Cinema
de super-heróis:
as metáforas da potência e da conduta
"Um
Super-Homem em conflito": capa de edição de 2003
Cinema e identificação.
Cinema e adoração. Cinema e conduta. Desde o início
da década de 10, o cinema industrial norte-americano ensaiava aquilo
que seria o eixo da vida cinematográfica do século XX: o
espelhamento público-personagem. Do dinamismo industrial de produção
aos dispositivos narrativos inventados naquelas terras californianas,
o sistema de estrelas, star system, talvez tenha sido o mais difundido
e poderoso artifício. Se os sucessos pontuais de narrativas caracterizavam
a força daquela indústria de dramas fotografados, foi apenas
com a criação do lugar das "estrelas" que se tornou
possível o fortalecimento de uma verdadeira rede de significação.
O aprofundamento psicológico dos arquétipos traduziu-se
também na expansão da dramaturgia para a vida extra-tela:
gerando a primeira geração de ídolos de carne e osso.
Essa nova relação personagem-ator, vinha fortalecer a necessidade
de uma maior diversificação das narrativas e dar-lhes matizes
morais mais nuançadas (essencial para a expansão do público).
É importante lembrar que grande parte das chamadas pin-ups e vedetes
do início do século (belas jovens que encarnavam personagens
em fotografias e filmes) se utilizavam de nomes falsos e tinham sua vida
privada negada a observação da imprensa, ou seja: eram anônimas.
Essa falta de identidade individual das atrizes e atores de cinema, por
algum tempo, foi identificada como fator central para intensificar a crença
do espectador nas histórias narradas, visto que aquelas pessoas
projetadas serviam mais como carcaças as quais os personagens
vestiam, e não o contrário.
Nesse sistema de massificação
cultural primária, a figura da identidade do ator era esmagada
pela uniformização de atitudes e gestos, em torno de um
limitadíssimo arsenal, arquitetado sobre um cinema de exemplos
morais, inscrita sobre os ideais de conduta de tipos uniformizados. Nesse
primeiro momento, a subjetividade, a presença do sujeito-ator ainda
era vista como uma ameaça, pois sua vida "real" estaria
sempre exposta a se desviar dos exemplos de conduta que caracterizam o
pulso daquele cinema: Como poderia o público se espelhar numa heroína,
caso conhecesse a personalidade da atriz e esta se desviasse do discurso
da imagem? Por muitos anos, os atores hollywoodianos foram suprimidos
de seus créditos: Nick Carter, Zorro e Tarzan foram alguns dos
primeiros heróis a terem feito sucesso no cinema. E suas imagens
de homens fortes os levaram a bater recordes no recebimento de cartas
de fãs apaixonadas (esclareço: não os atores, mas
os personagens...).
Foi nos últimos
anos da década de 1910 (mais especificamente 1919), que começaram
a surgir os primeiros exemplares claros da dialética ator-papel
que caracterizaria a "estrela de cinema" clássica hollywoodiana
onde o ator passava a ser o protagonista que veste a roupagem do
personagem, e não mais o inverso. Filmes em que os nomes dos
atores figuravam finalmente de forma destacada nos cartazes, como referências
centrais para o pacto filme-público.
Essa invenção
do lugar da estrela cinematográfica como referencial de idolatria,
constituída em torno da personalidade do ator, foi também
articulada com a necessidade de uma maior variabilidade de personagens
(fruto do aumento de produção). Multiplicam-se os tipos,
a partir de modelos psicológicos que ultrapassavam a mera narrativa
de ação, em papéis que se articulavam com a própria
identidade midiática do elenco (Mary Pickford, a "noivinha
do mundo"). Estrelas dos mais diferentes tipos começam a ser
importadas pela indústria norte-americana (de latinlovers a
mulheres fatais italianas), e sua diversidade agora era usada para expandir,
e não mais ameaçar, a identificação de diferentes
públicos com as personagens. Os heróis atléticos
e acrobáticos e os corpos femininos sem nome cedem espaço
(ao longo das duas décadas seguintes) ao novo modelo do "estrelato"
e do aprofundamento de arquétipos.
Cada vez mais raro
na cinematografia adulta, o cinema de "heróis mascarados"
e acrobáticos passa por um processo de lenta migração,
que vai infantilizando sua narrativa e hipertrofiando suas características
sobre-humanas. O que antes era um dispositivo comum a toda a cinematografia
hollywoodiana, ganha matizes carregadas e se torna um sub-gênero
de super-aventuras. Heróis hiperbólicos, rotinizados em
suas habilidades extra-humanas, caracterizados com uniformes militares/circenses,
tornavam-se um novo e poderoso nicho de criação audiovisual.
É curioso notar como, enquanto a grande invenção
hollywoodiana do estrelato se espalhava pelas cinematografias do mundo,
esse outro modelo antiquado do herói-mascarado e de "atitudes
extremas" acabaria por se tornar (em algumas décadas) um dos
sub-gêneros mais específicos do cinema e da TV norte-americana:
não mais inspirado nos romances europeus de capa-e-espada, mas
na literatura massificada ianque das histórias em quadrinhos. Nasciam
os "filmes de super-heróis".
* *
*
O surgimento do Super-Homem
(1938) marcava o início de uma longa tradição e abria
um leque de criação em voga até os dias de hoje.
