Cinema de super-heróis:
as metáforas da potência e da conduta



"Um Super-Homem em conflito": capa de edição de 2003

Cinema e identificação. Cinema e adoração. Cinema e conduta. Desde o início da década de 10, o cinema industrial norte-americano ensaiava aquilo que seria o eixo da vida cinematográfica do século XX: o espelhamento público-personagem. Do dinamismo industrial de produção aos dispositivos narrativos inventados naquelas terras californianas, o sistema de estrelas, star system, talvez tenha sido o mais difundido e poderoso artifício. Se os sucessos pontuais de narrativas caracterizavam a força daquela indústria de dramas fotografados, foi apenas com a criação do lugar das "estrelas" que se tornou possível o fortalecimento de uma verdadeira rede de significação. O aprofundamento psicológico dos arquétipos traduziu-se também na expansão da dramaturgia para a vida extra-tela: gerando a primeira geração de ídolos de carne e osso. Essa nova relação personagem-ator, vinha fortalecer a necessidade de uma maior diversificação das narrativas e dar-lhes matizes morais mais nuançadas (essencial para a expansão do público). É importante lembrar que grande parte das chamadas pin-ups e vedetes do início do século (belas jovens que encarnavam personagens em fotografias e filmes) se utilizavam de nomes falsos e tinham sua vida privada negada a observação da imprensa, ou seja: eram anônimas. Essa falta de identidade individual das atrizes e atores de cinema, por algum tempo, foi identificada como fator central para intensificar a crença do espectador nas histórias narradas, visto que aquelas pessoas projetadas serviam mais como carcaças as quais os personagens vestiam, e não o contrário.

Nesse sistema de massificação cultural primária, a figura da identidade do ator era esmagada pela uniformização de atitudes e gestos, em torno de um limitadíssimo arsenal, arquitetado sobre um cinema de exemplos morais, inscrita sobre os ideais de conduta de tipos uniformizados. Nesse primeiro momento, a subjetividade, a presença do sujeito-ator ainda era vista como uma ameaça, pois sua vida "real" estaria sempre exposta a se desviar dos exemplos de conduta que caracterizam o pulso daquele cinema: Como poderia o público se espelhar numa heroína, caso conhecesse a personalidade da atriz e esta se desviasse do discurso da imagem? Por muitos anos, os atores hollywoodianos foram suprimidos de seus créditos: Nick Carter, Zorro e Tarzan foram alguns dos primeiros heróis a terem feito sucesso no cinema. E suas imagens de homens fortes os levaram a bater recordes no recebimento de cartas de fãs apaixonadas (esclareço: não os atores, mas os personagens...).

Foi nos últimos anos da década de 1910 (mais especificamente 1919), que começaram a surgir os primeiros exemplares claros da dialética ator-papel que caracterizaria a "estrela de cinema" clássica hollywoodiana – onde o ator passava a ser o protagonista que veste a roupagem do personagem, e não mais o inverso. Filmes em que os nomes dos atores figuravam finalmente de forma destacada nos cartazes, como referências centrais para o pacto filme-público.

Essa invenção do lugar da estrela cinematográfica como referencial de idolatria, constituída em torno da personalidade do ator, foi também articulada com a necessidade de uma maior variabilidade de personagens (fruto do aumento de produção). Multiplicam-se os tipos, a partir de modelos psicológicos que ultrapassavam a mera narrativa de ação, em papéis que se articulavam com a própria identidade midiática do elenco (Mary Pickford, a "noivinha do mundo"). Estrelas dos mais diferentes tipos começam a ser importadas pela indústria norte-americana (de latinlovers a mulheres fatais italianas), e sua diversidade agora era usada para expandir, e não mais ameaçar, a identificação de diferentes públicos com as personagens. Os heróis atléticos e acrobáticos e os corpos femininos sem nome cedem espaço (ao longo das duas décadas seguintes) ao novo modelo do "estrelato" e do aprofundamento de arquétipos.

Cada vez mais raro na cinematografia adulta, o cinema de "heróis mascarados" e acrobáticos passa por um processo de lenta migração, que vai infantilizando sua narrativa e hipertrofiando suas características sobre-humanas. O que antes era um dispositivo comum a toda a cinematografia hollywoodiana, ganha matizes carregadas e se torna um sub-gênero de super-aventuras. Heróis hiperbólicos, rotinizados em suas habilidades extra-humanas, caracterizados com uniformes militares/circenses, tornavam-se um novo e poderoso nicho de criação audiovisual. É curioso notar como, enquanto a grande invenção hollywoodiana do estrelato se espalhava pelas cinematografias do mundo, esse outro modelo antiquado do herói-mascarado e de "atitudes extremas" acabaria por se tornar (em algumas décadas) um dos sub-gêneros mais específicos do cinema e da TV norte-americana: não mais inspirado nos romances europeus de capa-e-espada, mas na literatura massificada ianque das histórias em quadrinhos. Nasciam os "filmes de super-heróis".

