Garotas Selvagens, de John McNaughton

Wild Things, EUA, 1998


Neve Campbell e Denise Richards em Garotas Selvagens, de John McNaughton

John McNaughton segue uma carreira irregular. Começado nos filmes de baixo orçamento, do qual tirou uma pérola (Henry) e, tendo sido logo catapultado à condição de herói do cinema de baixo orçamento, pode dirigir um filme mais caro, com Uma Thurman, Bill Murray e Robert DeNiro (Uma Mulher Para Dois). Depois do fracasso público do filme, figuram dois filmes de paródia exploit, Nas Teias do Crime e Garotas Selvagens. Se há algo em comum atrás de tão disparatada obra (confusão de gêneros, descontinuidade de estética, orçamento e estilo de produção), está na perturbação moral sempre derivada dos dispositivos de mise-en-scène elaborados por John McNaughton para cada filme. Realismo cru para filmar um psicopata, algo entre a comédia e o drama para filmar a luta de dois homens por uma mulher, ou a gratuidade e o sensacionalismo de encenação para filmar duas histórias de assassinato, amor e poder. Dir-se-ia, no papel, que tamanho saco de gatos não cativa nenhum interesse; na tela, entretanto, McNaughton revela-se um dos cineastas de sua geração que mais vale a pena acompanhar.

Visto segundo a ótica do filme de perseguição gato-e-rato com infinitos pontos de virada de roteiros virtuosos à Robert Towne e David Mamet, Garotas Selvagens decepciona. A história de um professor e duas alunas que tentam, sob uma falsa acusação de estupro, arrancar dinheiro da milionária mãe de uma delas, perde logo verossimilhança e passa a cansar, uma vez que esse tipo de filme já não é mais novidade para muita gente (a julgar pelo tedioso e previsível O Assalto, de David Mamet, esse subgênero de suspense está fadado ao esquecimento). Mas, filmado em modo exploit para fazer sabotar o suspense e implodir qualquer imprevisibilidade (é filmado com um descuido que dá gosto), e visto como realmente é, um teatrinho em que todos lutam pelo dinheiro, um questionamento dos valores capitalistas como fins em si mesmos, Garotas Selvagens assume toda sua graça. O filme faz parte de uma tradição nada negligenciável, como Tropas Estelares e Showgirls (ambos de Paul Verhoeven, com quem McNaughton partilha mais de uma ou outra característica): filmes que assumidamente decidem ser trash para fazer paródia dos filmes americanos do mesmo gênero, só que acentuando o grau de crítica social. Resta dizer que, ainda como pano de fundo, Garotas Selvagens ainda remete a Greed de Stroheim e a O Tesouro de Sierra Madre de John Huston, só pra mencionar dois clássicos sobre a sede de dinheiro, a desconfiança, etc.

Olhado pelo aspecto da paródia, Garotas Selvagens assume outra dimensão: John McNaughton se revela um smuggler ("contrabandista", expressão de Scorsese para cineastas que conseguem fazer obra pessoal escondida num produto pensado unicamente para servir de produto comercial) de mão cheia quando decide parodiar esse gênero de ficção de manipulações e viradas de roteiro: as especificações técnicas e os efeitos de prestidigitação do roteiro deixam o primeiro plano para dar lugar a um cenário de horrores em que professor engana aluno, filha engana mãe, amiga engana amiga, policial engana seus companheiros, aliado engana aliado, e, por fim, aquele que fica com o dinheiro só é revelado após o fim do filme, já nos créditos (o filme talvez renderia mais se terminasse à Carpenter e Fulci, sempre com um elemento da cadeia puxando novamente a desconfiança).

Resta a pesquisar, contudo, a direção de John McNaughton. Como se trasheia o próprio filme? Podemos recorrer, para isso, à definição que Serge Daney dá do telefilme: a atuação de cada ator já expõe pra nós de maneira clara e definitiva tudo aquilo que deveríamos intuir de forma mais sutil, de modo que o ator já encerra em si, por seu modo de atuar mais "cru" e óbvio, todas as significações do filme. Essa mesma definição cabe, aqui, ao filme trash: o trash opera nem tanto uma ridicularização do que está sendo encenado ou um saber-fazer porco da parte do diretor e de sua equipe, mas uma simplificação grosseira daquilo que em outros filmes (e a referência ao universo do cinema é fundamental para qualquer produção trash, um filme trash é per se um filme referencial) aparece cheio de sutilezas e nuances. Obviamente, John McNaughton, que não vê sutileza ou nuance na corrida ao ouro à americana, ajusta o dispositivo trash a seu filme e faz uma obra adorável, sociológica e palatável no melhor sentido dos filmes mais bobinhos de Chabrol (é Negócios à Parte que vem imediatamente à cabeça). E já que grande parte da significação desse cinema vem dos atores – mas, ao contrário do comentário de Daney, os atores não são nem a força definidora nem os responsáveis pela maior parte da simplificação: cenários, direção, o próprio roteiro convergem todos juntos nesse esforço –, nada mais justo do que prestar a justa homenagem a Denise Richards, espécie de Brooke Shields trash presente tanto neste filme quanto em Tropas Estelares, outra paródia trash. Ela está totalmente em casa no filme, a uns cinco corpos de vantagem de um Matt Dillon evidentemente deslocado (mesmo que o filme tire vantagem de sua má atuação) e de uma Neve Campbell ainda saída de Pânico, de um naturalismo que não ajuda o filme. John McNaughton, quanto a seu trabalho, faz tudo o que deve: não tem pudores de filmar os corpos com pouca roupa de suas atrizes, nem de saber usar a grosseria para atingir os fins que precisa. Ao contrário de grande parte dos realizadores brasileiros, acostumados demais a água perrier para entender o sentido estético forte da grosseria, John McNaughton seria um perfeito encenador de Nélson Rodrigues e Plínio Marcos. Já alguns de nossos ralizadores deveriam somente encenar Miguel Fallabela.

Ruy Gardnier