O personagem do homem-de-aço reunia na verdade todas as características
superlativas que seriam depois decalcadas e variabilizadas na criação
de diversos outros heróis resumindo-se, assim, como depositário
maior do imaginário da potência e da responsabilidade norte-americana
diante do mundo (na verdade, dando um gás no já tradicional
gênero das HQs de aventura). Não tardou para que uma versão
animada do herói chegasse as telas do cinema, numa série
de pequenos filmes dirigida por Dave Fleischer em 1941 (até hoje
o melhor desenho animado produzido sobre o herói). Nessa primeira
aparição cinematográfica, Super-homem aparecia enfrentando
majoritariamente desafios de teor militarista-catastrófico, numa
luta contra os Nazistas, em que a resistência norte-americana era
representada no corpo maciço do herói voador.
Quando Batman foi
criado, em 1939, ficou claro que esse novo modelo de heróis fantasiados
não estaria restrito as HQs de aventura e ação. Foi
na Detective Comics que o morcego levou às histórias de
espionagem e investigação, a porção mitológica
e o modelo de alter-ego secreto, que seriam então multiplicadas
na década seguinte. Entre o modelo do Super-Homem (que reunia toda
a potência possível e o desafio de conduzi-la em si mesmo)
e o de Batman (que nenhum poder especial tinha, a não ser a vontade
de vingança e justiça), é que se estabeleceram todos
os outros super-heróis, dosando mais ou menos essas características
do Poder e da Vontade. Ao longo da Segunda-Guerra mundial e até
o início da década de 50, os super-heróis viverão
sua primeira fase de ouro capitaneados também pelos filmes seriados
do cinema: Superman e Atom Man vs. Superman e Batman
& Robin.
O período de
bonança pós-guerra, marcou o cancelamento de praticamente
todas as revistas em quadrinhos de super-heróis, o que também
significou um recuo nas produções de cinema (que perderam
espaço para as produções de Terror e Alienígenas).
Durante pouco mais de 10 anos, nenhum "filme de super-heróis",
ou mesmo desenho animado para a TV, foi produzido; e apenas em meados
de década de 60 esse quadro começou a mudar.
Era o início
da fase mais tensa da Guerra Fria e (juntamente com o sentimento dos EUA
como defensor da liberdade mundial) as histórias em quadrinhos
de Alienígenas e Terror eram processadas e censuradas como uma
ameaça ao senso de patriotismo norte-americano (não eram
raras as histórias em que os alienígenas saíam vitoriosos
ou em que a Terra era dizimada por forças externas...). No lugar
do Terror, as figuras dos herói positivos e mascarados eram também
renovadas pela necessidade de uma maior "humanização"
de seus atos; fazendo de sua diversidade um símbolo da liberdade
defendida pelo olhar norte-americano diante da monotonia "desumanizada"
da ameaça comunista:
O fato de cada herói
trazer seu próprio uniforme e suas habilidades específicas
sublinhavam a marca de sua diversidade e o surgimento das primeiras equipes
de heróis (da "família modelo" do Quarteto Fantástico
à "união militarista" dos Vingadores). Essa diversificação
e multiplicação vinha estabelecer diretamente um diálogo
com os modelos de civilização-livre norte-americana e seus
ideais de conduta. Onde a polifonia de gestos encontraria sua a "expressão
comum" na luta pela liberdade e a justiça. Surge daí
o conceito de "universo Marvel" ou "universo DC"
marcando o fim dos heróis protagonistas de histórias desconexas
e indiferentes entre si, e caracterizando uma verdadeira rede de significações
(alter-ego crônico do mundo real e espelho hipertrofiado do mesmo).
* *
*
Interpretados por
diferentes atores ao longo das décadas, atemporais em suas vestimentas
carnavalescas, os super-heróis atravessam os anos se adaptando
as formas de sua representação característica provinda
dos quadrinhos: onde diferentes artistas emprestam seus traços
para um personagem eternizado. Até hoje, apesar de todo o frenesi
do estrelato, os filmes de super-heróis são alguns dos poucos
exemplares em que é o personagem quem parece vestir a carcaça
do ator (fenômeno comum também nos filmes religiosos).
Essa característica
universalista e atemporal, diria ahistórica, vem fortalecer seu
caráter de referencial de conduta (o que nos remete a universalidade
da Constituição Norte-Americana), adaptável diante
dos diferentes males e dilemas conjunturais. O que esse ou aquele herói
faria numa situação como essa? Assim como há um Santo
para cada milagre, para cada dilema, parece haver um super-herói.
Numa cultura essencialmente
iconoclasta até o início do século XIX, com sua base
política erigida sobre os ideais protestantes da liberdade individual
e a negação da idolatria, a figura dos super-heróis
vem se inscrever num refluxo das iconografias. Como os santos católicos,
banidos do protestantismo, os super-heróis são marcados
pela presença de um uniforme característico, uma capacidade
específica e uma origem anedótica sofrida. Ao contrário
dessa filiação aparente, ou das recorrentes comparações
com as narrativas mitológicas gregas, é na tradição
de deuses guerreiros das culturas nórdicas, que os super-heróis
encontram sua fonte mais característica.