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O surgimento do Super-Homem (1938) marcava o início de uma longa tradição e abria um leque de criação em voga até os dias de hoje. O personagem do homem-de-aço reunia na verdade todas as características superlativas que seriam depois decalcadas e variabilizadas na criação de diversos outros heróis – resumindo-se, assim, como depositário maior do imaginário da potência e da responsabilidade norte-americana diante do mundo – (na verdade, dando um gás no já tradicional gênero das HQs de aventura). Não tardou para que uma versão animada do herói chegasse as telas do cinema, numa série de pequenos filmes dirigida por Dave Fleischer em 1941 (até hoje o melhor desenho animado produzido sobre o herói). Nessa primeira aparição cinematográfica, Super-homem aparecia enfrentando majoritariamente desafios de teor militarista-catastrófico, numa luta contra os Nazistas, em que a resistência norte-americana era representada no corpo maciço do herói voador.

Quando Batman foi criado, em 1939, ficou claro que esse novo modelo de heróis fantasiados não estaria restrito as HQs de aventura e ação. Foi na Detective Comics que o morcego levou às histórias de espionagem e investigação, a porção mitológica e o modelo de alter-ego secreto, que seriam então multiplicadas na década seguinte. Entre o modelo do Super-Homem (que reunia toda a potência possível e o desafio de conduzi-la em si mesmo) e o de Batman (que nenhum poder especial tinha, a não ser a vontade de vingança e justiça), é que se estabeleceram todos os outros super-heróis, dosando mais ou menos essas características do Poder e da Vontade. Ao longo da Segunda-Guerra mundial e até o início da década de 50, os super-heróis viverão sua primeira fase de ouro – capitaneados também pelos filmes seriados do cinema: Superman e Atom Man vs. Superman e Batman & Robin.

O período de bonança pós-guerra, marcou o cancelamento de praticamente todas as revistas em quadrinhos de super-heróis, o que também significou um recuo nas produções de cinema (que perderam espaço para as produções de Terror e Alienígenas). Durante pouco mais de 10 anos, nenhum "filme de super-heróis", ou mesmo desenho animado para a TV, foi produzido; e apenas em meados de década de 60 esse quadro começou a mudar.

Era o início da fase mais tensa da Guerra Fria e (juntamente com o sentimento dos EUA como defensor da liberdade mundial) as histórias em quadrinhos de Alienígenas e Terror eram processadas e censuradas como uma ameaça ao senso de patriotismo norte-americano (não eram raras as histórias em que os alienígenas saíam vitoriosos ou em que a Terra era dizimada por forças externas...). No lugar do Terror, as figuras dos herói positivos e mascarados eram também renovadas pela necessidade de uma maior "humanização" de seus atos; fazendo de sua diversidade um símbolo da liberdade defendida pelo olhar norte-americano diante da monotonia "desumanizada" da ameaça comunista:

O fato de cada herói trazer seu próprio uniforme e suas habilidades específicas sublinhavam a marca de sua diversidade e o surgimento das primeiras equipes de heróis (da "família modelo" do Quarteto Fantástico à "união militarista" dos Vingadores). Essa diversificação e multiplicação vinha estabelecer diretamente um diálogo com os modelos de civilização-livre norte-americana e seus ideais de conduta. Onde a polifonia de gestos encontraria sua a "expressão comum" na luta pela liberdade e a justiça. Surge daí o conceito de "universo Marvel" ou "universo DC" – marcando o fim dos heróis protagonistas de histórias desconexas e indiferentes entre si, e caracterizando uma verdadeira rede de significações (alter-ego crônico do mundo real e espelho hipertrofiado do mesmo).

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Interpretados por diferentes atores ao longo das décadas, atemporais em suas vestimentas carnavalescas, os super-heróis atravessam os anos se adaptando as formas de sua representação – característica provinda dos quadrinhos: onde diferentes artistas emprestam seus traços para um personagem eternizado. Até hoje, apesar de todo o frenesi do estrelato, os filmes de super-heróis são alguns dos poucos exemplares em que é o personagem quem parece vestir a carcaça do ator (fenômeno comum também nos filmes religiosos).

Essa característica universalista e atemporal, diria ahistórica, vem fortalecer seu caráter de referencial de conduta (o que nos remete a universalidade da Constituição Norte-Americana), adaptável diante dos diferentes males e dilemas conjunturais. O que esse ou aquele herói faria numa situação como essa? Assim como há um Santo para cada milagre, para cada dilema, parece haver um super-herói.

Numa cultura essencialmente iconoclasta até o início do século XIX, com sua base política erigida sobre os ideais protestantes da liberdade individual e a negação da idolatria, a figura dos super-heróis vem se inscrever num refluxo das iconografias. Como os santos católicos, banidos do protestantismo, os super-heróis são marcados pela presença de um uniforme característico, uma capacidade específica e uma origem anedótica sofrida. Ao contrário dessa filiação aparente, ou das recorrentes comparações com as narrativas mitológicas gregas, é na tradição de deuses guerreiros das culturas nórdicas, que os super-heróis encontram sua fonte mais característica.

