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O cinema de Wim Wenders chega aos EUA e encontra um espaço amplo, com planícies a perder de vista, paisagens semidesérticas que cedem sua face lisa à projeção de miragens. Ele não vai a Nova York, não quer se deparar com arranha-céus, mas sim com as cidades de baixa estatura, na horizontal, intercaladas aqui e ali por vácuos de civilização por isso vai ao Texas, vai a Los Angeles. Os grandes planos gerais de Paris, Texas revelam uma paisagem monótona, com quarteirões uniformizados e pouquíssimos prédios, ou sem quarteirões e sem prédios, a terra se unindo ao céu num horizonte que mergulha na profundidade de campo. Quem preenche o espaço retratado por Wenders é menos a tridimensionalidade das construções de cimento, ferro, madeira etc do que a superfície plana de telas, painéis, outdoors, letreiros luminosos. Visto de longe, esse espaço até parece bidimensional, a aparente ausência de fisicalidade faz com que se assemelhe a uma ilustração achatada, como uma pintura panorâmica. Não à toa a aparição da bandeira americana em Paris, Texas é mediada pelas lentes do binóculo de Travis, o protagonista do filme. Wim Wenders enxerga um país submerso em imagens (motivo de fascinação e ao mesmo tempo melancolia), caminhando para a transparência total de seus materiais, daí a recorrência de planos em que a câmera está atrás de vidros, ou a repetição de situações que envolvem televisões, fotografias, vídeos, monitores, dispositivos ópticos em geral (o que culmina no panoptismo de O Fim da Violência). As imagens erguidas em meio à aridez do sudoeste norte-americano colorem a monotonia dos cenários de Paris, Texas, de hectares secos e repetitivos, estradas intermináveis, moradias iguais, bares iguais no fundo são mesmo as imagens sua paisagem mais sedutora. Numa das cenas mais interessantes do filme, um homem repleto de desencanto profere um discurso revoltado e apocalíptico do alto de uma ponte, um autêntico pregador no deserto. O sol ainda ameaça sua chegada, a névoa e o limbo incerto da alvorada momento em que, como Italo Calvino descreve no romance O Cavaleiro Inexistente, somente um halo recobre as cores e objetos e temos menos certeza da existência do mundo corroboram o contorno quase surreal da cena, como uma miragem no deserto (sendo que esta não é provocada pela sede nem pela vista ofuscada de quem anda há dias sob o sol, mas simplesmente por uma propensão natural daquela terra às ficções). Ao fim dessa cena (que consiste num único e belo plano em que a câmera faz um carrinho lateral acompanhando Travis, enquanto ouvimos a pregação em off, até que ele passe pelo homem revoltado e siga em frente), um corte seco e o dia instalado por completo, o sol já forte. A câmera está do outro lado, não mais em cima da ponte, e sim de frente para ela, para mostrar que no exato local onde aquele homem fazia seu discurso há um enorme outdoor (com a foto de uma linda modelo) sendo substituído por outro: o fluxo incessante de imagens corresponde à velocidade dos carros que cruzam a estrada logo abaixo. Os filmes de Wenders se passam no mundo da velocidade, do TGV de O Amigo Americano, dos aviões que nos permitem cruzar o globo terrestre em algumas horas, do espaço contraído pelos novos meios de comunicação e de transporte rápido. São filmes cosmopolitas, transnacionais, poliglotas. E as estradas da América, identificadas por número ao invés de nome, fazem jus precisamente a essa lógica pragmática, de renovação permanente. Nada de homenagens às personalidades históricas, aos homens do passado. Uma terra sempre à procura do novo. O espaço "vazio" dos filmes americanos de Wim Wenders é como uma tela em branco à espera da tinta, ou uma página em branco à espera de estórias. Na falta de História, contam-se estórias e estas realmente não titubeiam, surgem aos borbotões, contadas por Hollywood, por Hammett, por Highsmith (autora do best seller que inspirou O Amigo Americano). Ripley (Denis Hopper), o "amigo americano" do pacato alemão (interpretado por Bruno