Nem semi-deuses gregos
(em que as ações são fruto da própria essência
desses entes e as intrigas familiares são centrais), nem santos
católicos (em que os atos são fruto da opção
moral e da energia advinda da iluminação externa), os super-heróis
são a expressão moderna da força e da coragem dos
filhos de Odin. Mesclando atos de conduta moral com a força intrínseca
de seus poderes, suas atitudes são, ao mesmo tempo, frutos imanentes
de seus super-poderes, mas também gestos de posição
moral quanto ao uso correto de sua força extra-humana: "Para
grandes poderes, grandes responsabilidades" Homem Aranha. Em Thor
e em Loki (os deuses escandinavos, que não por acaso, tornaram-se
personagens de HQ), estão todas as características centrais
da dupla herói-vilão.
Em Thor está
o homem poderoso, guerreiro incansável, que defende a paz no mundo
dos deuses através da força e vive eternamente na defesa
da ordem para os homens justos; em Loki está o estereótipo
da vilania covarde, meticulosa e silenciosa, homem frágil que se
utiliza de artifícios para enganar os outros deuses e alcançar
vantagens. Na dupla Thor-Loki está a fonte básica da relação
herói-arquiinimigo em que, ao mesmo tempo em que há o
embate, há também a relação de intimidade
e identificação entre os mesmos: eram os melhores amigos.
Thor defende a ordem, Loki a desordem Thor lança-se ao perigo,
Loki se esconde nas sombras. Thor usa de seus super-poderes e seu cinto
mágico para lutar em defesa dos homens, Loki tem em sua astúcia
e na pregação de "peças" seu grande poder.
Thor costuma ferir humanos por engano, tendo sempre que se policiar sobre
suas grandes capacidades; Loki dedica a sua vida a criar a discórdia
entre deuses e homens. É interessante notar que a identidade dos
deuses e heróis são traçados a partir de seus atos
concretos e de suas habilidades pragmáticas: onde somente aqueles
mortos em combate (labuta) tem lugar no reino dos deuses...
Batman vs. Coringa,
Super-Homem vs. Luthor, Demolidor vs. Rei do Crime, Homem-Aranha vs. Duende
Verde reproduzem com impressionante simetria a relação de
profunda identificação, e o embate entre o poder e a conduta,
originários nas inúmeras narrativas de aventura em que Thor
e Loki eram retratados. Ao contrário da versão amoral dos
heróis gregos, sempre centrados em problemáticas internas
e em desafios entre-deuses, Thor é o primeiro exemplar de um deus/herói
que se propõe a policiar o mundo: indo atrás de agressores
dos humanos, defendendo-os dos monstros, derrotando aqueles que representavam
perigo à vida pacata dos homens justos. Enquanto os deuses gregos
eram aqueles empenhados em suas lutas por poder sobre a polis (Olimpo),
Thor é a imagem do guerreiro livre que cavalga pelo mundo defendendo
a luz (trovão) diante das ameaças das trevas. Um mundo onde
a morada dos deuses aparece como um espaço limitado e ilhado, cercado
pelas ameaças do grande mar e de seus monstros (o que nos remete
à tradição norte-americana da "ameaça
externa" e à política paranóica-militarista
de certos segmentos de sua sociedade).
* *
*
Dessa referência
mitológica às práticas políticas modernas,
a cultura norte-americana se funda sobre o mito da autonomia do sujeito,
dos poderes de transformação ("não pergunte
o que seu país pode fazer por você, mas o que você
pode fazer por seu país") e traz seus traços hiperbólicos
na figura dos super-heróis e de suas condutas boas e más.
É importante ressaltar que a característica dos supervilões
nunca é retratada como fruto de uma natureza outra, mas sempre
como modulação distorcida do poder individual é
preciso cuidar de seus próprios atos para que não nos percamos
de nossa missão sobre a terra. Daí o embate entre heróis
e vilões se caracterizar em metáfora maior dos dilemas do
sujeito onde as ações de um são o avesso das do
outro, mas, por isso mesmo, tornam-se, por vezes, semelhantes. O que os
diferencia seria antes uma opção moral, um desejo de conduta,
do que uma natureza outra. Diferente dos beatos católicos, em que
a iluminação lhes é dada, os super-heróis
aparecem como os cronistas de um processo infinito de busca da liberdade
através do trabalho e das práticas cotidianas revelada
na dieta pragmática de seus dias: os fins de bondade (fixos), justificam
os meios e poderes (variáveis).
Essa estrutura de
adaptabilidade (marca central de uma certa política imperial norte-americana)
parece ser o que faz dos super-heróis figuras recorrentes em momentos
de crise, em que os modos de agir diante de novos desafios estão
postos em cheque. Em sua capacidade de destruir o mundo por força
de sua vontade ou de protegê-lo de si mesmo, está a base
do caráter educativo da tradição infanto-juvenil
das HQs.
Num momento em que
o mundo se coloca diante de uma nova ordem mundial centralizada, é
de se esperar que os super-heróis retomem a energia narrativa da
época de ouro da Guerra Fria e tentem se configurar diante dos
grandes dilemas contemporâneos. ("Os personagens de HQ existem
apenas para viverem intensamente" Fresnault-Deruelle, in O Espaço
Interpessoal nos comics Semiologia da representação).
Ao contrário,
porém, dos momentos anteriores, duas grandes diferenças
são observáveis hoje: pela primeira vez o inimigo não
tem cara fixa e uniformizada (são civis...) e pela primeira vez
os EUA estão postos em hegemonia solitária diante do mundo.
O desejo pela ameaça, porém, traço dos guerreiros,
parece ser indispensável para uma cultura mantida sobre a constante
reafirmação de seu poderio.