Nem semi-deuses gregos (em que as ações são fruto da própria essência desses entes e as intrigas familiares são centrais), nem santos católicos (em que os atos são fruto da opção moral e da energia advinda da iluminação externa), os super-heróis são a expressão moderna da força e da coragem dos filhos de Odin. Mesclando atos de conduta moral com a força intrínseca de seus poderes, suas atitudes são, ao mesmo tempo, frutos imanentes de seus super-poderes, mas também gestos de posição moral quanto ao uso correto de sua força extra-humana: "Para grandes poderes, grandes responsabilidades" – Homem Aranha. Em Thor e em Loki (os deuses escandinavos, que não por acaso, tornaram-se personagens de HQ), estão todas as características centrais da dupla herói-vilão.

Em Thor está o homem poderoso, guerreiro incansável, que defende a paz no mundo dos deuses através da força e vive eternamente na defesa da ordem para os homens justos; em Loki está o estereótipo da vilania covarde, meticulosa e silenciosa, homem frágil que se utiliza de artifícios para enganar os outros deuses e alcançar vantagens. Na dupla Thor-Loki está a fonte básica da relação herói-arquiinimigo – em que, ao mesmo tempo em que há o embate, há também a relação de intimidade e identificação entre os mesmos: eram os melhores amigos. Thor defende a ordem, Loki a desordem – Thor lança-se ao perigo, Loki se esconde nas sombras. Thor usa de seus super-poderes e seu cinto mágico para lutar em defesa dos homens, Loki tem em sua astúcia e na pregação de "peças" seu grande poder. Thor costuma ferir humanos por engano, tendo sempre que se policiar sobre suas grandes capacidades; Loki dedica a sua vida a criar a discórdia entre deuses e homens. É interessante notar que a identidade dos deuses e heróis são traçados a partir de seus atos concretos e de suas habilidades pragmáticas: onde somente aqueles mortos em combate (labuta) tem lugar no reino dos deuses...

Batman vs. Coringa, Super-Homem vs. Luthor, Demolidor vs. Rei do Crime, Homem-Aranha vs. Duende Verde reproduzem com impressionante simetria a relação de profunda identificação, e o embate entre o poder e a conduta, originários nas inúmeras narrativas de aventura em que Thor e Loki eram retratados. Ao contrário da versão amoral dos heróis gregos, sempre centrados em problemáticas internas e em desafios entre-deuses, Thor é o primeiro exemplar de um deus/herói que se propõe a policiar o mundo: indo atrás de agressores dos humanos, defendendo-os dos monstros, derrotando aqueles que representavam perigo à vida pacata dos homens justos. Enquanto os deuses gregos eram aqueles empenhados em suas lutas por poder sobre a polis (Olimpo), Thor é a imagem do guerreiro livre que cavalga pelo mundo defendendo a luz (trovão) diante das ameaças das trevas. Um mundo onde a morada dos deuses aparece como um espaço limitado e ilhado, cercado pelas ameaças do grande mar e de seus monstros (o que nos remete à tradição norte-americana da "ameaça externa" e à política paranóica-militarista de certos segmentos de sua sociedade).

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Dessa referência mitológica às práticas políticas modernas, a cultura norte-americana se funda sobre o mito da autonomia do sujeito, dos poderes de transformação ("não pergunte o que seu país pode fazer por você, mas o que você pode fazer por seu país") e traz seus traços hiperbólicos na figura dos super-heróis e de suas condutas boas e más. É importante ressaltar que a característica dos supervilões nunca é retratada como fruto de uma natureza outra, mas sempre como modulação distorcida do poder individual – é preciso cuidar de seus próprios atos para que não nos percamos de nossa missão sobre a terra. Daí o embate entre heróis e vilões se caracterizar em metáfora maior dos dilemas do sujeito – onde as ações de um são o avesso das do outro, mas, por isso mesmo, tornam-se, por vezes, semelhantes. O que os diferencia seria antes uma opção moral, um desejo de conduta, do que uma natureza outra. Diferente dos beatos católicos, em que a iluminação lhes é dada, os super-heróis aparecem como os cronistas de um processo infinito de busca da liberdade através do trabalho e das práticas cotidianas – revelada na dieta pragmática de seus dias: os fins de bondade (fixos), justificam os meios e poderes (variáveis).

Essa estrutura de adaptabilidade (marca central de uma certa política imperial norte-americana) parece ser o que faz dos super-heróis figuras recorrentes em momentos de crise, em que os modos de agir diante de novos desafios estão postos em cheque. Em sua capacidade de destruir o mundo por força de sua vontade ou de protegê-lo de si mesmo, está a base do caráter educativo da tradição infanto-juvenil das HQs.

Num momento em que o mundo se coloca diante de uma nova ordem mundial centralizada, é de se esperar que os super-heróis retomem a energia narrativa da época de ouro da Guerra Fria e tentem se configurar diante dos grandes dilemas contemporâneos. ("Os personagens de HQ existem apenas para viverem intensamente" – Fresnault-Deruelle, in O Espaço Interpessoal nos comics – Semiologia da representação).

Ao contrário, porém, dos momentos anteriores, duas grandes diferenças são observáveis hoje: pela primeira vez o inimigo não tem cara fixa e uniformizada (são civis...) e pela primeira vez os EUA estão postos em hegemonia solitária diante do mundo. O desejo pela ameaça, porém, traço dos guerreiros, parece ser indispensável para uma cultura mantida sobre a constante reafirmação de seu poderio.

