta citar sua afirmação de que "trabalhar com a indústria cinematográfica tal como ela é representa um tipo de atitude colaboracionista") quanto nas opções estéticas de seus filmes.

Um cineasta bastante interessado em seu tempo, e que vê as mudanças com receio mas sem perder a curiosidade e o fascínio, oscilando entre um retrato do momento tal qual ele se apresenta (Irma Vep, Une Nouvelle Vie, Demonlover) e uma busca, num passado recente, das possíveis origens desse momento (Água Fria, Les Destinées Sentimentales).

É uma pena que seus filmes não cheguem aos cinemas no Brasil, ficando restritos à TV a cabo, que vez ou outra exibe algo desse que é um dos principais nomes do cinema francês contemporâneo.

Luiz Carlos Oliveira Jr.