Depois de terem passado
os últimos 15 anos em crise profunda, as HQs de super-heróis
reacendem seu interesse público e cinematográfico, voltando
a ser referência central para a celebração ou questionamento
interno da potência ianque. Estão programados mais filmes
de super-heróis para os anos entre 2000-2005 do que os realizados
entre 1985-2000: Hulk, Batman, Homem-Aranha, X-Men, e até mesmo
Super-Homem são alguns dos super-heróis com filmes em produção.
Se o Homem-Aranha de Raimi aparece sendo defendido pelos cidadãos
de Nova Iorque ("Se você mexe com um de nós, mexe com
todos nós"), outros heróis levantam a expectativa de
que tipo de patriotismo será possível.
Ang Lee, diretor chinês
que já utilizou as HQs como referência para um olhar-crítico
sobre o modo de vida norte-americano (Tempestade de Gelo), promete
fazer em Hulk "uma tragédia sobre a condição
do sujeito contemporâneo" (leia-se ianque) e talvez guarde
surpresas interessantes. Com estréia em breve por aqui, X-Men 2
mostra os heróis em combate contra um general norte-americano que
se lança ao "combate preventivo" à ameaça
mutante. E o novo e esperado filme de Super-Homem, se inspirado pelos
quadrinhos da Era Bush, não encontrará em suas narrativas,
a fonte segura para uma celebração.
* *
*
"...Mas o que
mais me revolta é que o homem que criou este conglomerado do mal,
aquele que controla esse monstro à distância, está
intocável na Casa Branca. Coberto de admiração, ocupando
o cargo de presidente dos meus Estados Unidos".
Esse desabafo do homem-de-aço
foi publicado em Janeiro de 2002 nos EUA, e aparece numa trama em que
Luthor se elege a presidente dos EUA e usa de sua influência para
dominar fontes de petróleo no oriente médio. A mesma revista
traz um Super-Homem de luto, que vai à psiquiatra, tentando entender
onde é que estaria seu erro para ter deixado as coisas chegarem
a esse ponto. Esse amor profundo do herói pelos EUA torna ainda
mais dura a crítica induzida pois, pela primeira vez, Super não
defende seu país: a ameaça é retratada como algo
interno, da qual ele próprio faria parte. Se geralmente o herói
representava o lugar do Estado e Luthor o marginal, aqui, a coisa se reverte:
Super se vê diante de um inimigo que é o próprio Estado,
e suas ações individuais é que se colocam em cheque.
Até que ponto Super pode ser defensor de um país que aparece
comandado por seu arquiinimigo primordial?
Num país fundado
sobre a lógica do poder imanente, isso é, não ordenador
do povo mas onde o poder é fruto de sua organização,
o sentimento de opor-se ao Estado torna-se diretamente associado a um
embate ao romantismo do espírito ianque. Esse parece ser o grande
dilema hoje: como se opor diretamente a um sistema e um Estado que sempre
se constituiu como expressão natural das vivencias da multidão?
Como opor-se a si mesmo, em outras palavras?
Super-homem vai ao
psiquiatra para tentar se entender...O "S" pintado de negro
é a imagem de um império que, pela primeira vez em 100 anos
de gradativa hegemonia, se vê duvidoso de seu próprio sistema
não por uma questão de auto-proteção (o
trauma das mortes americanas no Vietnam), mas numa situação
moral renovada: o que estamos fazendo é certo? Como saber, se não
há ninguém capaz de nos impedir? O indivíduo super-poderoso,
capaz de tudo, olha a si mesmo e percebe na sua super-potência não
mais a expressão da auto-satisfação e questiona não
só seu poder (inquestionável), mas o modo de usá-lo:
a relação clássica herói-vilão sempre
funcionou a partir da ação de ataque do mal e da ação
de auto-defesa do bem; mas como explicar isso a partir da nova lógica
"preventiva" que rege a política militarista de G.W.
Bush? Quando a ordem está nas mãos de Lex Luthor, ainda
é certo que se a defenda?
Se os outros ciclos
de produção de filmes de super-heróis estiveram sempre
ligados à metáforas dos EUA defendendo a si e ao mundo de
ameaças externas (com exceção aos dois Batman
de Burton), como reagirão esses novos filmes diante da comoção
mundial causada pela invasão norte-americana ao Iraque e a desconfiança
de fraude em torno das eleições presidenciais? Se a movimentação
em torno dessa nova série de produções estiveram
ligadas aos ataques terroristas do final de 2001, hoje, dois anos depois,
chegam às telas sob a sombra do golpe de estado perpetrado por
Washington e os gritos de vergonha e orgulho de suas próprias ruas.
Sentimentos em que
a figura do super-herói se coloca numa curiosa e interessante posição:
não duvidando da bondade de seu espírito (o amor a seu país
é irretocável), mas questionando a própria representatividade
imanente de suas ações. Seu policiamento da vida...
Dilema que nos remete
à primeira lição que Jor El (pai criptoniano de Kent)
prega a seu filho em Superman (Richard Donner, 1978): "Nunca
use seus super-poderes" (ou poderio militar?...) "para interferir
na história da humanidade, mesmo que isso lhe pareça justo".
No filme, o herói desobedece a esse preceito e salva sua amada;
hoje, 20 anos depois, as coisas já não lhe parecem tão
claras.
"As pessoas são
mantidas na ignorância do que acontece no mundo. Afinal...para que
se preocupar se ALGUÉM sempre aparece para resolver os problemas?"