Depois de terem passado os últimos 15 anos em crise profunda, as HQs de super-heróis reacendem seu interesse público e cinematográfico, voltando a ser referência central para a celebração ou questionamento interno da potência ianque. Estão programados mais filmes de super-heróis para os anos entre 2000-2005 do que os realizados entre 1985-2000: Hulk, Batman, Homem-Aranha, X-Men, e até mesmo Super-Homem são alguns dos super-heróis com filmes em produção. Se o Homem-Aranha de Raimi aparece sendo defendido pelos cidadãos de Nova Iorque ("Se você mexe com um de nós, mexe com todos nós"), outros heróis levantam a expectativa de que tipo de patriotismo será possível.

Ang Lee, diretor chinês que já utilizou as HQs como referência para um olhar-crítico sobre o modo de vida norte-americano (Tempestade de Gelo), promete fazer em Hulk "uma tragédia sobre a condição do sujeito contemporâneo" (leia-se ianque) e talvez guarde surpresas interessantes. Com estréia em breve por aqui, X-Men 2 mostra os heróis em combate contra um general norte-americano que se lança ao "combate preventivo" à ameaça mutante. E o novo e esperado filme de Super-Homem, se inspirado pelos quadrinhos da Era Bush, não encontrará em suas narrativas, a fonte segura para uma celebração.

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"...Mas o que mais me revolta é que o homem que criou este conglomerado do mal, aquele que controla esse monstro à distância, está intocável na Casa Branca. Coberto de admiração, ocupando o cargo de presidente dos meus Estados Unidos".

Esse desabafo do homem-de-aço foi publicado em Janeiro de 2002 nos EUA, e aparece numa trama em que Luthor se elege a presidente dos EUA e usa de sua influência para dominar fontes de petróleo no oriente médio. A mesma revista traz um Super-Homem de luto, que vai à psiquiatra, tentando entender onde é que estaria seu erro para ter deixado as coisas chegarem a esse ponto. Esse amor profundo do herói pelos EUA torna ainda mais dura a crítica induzida – pois, pela primeira vez, Super não defende seu país: a ameaça é retratada como algo interno, da qual ele próprio faria parte. Se geralmente o herói representava o lugar do Estado e Luthor o marginal, aqui, a coisa se reverte: Super se vê diante de um inimigo que é o próprio Estado, e suas ações individuais é que se colocam em cheque. Até que ponto Super pode ser defensor de um país que aparece comandado por seu arquiinimigo primordial?

Num país fundado sobre a lógica do poder imanente, isso é, não ordenador do povo mas onde o poder é fruto de sua organização, o sentimento de opor-se ao Estado torna-se diretamente associado a um embate ao romantismo do espírito ianque. Esse parece ser o grande dilema hoje: como se opor diretamente a um sistema e um Estado que sempre se constituiu como expressão natural das vivencias da multidão? Como opor-se a si mesmo, em outras palavras?

Super-homem vai ao psiquiatra para tentar se entender...O "S" pintado de negro é a imagem de um império que, pela primeira vez em 100 anos de gradativa hegemonia, se vê duvidoso de seu próprio sistema – não por uma questão de auto-proteção (o trauma das mortes americanas no Vietnam), mas numa situação moral renovada: o que estamos fazendo é certo? Como saber, se não há ninguém capaz de nos impedir? O indivíduo super-poderoso, capaz de tudo, olha a si mesmo e percebe na sua super-potência não mais a expressão da auto-satisfação e questiona não só seu poder (inquestionável), mas o modo de usá-lo: a relação clássica herói-vilão sempre funcionou a partir da ação de ataque do mal e da ação de auto-defesa do bem; mas como explicar isso a partir da nova lógica "preventiva" que rege a política militarista de G.W. Bush? Quando a ordem está nas mãos de Lex Luthor, ainda é certo que se a defenda?

Se os outros ciclos de produção de filmes de super-heróis estiveram sempre ligados à metáforas dos EUA defendendo a si e ao mundo de ameaças externas (com exceção aos dois Batman de Burton), como reagirão esses novos filmes diante da comoção mundial causada pela invasão norte-americana ao Iraque e a desconfiança de fraude em torno das eleições presidenciais? Se a movimentação em torno dessa nova série de produções estiveram ligadas aos ataques terroristas do final de 2001, hoje, dois anos depois, chegam às telas sob a sombra do golpe de estado perpetrado por Washington e os gritos de vergonha e orgulho de suas próprias ruas.

Sentimentos em que a figura do super-herói se coloca numa curiosa e interessante posição: não duvidando da bondade de seu espírito (o amor a seu país é irretocável), mas questionando a própria representatividade imanente de suas ações. Seu policiamento da vida...

Dilema que nos remete à primeira lição que Jor El (pai criptoniano de Kent) prega a seu filho em Superman (Richard Donner, 1978): "Nunca use seus super-poderes" (ou poderio militar?...) "para interferir na história da humanidade, mesmo que isso lhe pareça justo". No filme, o herói desobedece a esse preceito e salva sua amada; hoje, 20 anos depois, as coisas já não lhe parecem tão claras.