Ganz) que trabalha com molduras de quadros e mora em Hamburgo, aparece na vida deste último para emprestar-lhe ação, armas, assassinatos, dinheiro, explosão, mentiras cinema! Os próprios americanos parecem ter tomado consciência disso muito cedo, construindo o painel de Hollywood no alto de uma colina, a maior fábrica de imagens/ilusões do mundo; e construindo Las Vegas em meio ao nada, numa bifurcação de desertos, para habitá-la com imagens, luzes, luxo, narrativas mirabolantes de personagens que ganham e perdem fortunas numa só noite (o que foi Steven Soderbergh, e não Wim Wenders, quem transpôs recentemente para o cinema, com o excelente Onze Homens e um Segredo). Mas, de tão amplos, os tais espaços "vazios" carecem de locais acolhedores, originam a legião de órfãos e párias que se abrigam nO Hotel de Um Milhão de Dólares. O contrapeso da fascinação pela cultura desenfreada das imagens é o excesso de individualismo. "A solidão povoada", diriam alguns teóricos do mundo de hoje. Há uma melancolia que corre paralela ao entusiasmo de Wenders com esse universo de mitos em constante rotação. Para ele não existe a América propriamente dita; existe um amontoado de imagens e sonhos de consumo (que são de todas as nações e não só dos americanos) condensados num gigantesco holograma em forma de país.
Paris, Texas (cuja fotografia de Robby Müller, aliás, é belíssima, com estrondosos elogios à cor do crepúsculo local) começa com Travis, um homem fraco e desmemoriado, vagando errantemente pelo deserto. Ele está de volta, após quatro anos afastado de tudo e de todos, mas a desidratação da jornada subtraiu-lhe a fala e a lembrança, que começa a recuperar quando o irmão é contatado e vai a seu encontro. O filme todo é de retorno e de tensão entre o "realizado" e o "por realizar" (ou a falta do que realizar), do reencontro com o filho, com a mulher, com o passado de paixões e atitudes extremas que deixou para trás. A reconstrução desse passado, como não poderia deixar de ser, efetua-se por intermédio de imagens: as memórias registradas em super-8, o álbum de fotografias. E é também ao construir uma "imagem de pai" para si, mudando suas roupas e seus costumes, que Travis conquista a companhia do filho de oito anos. Até a relação que surge então com o filho, que está ali e não é imagem, parece tirada de uma ficção: falam por um walkie-talkie usando termos de filme de ação policial, simulam, escolhem seus papéis num imaginário de aventuras. O epicentro da catarse do filme, o encontro de Travis com sua mulher Jane (Nastassja Kinski), ocorre numa cabine de peep-show (ela passou a trabalhar como strip-teaser), onde ela é objeto do olhar, observada sem saber quem a observa, pois há um vidro espelhado entre ela o cliente. Ali, ela é também imagem a ser consumida, fetichizada. Travis fala com sua mulher, contando a história deles dois, utilizando a terceira pessoa para referir-se a si mesmo. É um filme sobre a dificuldade de falar em primeira pessoa, e de falar diretamente: além de ficar por trás do vidro e de usar o interfone da cabine de peep-show para explicar a Jane as conclusões a que chegou, Travis deixa uma gravação de voz para o filho, onde esclarece por que não podem ficar juntos. Um mundo em que as pessoas resolvem suas questões afetivas mais relevantes por telefones, por gravações, pela televisão. A reeducação sentimental mediatizada. Paris, Texas, O Fim da Violência e O Hotel de Um Milhão de Dólares, assim como sexo, mentiras e videotape, são filmes absolutamente castos. Nesse espaço preenchido por imagens e projeções, até o sexo parece deslocado, fora de local e de propósito. As cenas de sexo são engolfadas pelas elipses narrativas, consumam-se fora da tela. Mesmo na cena passada em uma casa de shows eróticos, o assunto é desviado e Jane não chega a tirar a roupa, pois o cliente (que ela ainda não sabe que é Travis) só foi à cabine para falar e ser ouvido. Em O Fim da Violência, filme que retoma algumas discussões anteriores (relativas aos mecanismos de vigilância, à sociedade de controle, à primazia