Clark Kent (in Superman, 120 jan.2002)
* *
*
Crises, mudanças
conjunturais, re-significações, nesses mais de 50 anos de
filmes e seriados de TV, os super-heróis sofreram intervenções
tão diversas e difusas que vão da animação
infantil (a série Liga da Justiça dos anos 80) à
sua transformação em seriado high-school/adolescente (o
recentíssimo Smalvillle). Nessa gama de possibilidades e
produção em massa, alguns diretores se destacam na inscrição
de novas possibilidades e leituras sobre as figuras monolíticas
desses heróis, fazendo filmes capazes de reacender a relevância
de seus personagens, gerando novos milagres para velhos deuses: Richard
Donner (Superman), Tim Burton (Batman/Batman: returns),
Bryan Singer (X-Men) e Sam Raimi (Homem-Aranha) são
alguns desses nomes. Somando-se ainda a crítica intra-sígnica
de M. Night Shyamalan em seu Corpo Fechado (Unbreakable).
Contribuições que merecem ser pontuadas em suas especificidades:
Superman (1978)
Lois e Super dão uma voadinha.
Depois de ter passado as décadas de 60 e 70 como mero co-protagonista
de animações de gosto duvidoso, Super-Homem ganha, pelas
mãos de Richard Donner, a primeira grande produção
cinematográfica de super-heróis pós- explosão
dos efeitos especiais com Star Wars, em 1977. Com truques de fotografias
primorosos, pela primeira vez o público podia acompanhar o olhar
e os gestos do Super-Homem durante o vôo por sua Metrópole.
Diálogos e expressões aproximados iam muito além
dos antigas animações distantes e silenciosas que representavam
seus vôos na década de 40, o que proporcionava muitas mudanças.
Essa aproximação da figura do Super-Herói em ação
extrema, foi responsável por um importante aprofundamento na construção
de sua personalidade, o que também se refletia na maior complexidade
de suas cenas como Clark Kent. No abre-alas da década de 80, o
Clark de Reeve apresentava a um público infanto-juvenil aquilo
que seria o modelo de ação individual da cultura yuppie
e inscrevia o lugar do "executivo almofadinha" no hall dos grandes
heróis americanos. Careta, pudico, cabelo engomado, vindo do interior
e crescendo devido ao talento e ao esforço na cidade grande, Kent
é a imagem da boa conduta, do homem empreendedor e bom.
Muito menos musculoso
do que suas versões animadas (e até menos do que a versão
da década de 40), Super-Homem/Kent é cuidadosamente representado
aqui no auge de seus 30 anos como um homem comum no meio da multidão
(sua "transformação" em pirueta em cabines telefônicas
aparece como poderoso dispositivo dessa frugalidade). A grande quantidade
de cenas que tratam da relação amorosa entre Lois e Clark
são uma marca da importância dessas redes afetivas para esse
novo Super-Homem: "self-made man" na grande cidade (influência das
HQs de Homem-Aranha). O clímax do filme, no momento em que Super-Homem
resolve "mudar o curso da história por causa da mulher",
entrou na antologia de filmes de super-heróis como o primeiro grande
momento de questionamento sobre uma ação de heroísmo.
Quando Super-Homem tem de escolher entre salvar sua nação
ou sua amada, escolhe a nação (como seria de se esperar...),
mas tem um ato a mais, extra-humano em potência, humano em vontade:
volta o tempo de todo o planeta Terra (num gesto de puro egoísmo
e amor) e a salva. Não havia um dever moral ali havia o desejo.
O dilema vida amorosa x dever do trabalho, apareceria também em
Superman 2, quando Clark desiste de seus poderes para poder se casar
com Lois e se vê impotente para defender os EUA de mais uma ameaça:
um trio de super-vilões comandados por um General proto-soviético.
Por fim, Clark recupera seus poderes, desiste de se casar com Lois e salva
o planeta... Sem papas na língua. Termina assim a assinatura de
Donner nos filmes de Super-Homem. O herói, sobrevoando Metrópolis,
volta a seu lugar e aceita sua missão. (É curioso notar,
no cartaz do filme, uma foto clara do skyline de Nova Iorque, com as Torres
Gêmeas em destaque: sinal dessa tentativa de uma frugalidade maior
às abstrações da cidade ficcional das HQs.)
Batman (1989)

Jack
Nicholson como o Coringa no primeiro Batman
Antes dos dois primeiros
filmes da série, realizados por Tim Burton, a imagem mais popular
do Homem-Morcego era a do seriado protagonizado por Adam West no final
em meados da década de 60. Apesar dos inúmeros seriados
e animações televisivas, essa paródia retrô
entrava para a história como a mais importante adaptação
de Batman para Tv ou Cinema o que representava horrores não apenas
aos fãs das HQs, mas também para seus editores, que viam
suas revistas venderem cada vez menos. Durante anos, Batman amargou a
queda da qualidade de suas narrativas e o desgaste de sua figura. Foi
com o trabalho de Frank Miller, eternizado em Cavaleiro das Trevas,
que a carreira do homem-morcego deu sinais de renovação,
alcançando não apenas um maior sucesso de público
mas também o reconhecimento de imprensa e críticos da relevância
estética e temática que aquele novo Batman representava.