"As pessoas são mantidas na ignorância do que acontece no mundo. Afinal...para que se preocupar se ALGUÉM sempre aparece para resolver os problemas?" Clark Kent (in Superman, 120 – jan.2002)

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Crises, mudanças conjunturais, re-significações, nesses mais de 50 anos de filmes e seriados de TV, os super-heróis sofreram intervenções tão diversas e difusas que vão da animação infantil (a série Liga da Justiça dos anos 80) à sua transformação em seriado high-school/adolescente (o recentíssimo Smalvillle). Nessa gama de possibilidades e produção em massa, alguns diretores se destacam na inscrição de novas possibilidades e leituras sobre as figuras monolíticas desses heróis, fazendo filmes capazes de reacender a relevância de seus personagens, gerando novos milagres para velhos deuses: Richard Donner (Superman), Tim Burton (Batman/Batman: returns), Bryan Singer (X-Men) e Sam Raimi (Homem-Aranha) são alguns desses nomes. Somando-se ainda a crítica intra-sígnica de M. Night Shyamalan em seu Corpo Fechado (Unbreakable). Contribuições que merecem ser pontuadas em suas especificidades:

Superman (1978)


Lois e Super dão uma voadinha.


Depois de ter passado as décadas de 60 e 70 como mero co-protagonista de animações de gosto duvidoso, Super-Homem ganha, pelas mãos de Richard Donner, a primeira grande produção cinematográfica de super-heróis pós- explosão dos efeitos especiais com Star Wars, em 1977. Com truques de fotografias primorosos, pela primeira vez o público podia acompanhar o olhar e os gestos do Super-Homem durante o vôo por sua Metrópole. Diálogos e expressões aproximados iam muito além dos antigas animações distantes e silenciosas que representavam seus vôos na década de 40, o que proporcionava muitas mudanças. Essa aproximação da figura do Super-Herói em ação extrema, foi responsável por um importante aprofundamento na construção de sua personalidade, o que também se refletia na maior complexidade de suas cenas como Clark Kent. No abre-alas da década de 80, o Clark de Reeve apresentava a um público infanto-juvenil aquilo que seria o modelo de ação individual da cultura yuppie e inscrevia o lugar do "executivo almofadinha" no hall dos grandes heróis americanos. Careta, pudico, cabelo engomado, vindo do interior e crescendo devido ao talento e ao esforço na cidade grande, Kent é a imagem da boa conduta, do homem empreendedor e bom.

Muito menos musculoso do que suas versões animadas (e até menos do que a versão da década de 40), Super-Homem/Kent é cuidadosamente representado aqui no auge de seus 30 anos como um homem comum no meio da multidão (sua "transformação" em pirueta em cabines telefônicas aparece como poderoso dispositivo dessa frugalidade). A grande quantidade de cenas que tratam da relação amorosa entre Lois e Clark são uma marca da importância dessas redes afetivas para esse novo Super-Homem: "self-made man" na grande cidade (influência das HQs de Homem-Aranha). O clímax do filme, no momento em que Super-Homem resolve "mudar o curso da história por causa da mulher", entrou na antologia de filmes de super-heróis como o primeiro grande momento de questionamento sobre uma ação de heroísmo. Quando Super-Homem tem de escolher entre salvar sua nação ou sua amada, escolhe a nação (como seria de se esperar...), mas tem um ato a mais, extra-humano em potência, humano em vontade: volta o tempo de todo o planeta Terra (num gesto de puro egoísmo e amor) e a salva. Não havia um dever moral ali – havia o desejo. O dilema vida amorosa x dever do trabalho, apareceria também em Superman 2, quando Clark desiste de seus poderes para poder se casar com Lois e se vê impotente para defender os EUA de mais uma ameaça: um trio de super-vilões comandados por um General proto-soviético. Por fim, Clark recupera seus poderes, desiste de se casar com Lois e salva o planeta... Sem papas na língua. Termina assim a assinatura de Donner nos filmes de Super-Homem. O herói, sobrevoando Metrópolis, volta a seu lugar e aceita sua missão. (É curioso notar, no cartaz do filme, uma foto clara do skyline de Nova Iorque, com as Torres Gêmeas em destaque: sinal dessa tentativa de uma frugalidade maior às abstrações da cidade ficcional das HQs.)


Batman
(1989)


Jack Nicholson como o Coringa no primeiro Batman

Antes dos dois primeiros filmes da série, realizados por Tim Burton, a imagem mais popular do Homem-Morcego era a do seriado protagonizado por Adam West no final em meados da década de 60. Apesar dos inúmeros seriados e animações televisivas, essa paródia retrô entrava para a história como a mais importante adaptação de Batman para Tv ou Cinema – o que representava horrores não apenas aos fãs das HQs, mas também para seus editores, que viam suas revistas venderem cada vez menos. Durante anos, Batman amargou a queda da qualidade de suas narrativas e o desgaste de sua figura. Foi com o trabalho de Frank Miller, eternizado em Cavaleiro das Trevas, que a carreira do homem-morcego deu sinais de renovação, alcançando não apenas um maior sucesso de público mas também o reconhecimento de imprensa e críticos da relevância estética e temática que aquele novo Batman representava.