do olhar), o protagonista também necessita re-configurar o seu "eu". Mike Max é um produtor de filmes de ação que, como afirma o personagem de um jovem policial, são bastante realistas, parecem mostrar crimes verdadeiros ocorrendo na tela. Ele mora numa mansão paradisíaca à beira-mar, rodeada pela mais privilegiada vista, mas volta seu olhar somente para o microcomputador, fala o tempo todo ao celular, enfim, um homem das interfaces. Quando é seqüestrado e quase morto por dois homens misteriosos e depois é encontrado por um grupo de jardineiros mexicanos que o acolhe em sua casa (o estrangeiro é quem oferece abrigo e ensina a ver o que está à volta), descobre novo sentido para a vida, faz as pazes com a natureza, com a simplicidade. Ele não quer voltar a ser o Max famoso produtor de cinema, agora quer ser o jardineiro anônimo. A busca da identidade e da concreção na América das ficções e dos dublês. Há uma mensagem otimista ao final do filme, um otimismo sussurrado melancolicamente e não berrado triunfalmente. Ouvimos a voz de Mike Max remodelar o que ele havia dito antes (que "não existem inimigos nem alienígenas, somente um mundo estranho"), e ele afirma: "quando olho para o oceano agora não vejo inimigos ou alienígenas, mas vejo a China, e espero que eles nos vejam" (um elogio direto à contração do espaço, ao oceano de imagens que conecta povos e nações embora seja uma conexão passível de muitas falhas). É preciso que o sujeito do olhar passe à condição de estrangeiro para que o mundo deixe de ser estranho e revele seu encanto. Como o cineasta alemão na América. A obra de Wim Wenders e aí não entram só os filmes feitos nos Estados Unidos é também de retorno, de visita a monumentos sagrados do cinema clássico. Na revitalização de construções e imagens antigas através do olhar (é reanimar pela contemplação, e não pela manipulação), ele busca o contraste com o mundo contemporâneo, além de tentar aferir o grau de atualidade dessas obras, de permanência ativa no mundo, não como museu ou arquivo poeirento, mas como fonte de inspiração e, quem sabe, renovação. É assim em Tokyo-ga, Nicks Movie, O Céu de Lisboa, O Estado das Coisas (feito em preto e branco e começando com a filmagem do remake de uma ficção científica dos anos 50, a cena sendo rodada em noite americana). O Hotel de Um Milhão de Dólares é um filme noir na mesma medida de Hammett. A diferença é que a matriz fulleriana-hustoniana cedeu lugar aos anseios e à iconografia da "geração MTV" por mais que o termo seja um tanto simplório, ele não é inteiramente vazio, resta-lhe um significado ainda que frouxo. (A bem da verdade, a cena inaugural de O Hotel de Um Milhão de Dólares poderia perfeitamente ser um clipe do U2, ou até um comercial da Nike.) Em O Hotel de Um Milhão de Dólares, Wim Wenders demonstra que a pergunta feita no início de Asas do Desejo ("Será a vida debaixo do sol nada mais que um sonho?") continua norteando sua obra. Tom Tom, o protagonista desse seu filme mais recente, vem na contramão de Asas do Desejo: é o humano que descobre encantamento pelo mundo enquanto cai do alto de um prédio, rumo ao chão, rumo ao fim, e olha a vida acontecendo colorida e reluzente como sempre pelas janelas dos apartamentos (e o filme progressivamente lhe confere um ar angelical), ao contrário do anjo que observa a vida de cima, aprecia sua beleza sem conhecer suas cores e decide se tornar um humano em Asas do Desejo. "Tanta beleza, tanto amor, tantas televisões", Tom Tom pensa enquanto cai. Num só golpe, o deslumbramento e a queda. Não é espantoso que o argumento de O Hotel de Um Milhão de Dólares tenha partido de uma idéia de Bono, vocalista do U2. Fora o fato de que ele já vinha participando das trilhas sonoras de filmes anteriores de Wim Wenders, ambos compartilham uma mesma visão da América, e uma mesma e ambígua admiração por essa terra onde conforme diz a canção "Where the streets have no name" o amor ainda está sendo construído e depois incendiado. Luiz Carlos Oliveira Jr. |
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