A década de
80 foi marcada pela edição de algumas das melhores HQs de
Batman (e de todos os tempos...), apostando em seu caráter sombrio,
acentuando suas filiações góticas e a agonia de seu
desejo por vingança insaciável. Enquanto grande parte das
HQs de heróis repetiam a fórmula da aventura e ação
de forma pouco inspirada, Batman reaparecia como o paradigma do super-herói
sem super-poderes, do homem incerto de seus atos. É dessa reviravolta
memorável que Batman vai tirar suas forças para chegar inteiro
às mãos habilidosas de Tim Burton, resultando em dois dos
melhores filmes de super-heróis já realizados. Da polêmica
escolha de Michael Keaton para o papel do herói à cenografia
expressionista, Burton constrói um filme que não faz qualquer
concessão ao lugar glamourizado do herói positivo e senhor
de suas ações. O Bruce Wayne de Keaton nada mais é
do que um homem amargo e solitário, convivendo com um desejo de
vingança que o freqüenta como a um fantasma. Diante de toda
a riqueza e todo o poder econômico, Wayne é a imagem do homem
impotente, que luta em ruas escuras perseguindo bandidos de meia tigela,
fazendo uma justiça apequenada, burguesa e moralista. Nenhum dos
sinais da conduta louvável, dos grandes atos em defesa da ordem
o Batman de Burton rasteja, robótico e impessoal, por ruas escuras,
assustando vilões sem grandes reflexos além dos boatos de
sua existência.
Batman é
na verdade a história do surgimento do herói, do super-herói
apenas a partir do surgimento da personagem do Coringa é que
o melancólico Bruce Wayne começa a desenhar definitivamente
seu lugar, sua postura de defensor da cidade. É no surgimento do
anti-Batman que o Batman de Burton sai de sua condição de
fantasma de si mesmo e parte para as ações extremas. O que
antes era um misto de trauma com excentricidade toma ares novos diante
da invenção do Coringa. "Você me criou",
diz Coringa para Batman. "Não, você me criou" ,
responde o morcego. Nesse equilíbrio de forças fica clara
a descrença numa ação do bem contra o mal, numa ação
em que haja o mal como fonte da desconjuntura e do caos. Nascidos um do
outro, opostos e iguais, vivem de seu embate. Viram lendas na cidade,
vão para as páginas dos jornais, ganham fama. Coringa é
o vilão que quer todos rindo, felizes e autômatos: envenena
a população de Gotham com cosméticos super-aditivados
Batman é o herói soturno, incapaz de expressões
(Keaton está exato no papel) e que age sem medo da morte, no limite
da vida. Coringa é a histeria, Batman, a concisão. Coringa
é o homem dos gestos largos, simpático, alegre Batman
mal mexe os lábios, mal move os músculos. É na morte
de Coringa que Batman finalmente funda seu lugar de paladino da cidade,
nascido da violência de suas ruas, como mais um de seus gárgulas
amaldiçoados, descobre seu lugar entre seus arranha-céus.
Para além dos desejos de vingança, Bruce Wayne retorna à
vida nos céus da cidade que o marcou mas que é também
a fonte primeira de toda a sua força. O Batman de Burton não
é um herói moral, construído sobre as metáforas
da justiça e do dever Batman é Batman porque assim o é,
seus traumas de infância perdidos na memória lançam
o futuro magnata Wayne num turbilhão de ações que
muito pouco, ou nada, tem a ver com a ação de um sujeito
consciente. Batman não aceita uma missão (como o Super-Homem
de Donner), Batman não é um homem fantasiado de herói.
Ao contrário: é o Bruce Wayne, das festas e badalações,
que é Batman fantasiado de magnata.
Essa questão
do heroísmo/vilania como condição mesma da existência
e não fruto de um livre-arbítrio responsável e justo,
é trabalhada novamente em Batman: o Retorno, agora nas figuras
da Mulher-Gato e do Pingüim. Nesse segundo filme, Burton constrói
com detalhes os mitos fundadores de seus dois antagonistas, almas irmãs
da de Batman, vingativos e cheios de ódio, incapazes de agir de
outra forma senão na busca de seus desejos. A Mulher-Gato, maliciosa
e traiçoeira, busca a vingança contra seu ex-patrão
e desenha-se sobre a sombra de Batman. Pingüim é habilidosamente
contruído como o personagem que quer se adaptar à vida comum,
que quer se inscrever no mainstream da vida de Gotham, mas cuja aparência
e atos bizarros impedem (ver Edward Mãos de Tesoura). Reagindo
a essa impossibilidade de se tornar apenas mais um, o Pinguim de De Vito
é a imagem da morte trágica do homem que queria (ele sim,
queria) ser herói, ser bom, ser ídolo... Mas não
consegue, não é assim que sua banda toca (ver O estranho
mundo de Jack) e seu fim é a morte diante de seus animais.
O olhar de Batman diante do cortejo de pingüins com o corpo do "vilão"
é a imagem silenciosa de uma vitória que nunca é
alcançada com regozijo, com alegria: onde o merecimento da vitória
nada tem a ver com seu resultado e onde Batman, de alguma forma, sente
inveja do fim trágico de seu inimigo. O Batman de Burton é
a imagem do homem que caminha na escuridão, longe de se colocar
como um policial que se lança aos atos de coragem, é o guardião
acorrentado cujos atos de ação são sua única
e encurralada alternativa. Não foi à toa que, dois anos
depois, Burton seria convidado a se retirar do festivo terceiro episódio
do Homem-Morcego, enquanto Joel Schumacher preparava a purpurina.