A década de 80 foi marcada pela edição de algumas das melhores HQs de Batman (e de todos os tempos...), apostando em seu caráter sombrio, acentuando suas filiações góticas e a agonia de seu desejo por vingança insaciável. Enquanto grande parte das HQs de heróis repetiam a fórmula da aventura e ação de forma pouco inspirada, Batman reaparecia como o paradigma do super-herói sem super-poderes, do homem incerto de seus atos. É dessa reviravolta memorável que Batman vai tirar suas forças para chegar inteiro às mãos habilidosas de Tim Burton, resultando em dois dos melhores filmes de super-heróis já realizados. Da polêmica escolha de Michael Keaton para o papel do herói à cenografia expressionista, Burton constrói um filme que não faz qualquer concessão ao lugar glamourizado do herói positivo e senhor de suas ações. O Bruce Wayne de Keaton nada mais é do que um homem amargo e solitário, convivendo com um desejo de vingança que o freqüenta como a um fantasma. Diante de toda a riqueza e todo o poder econômico, Wayne é a imagem do homem impotente, que luta em ruas escuras perseguindo bandidos de meia tigela, fazendo uma justiça apequenada, burguesa e moralista. Nenhum dos sinais da conduta louvável, dos grandes atos em defesa da ordem – o Batman de Burton rasteja, robótico e impessoal, por ruas escuras, assustando vilões sem grandes reflexos além dos boatos de sua existência.

Batman é na verdade a história do surgimento do herói, do super-herói – apenas a partir do surgimento da personagem do Coringa é que o melancólico Bruce Wayne começa a desenhar definitivamente seu lugar, sua postura de defensor da cidade. É no surgimento do anti-Batman que o Batman de Burton sai de sua condição de fantasma de si mesmo e parte para as ações extremas. O que antes era um misto de trauma com excentricidade toma ares novos diante da invenção do Coringa. "Você me criou", diz Coringa para Batman. "Não, você me criou" , responde o morcego. Nesse equilíbrio de forças fica clara a descrença numa ação do bem contra o mal, numa ação em que haja o mal como fonte da desconjuntura e do caos. Nascidos um do outro, opostos e iguais, vivem de seu embate. Viram lendas na cidade, vão para as páginas dos jornais, ganham fama. Coringa é o vilão que quer todos rindo, felizes e autômatos: envenena a população de Gotham com cosméticos super-aditivados – Batman é o herói soturno, incapaz de expressões (Keaton está exato no papel) e que age sem medo da morte, no limite da vida. Coringa é a histeria, Batman, a concisão. Coringa é o homem dos gestos largos, simpático, alegre – Batman mal mexe os lábios, mal move os músculos. É na morte de Coringa que Batman finalmente funda seu lugar de paladino da cidade, nascido da violência de suas ruas, como mais um de seus gárgulas amaldiçoados, descobre seu lugar entre seus arranha-céus. Para além dos desejos de vingança, Bruce Wayne retorna à vida – nos céus da cidade que o marcou mas que é também a fonte primeira de toda a sua força. O Batman de Burton não é um herói moral, construído sobre as metáforas da justiça e do dever – Batman é Batman porque assim o é, seus traumas de infância perdidos na memória lançam o futuro magnata Wayne num turbilhão de ações que muito pouco, ou nada, tem a ver com a ação de um sujeito consciente. Batman não aceita uma missão (como o Super-Homem de Donner), Batman não é um homem fantasiado de herói. Ao contrário: é o Bruce Wayne, das festas e badalações, que é Batman fantasiado de magnata.

Essa questão do heroísmo/vilania como condição mesma da existência e não fruto de um livre-arbítrio responsável e justo, é trabalhada novamente em Batman: o Retorno, agora nas figuras da Mulher-Gato e do Pingüim. Nesse segundo filme, Burton constrói com detalhes os mitos fundadores de seus dois antagonistas, almas irmãs da de Batman, vingativos e cheios de ódio, incapazes de agir de outra forma senão na busca de seus desejos. A Mulher-Gato, maliciosa e traiçoeira, busca a vingança contra seu ex-patrão e desenha-se sobre a sombra de Batman. Pingüim é habilidosamente contruído como o personagem que quer se adaptar à vida comum, que quer se inscrever no mainstream da vida de Gotham, mas cuja aparência e atos bizarros impedem (ver Edward Mãos de Tesoura). Reagindo a essa impossibilidade de se tornar apenas mais um, o Pinguim de De Vito é a imagem da morte trágica do homem que queria (ele sim, queria) ser herói, ser bom, ser ídolo... Mas não consegue, não é assim que sua banda toca (ver O estranho mundo de Jack) e seu fim é a morte diante de seus animais. O olhar de Batman diante do cortejo de pingüins com o corpo do "vilão" é a imagem silenciosa de uma vitória que nunca é alcançada com regozijo, com alegria: onde o merecimento da vitória nada tem a ver com seu resultado e onde Batman, de alguma forma, sente inveja do fim trágico de seu inimigo. O Batman de Burton é a imagem do homem que caminha na escuridão, longe de se colocar como um policial que se lança aos atos de coragem, é o guardião acorrentado cujos atos de ação são sua única e encurralada alternativa. Não foi à toa que, dois anos depois, Burton seria convidado a se retirar do festivo terceiro episódio do Homem-Morcego, enquanto Joel Schumacher preparava a purpurina.