X-Men (2001)
A verdade é que depois dos Batmans de Burton e dos desastrosos
filmes de Schumacher, mais uma vez pairava a dúvida sobre os interesses
do cinema em adaptar narrativas dos quadrinhos. A DC (Warner Bros.), depois
de engavetar os projetos de novos filmes do Super-Homem, tira seu time
de campo definitivamente em meados da década de 90. Entre a possibilidade
do patriotismo azedado de Donner e a crítica mordaz de Burton,
Schumacher havia chegado novamente ao tom paródico que sempre servira
como válvula de escape para a amenização das temáticas
de HQs: não conseguiu nada além de fiascos.
É então
que a editora Marvel, que nunca tinha apostado em grandes produções
para seus personagens, se impulsiona nos impressionantes avanços
técnicos da computação gráfica e na necessidade
de uma virada que os tirasse de sua crise editorial, e finalmente "acredita"
que seja possível levar aos cinemas as suas histórias. A
primeira e grandiosa tentativa é com os X-Men, filme habilidoso
de Bryan Singer, que consegue trazer novos teores políticos para
o universo dos super-heróis: para além dos dilemas da defesa
da pátria, X-Men (como suas melhores HQs) faz as metáforas
da diversidade, da aceitação da diferença como algo
intrínseco à vida, mostrando o embate entre as soluções
pacíficas (um professor Xavier figurado como um Martin Luther King)
e o embate direto (Magneto construído como a imagem de Malcom X).
Em suma, a luta entre heróis e vilões deixa de ser o olhar
entre o bem contra o mal, e torna-se o lugar da batalha entre as duas
possibilidades de resistência de uma massa de perseguidos. O heroísmo
dramatúrgico dos X-Men se dá justamente em sua opção
de uma política em que os não-mutantes mereçam também
a vida e a liberdade, de que não se trata de tomar o lugar do outro,
mas de garantir o seu lugar-outro diante do mundo. A batalha entre-mutantes
desse primeiro filme é a imagem do dilema interno de uma massa
de excluídos que vive na berlinda entre o combate direto e o embate
de idéias. Das gangues de Nova Iorque aos guetos negros de São
Francisco, esse é um dilema profundo no coração da
constituição libertária dos EUA, e o fato de a batalha
final acontecer na estátua da liberdade é o sinal da questão
central do filme: que tipo de liberdade se quer, que tipo de libertação
buscamos? Muito acorrentado às apresentações
dos personagens e sua contextualização, o filme de Singer
parece abrir-alas para um interessantíssimo X-Men 2. No
filme, com estréia em breve nos EUA e no Brasil, é o Estado
norte-americano quem resolve implantar políticas de sanitarização
e segregação entre humanos e mutantes. Diante disso, Magneto
e Professor Xavier se vêem obrigados a lutar juntos, pela primeira
vez contra um inimigo maior: um exército norte-americano anti-mutantes.
Vale a expectativa.
Homem-Aranha (2002)
No caminho do sucesso dos mutantes, o Homem-Aranha de Sam Raimi
aparece levando aos extremos as possibilidades gráficas da nova
geração de efeitos especiais hollywoodianos. Em ritmo de
videoclipe, fluido e sobrevoando a cidade de Nova Iorque, o Homem-Aranha
de Raimi é a imagem do ideal de juventude da Geração-MTV:
independência financeira, vida cosmopolita, urbanidade e sobrevôo.
Sem tocar os pés no chão, mascarado, Aranha é a imagem
da leveza, dos gestos sob a brisa amena, do desapego. Frágil, longe
da forma maciça de heróis hiper-musculosos, Aranha é
preciso, rápido, sorrateiro. Sua potência não está
em sua capacidade de permanecer intocável (paradigma do Super-Homem),
mas de se mover com rapidez, de desviar de balas, de dar grandes saltos
(essa estética foi amplamente construída em torno dos avanços
pesquisados em Matrix). Movimento, em suma. Herói pós-moderno,
o Aranha de Tobey Maguire não tem nada da perfeição
inerente ao Super-Homem nem da bizarrice de Batman: é antes de
tudo um personagem da frugalidade, dos interesses pequenos por sua amada.
Sua trama gira em
torno das relações de amor adolescente de Peter Parker,
de sua relação com os pais de criação, de
sua disputa silenciosa pela atenção do pai de seu melhor
amigo. Antes dos desejos de justiça, Peter Parker quer comprar
um carro e conquistar uma garota, sonho de juventude, quer também
fazer sucesso na cidade grande. Apenas com a ameaça familiar e
a morte de seu tio, Peter percebe que aqueles poderes novos lhe trariam
sempre a responsabilidade dos grandes feitos. Homem-Aranha conta
a história de formação do super-herói, sua
transição da adolescência irresponsável e pacata
para a aceitação de um papel de conduta em defesa da ordem.
Não tanto com as grandiloqüências da defesa da nação,
Aranha é o herói da defesa da vizinhança, das pessoas
justas e pacatas, da ordem da comunidade. Sua relação com
a cidade é explicitada na cena em que os moradores o ajudam a enfrentar
o Duende Verde justamente quando vivia o dilema entre salvar sua amada
ou crianças inocentes (Aranha resolve salvar os dois
.), a "cidade"
toma seu partido e o defende.