X-Men
(2001)

A verdade é que depois dos Batmans de Burton e dos desastrosos filmes de Schumacher, mais uma vez pairava a dúvida sobre os interesses do cinema em adaptar narrativas dos quadrinhos. A DC (Warner Bros.), depois de engavetar os projetos de novos filmes do Super-Homem, tira seu time de campo definitivamente em meados da década de 90. Entre a possibilidade do patriotismo azedado de Donner e a crítica mordaz de Burton, Schumacher havia chegado novamente ao tom paródico que sempre servira como válvula de escape para a amenização das temáticas de HQs: não conseguiu nada além de fiascos.

É então que a editora Marvel, que nunca tinha apostado em grandes produções para seus personagens, se impulsiona nos impressionantes avanços técnicos da computação gráfica e na necessidade de uma virada que os tirasse de sua crise editorial, e finalmente "acredita" que seja possível levar aos cinemas as suas histórias. A primeira e grandiosa tentativa é com os X-Men, filme habilidoso de Bryan Singer, que consegue trazer novos teores políticos para o universo dos super-heróis: para além dos dilemas da defesa da pátria, X-Men (como suas melhores HQs) faz as metáforas da diversidade, da aceitação da diferença como algo intrínseco à vida, mostrando o embate entre as soluções pacíficas (um professor Xavier figurado como um Martin Luther King) e o embate direto (Magneto construído como a imagem de Malcom X). Em suma, a luta entre heróis e vilões deixa de ser o olhar entre o bem contra o mal, e torna-se o lugar da batalha entre as duas possibilidades de resistência de uma massa de perseguidos. O heroísmo dramatúrgico dos X-Men se dá justamente em sua opção de uma política em que os não-mutantes mereçam também a vida e a liberdade, de que não se trata de tomar o lugar do outro, mas de garantir o seu lugar-outro diante do mundo. A batalha entre-mutantes desse primeiro filme é a imagem do dilema interno de uma massa de excluídos que vive na berlinda entre o combate direto e o embate de idéias. Das gangues de Nova Iorque aos guetos negros de São Francisco, esse é um dilema profundo no coração da constituição libertária dos EUA, e o fato de a batalha final acontecer na estátua da liberdade é o sinal da questão central do filme: que tipo de liberdade se quer, que tipo de libertação buscamos? Muito acorrentado às apresentações dos personagens e sua contextualização, o filme de Singer parece abrir-alas para um interessantíssimo X-Men 2. No filme, com estréia em breve nos EUA e no Brasil, é o Estado norte-americano quem resolve implantar políticas de sanitarização e segregação entre humanos e mutantes. Diante disso, Magneto e Professor Xavier se vêem obrigados a lutar juntos, pela primeira vez contra um inimigo maior: um exército norte-americano anti-mutantes. Vale a expectativa.


Homem-Aranha
(2002)

No caminho do sucesso dos mutantes, o Homem-Aranha de Sam Raimi aparece levando aos extremos as possibilidades gráficas da nova geração de efeitos especiais hollywoodianos. Em ritmo de videoclipe, fluido e sobrevoando a cidade de Nova Iorque, o Homem-Aranha de Raimi é a imagem do ideal de juventude da Geração-MTV: independência financeira, vida cosmopolita, urbanidade e sobrevôo. Sem tocar os pés no chão, mascarado, Aranha é a imagem da leveza, dos gestos sob a brisa amena, do desapego. Frágil, longe da forma maciça de heróis hiper-musculosos, Aranha é preciso, rápido, sorrateiro. Sua potência não está em sua capacidade de permanecer intocável (paradigma do Super-Homem), mas de se mover com rapidez, de desviar de balas, de dar grandes saltos (essa estética foi amplamente construída em torno dos avanços pesquisados em Matrix). Movimento, em suma. Herói pós-moderno, o Aranha de Tobey Maguire não tem nada da perfeição inerente ao Super-Homem nem da bizarrice de Batman: é antes de tudo um personagem da frugalidade, dos interesses pequenos por sua amada.

Sua trama gira em torno das relações de amor adolescente de Peter Parker, de sua relação com os pais de criação, de sua disputa silenciosa pela atenção do pai de seu melhor amigo. Antes dos desejos de justiça, Peter Parker quer comprar um carro e conquistar uma garota, sonho de juventude, quer também fazer sucesso na cidade grande. Apenas com a ameaça familiar e a morte de seu tio, Peter percebe que aqueles poderes novos lhe trariam sempre a responsabilidade dos grandes feitos. Homem-Aranha conta a história de formação do super-herói, sua transição da adolescência irresponsável e pacata para a aceitação de um papel de conduta em defesa da ordem. Não tanto com as grandiloqüências da defesa da nação, Aranha é o herói da defesa da vizinhança, das pessoas justas e pacatas, da ordem da comunidade. Sua relação com a cidade é explicitada na cena em que os moradores o ajudam a enfrentar o Duende Verde – justamente quando vivia o dilema entre salvar sua amada ou crianças inocentes (Aranha resolve salvar os dois….), a "cidade" toma seu partido e o defende.