O sentimento de comunidade
e pertencimento aparecem aqui quando cada morador da cidade se torna imagem
refletida do herói (homenagem à Nova Iorque pós-derrubada
das Torres). Homem-Aranha é a metáfora da realização
pessoal da juventude norte-americana pós-industrial, lutando por
seu espaço nas grandes cidades em sub-empregos inconstantes, vivendo
de freelancer e dividindo flats, defendendo os ideais da liberdade competitiva
nas pequenas práticas de seu dia-a-dia. Por isso, a seqüência
final onde Peter dispensa o amor de Mary Jane e "opta" por sua
missão ao lado da bandeira norte-americana foi alvo de tantos narizes
torcidos entre os fãs das HQs (e de algumas vaias nas salas de
cinema). Se hoje, nem mesmo o Super-Homem cairia nessa (nas HQS, Clark
Kent está casado com Lois há alguns anos
), porque fazer
com que o Aranha agisse assim? Equívoco narrativo ou um surto neo-patriótico?
Seja qual for a resposta, o resultado é decepcionante.
Corpo Fechado (2000)
Bruce Willis e Samuel L. Jackson em Corpo Fechado
Na perspectiva
do super-heroísmo como um dos mitos fundadores da conduta norte-americana
no século XX, M. Night Shiamalan realizou um curioso filme sobre
a emergência cíclica desses personagens. No filme, Bruce
Willis vive um pacato segurança de estádio que começa
a ser perseguido por um curioso mistério: a perspectiva dele reunir
em seu corpo toda a força e intangibilidade dos super-humanos dos
quadrinhos. Quando se torna o único sobrevivente de um acidente
de trem, Willis chama a atenção de um homem com sérios
problemas degenerativos (o "Sr. Vidro", vivido por Samuel L.
Jackson) aficionado por HQs e que tem a certeza de ter encontrado um verdadeiro
super-humano. O filme é construído entre as dificuldades
caseiras de Bruce Willis em aceitar seus poderes recém-descobertos
e a perseguição imposta por um misterioso grupo terrorista.
Quando o círculo se fecha, é na imagem de Jackson ("Sr.
Vidro") que encontramos o vilão da história; e a narrativa
de super-herói se instaura. Vidro cria o super-herói em
sua busca incessante por um homem imortal, o herói cria Sr. Vidro
ao ser o objeto desse desejo que o levou à ação terrorista.
O filme termina justamente no momento em que deixa de funcionar na ordem
do suspense material e se transfigura num verdadeiro filme de super-heróis.
Shyamalan constrói
a gênese do herói, do homem que é empurrado à
ação a dupla herói-vilão é dilacerada,
cirurgicamente analisada nas metáforas da potência sem vontade
de Willis e na fragilidade impetuosa de Jackson. O herói de Shyamalan
é resultado de uma dimensão única: amálgama
entre a tomada de atitude e a condição física extra-humana.
Seguindo seu cinema em que o pôr-se-em-cena investiga as sintonias
de percepção espiritual de mundo (tanto no anterior O
Sexto Sentido quanto no belíssimo Sinais), Shyamalan
brinca de descobrir os signos do heroísmo no cotidiano banalizados
de um personagem a quem só resta uma opção acreditar
ou não na existência de seus poderes. Será essa mudança
cognitiva (que vai além da simples opção moral) que
fará dele um herói (assim como em Sinais é
a fé renovada do pastor Mel Gibson que trará a idéia
de sua salvação). Entre a percepção materialista
de mundo e o olhar mítico da vida, Shiamalan brinca de construir,
a partir de uma releitura pós-moderna, a imagem ícone do
super-herói e do super-vilão. A invenção da
superpotência é fruto de seu oposto mítico e componentes
de uma mesma dimensão. Desconectados um do outro, voltam a ser
apenas pessoas comuns, com problemas comuns, é o embate entre seus
dois núcleos simbólicos (a força pacata e a fragilidade
ardilosa) que os alça ao lugar de ídolos extra-humanos.
Shyamalan não
se interessa por desconstruir o mito do herói e do vilão,
seu filme é uma verdadeira ode à capacidade do cinema de,
através de seus tons de imagem, seus gestos narrativos, erigir
diante do mundo comum, os mitos espetaculares desse imaginário.
Não se tratam de naturezas diferentes, para Shyamalan, tratam-se
de literaturas, de campos cognitivos diferenciados. Dessa forma, Shyamalan
faz um precioso trabalho de observação da construção
de um mito que se redobra sobre o próprio mito (os personagens
do filme sobre os personagens das HQs lidas por Vidro), e gera novas formas
de sua expressão. Para qualquer fã de histórias em
quadrinhos ou interessado na constituição simbólica
do espírito norte-americano contemporâneo, Corpo Fechado
é um filme precioso, se colocando ao lado de Sinais como
belo exemplar de uma investigação intra-sígnica dos
mitos modernos da ameaça estrangeira e do heroísmo; do enredamento
pós-moderno entre a vida concreta e as dimensões mágicas
de sua percepção. Muito mais inteligente que o cinema caduco
da crítica do virtual, Shyamalan faz a investigação
imagética por dentro mesmo do mito do super-herói, realizando
um filme que merece uma observação cuidadosa e um desmembramento
plano-a-plano de sua criação. Corpo Fechado nos dá
algumas das mais preciosas bases para uma observação crítica
da construção narrativa/dramatúrgica dessa nova onda
de super-heróis que toma de assalto o cinema norte-americano nesse
início de século.
Felipe Bragança
|
|