O sentimento de comunidade e pertencimento aparecem aqui quando cada morador da cidade se torna imagem refletida do herói (homenagem à Nova Iorque pós-derrubada das Torres). Homem-Aranha é a metáfora da realização pessoal da juventude norte-americana pós-industrial, lutando por seu espaço nas grandes cidades em sub-empregos inconstantes, vivendo de freelancer e dividindo flats, defendendo os ideais da liberdade competitiva nas pequenas práticas de seu dia-a-dia. Por isso, a seqüência final onde Peter dispensa o amor de Mary Jane e "opta" por sua missão ao lado da bandeira norte-americana foi alvo de tantos narizes torcidos entre os fãs das HQs (e de algumas vaias nas salas de cinema). Se hoje, nem mesmo o Super-Homem cairia nessa (nas HQS, Clark Kent está casado com Lois há alguns anos…), porque fazer com que o Aranha agisse assim? Equívoco narrativo ou um surto neo-patriótico? Seja qual for a resposta, o resultado é decepcionante.


Corpo Fechado
(2000)


Bruce Willis e Samuel L. Jackson em Corpo Fechado

Na perspectiva do super-heroísmo como um dos mitos fundadores da conduta norte-americana no século XX, M. Night Shiamalan realizou um curioso filme sobre a emergência cíclica desses personagens. No filme, Bruce Willis vive um pacato segurança de estádio que começa a ser perseguido por um curioso mistério: a perspectiva dele reunir em seu corpo toda a força e intangibilidade dos super-humanos dos quadrinhos. Quando se torna o único sobrevivente de um acidente de trem, Willis chama a atenção de um homem com sérios problemas degenerativos (o "Sr. Vidro", vivido por Samuel L. Jackson) aficionado por HQs e que tem a certeza de ter encontrado um verdadeiro super-humano. O filme é construído entre as dificuldades caseiras de Bruce Willis em aceitar seus poderes recém-descobertos e a perseguição imposta por um misterioso grupo terrorista. Quando o círculo se fecha, é na imagem de Jackson ("Sr. Vidro") que encontramos o vilão da história; e a narrativa de super-herói se instaura. Vidro cria o super-herói em sua busca incessante por um homem imortal, o herói cria Sr. Vidro ao ser o objeto desse desejo que o levou à ação terrorista. O filme termina justamente no momento em que deixa de funcionar na ordem do suspense material e se transfigura num verdadeiro filme de super-heróis.

Shyamalan constrói a gênese do herói, do homem que é empurrado à ação – a dupla herói-vilão é dilacerada, cirurgicamente analisada nas metáforas da potência sem vontade de Willis e na fragilidade impetuosa de Jackson. O herói de Shyamalan é resultado de uma dimensão única: amálgama entre a tomada de atitude e a condição física extra-humana. Seguindo seu cinema em que o pôr-se-em-cena investiga as sintonias de percepção espiritual de mundo (tanto no anterior O Sexto Sentido quanto no belíssimo Sinais), Shyamalan brinca de descobrir os signos do heroísmo no cotidiano banalizados de um personagem a quem só resta uma opção – acreditar ou não na existência de seus poderes. Será essa mudança cognitiva (que vai além da simples opção moral) que fará dele um herói (assim como em Sinais é a fé renovada do pastor Mel Gibson que trará a idéia de sua salvação). Entre a percepção materialista de mundo e o olhar mítico da vida, Shiamalan brinca de construir, a partir de uma releitura pós-moderna, a imagem ícone do super-herói e do super-vilão. A invenção da superpotência é fruto de seu oposto mítico e componentes de uma mesma dimensão. Desconectados um do outro, voltam a ser apenas pessoas comuns, com problemas comuns, é o embate entre seus dois núcleos simbólicos (a força pacata e a fragilidade ardilosa) que os alça ao lugar de ídolos extra-humanos.

Shyamalan não se interessa por desconstruir o mito do herói e do vilão, seu filme é uma verdadeira ode à capacidade do cinema de, através de seus tons de imagem, seus gestos narrativos, erigir diante do mundo comum, os mitos espetaculares desse imaginário. Não se tratam de naturezas diferentes, para Shyamalan, tratam-se de literaturas, de campos cognitivos diferenciados. Dessa forma, Shyamalan faz um precioso trabalho de observação da construção de um mito que se redobra sobre o próprio mito (os personagens do filme sobre os personagens das HQs lidas por Vidro), e gera novas formas de sua expressão. Para qualquer fã de histórias em quadrinhos ou interessado na constituição simbólica do espírito norte-americano contemporâneo, Corpo Fechado é um filme precioso, se colocando ao lado de Sinais como belo exemplar de uma investigação intra-sígnica dos mitos modernos da ameaça estrangeira e do heroísmo; do enredamento pós-moderno entre a vida concreta e as dimensões mágicas de sua percepção. Muito mais inteligente que o cinema caduco da crítica do virtual, Shyamalan faz a investigação imagética por dentro mesmo do mito do super-herói, realizando um filme que merece uma observação cuidadosa e um desmembramento plano-a-plano de sua criação. Corpo Fechado nos dá algumas das mais preciosas bases para uma observação crítica da construção narrativa/dramatúrgica dessa nova onda de super-heróis que toma de assalto o cinema norte-americano nesse início de século.

Felipe Bragança