Afinal, quem é o herói da América?


Mel Gibson em O Patriota de Roland Emmerich

0. O cinema americano, como todos sabem, é uma questão de heróis. O que funda a presença dos Estados Unidos na constituição de seu cinema como obra maior que testemunha a construção de seu país é uma série de fatos heróicos, começados por Griffith em duas obras decisivas (O Nacimento de uma Nação e Intolerância), passando por John Ford e a definição do western como gênero americano por excelência, passando ao filme de ação dos anos 70-80 e chegando a Steven Spielberg como último avatar, que cobre o passado (Amistad, A Lista de Schindler, O Resgate do Soldado Ryan), o presente (Contatos Imediatos) e até a predição do futuro (Minority Report). Existe aí, de forma precisa e clara, uma linha que pretende divagar sobre o "heroísmo à americana", sobre aquilo que funda os heróis, sobre como eles se comportam em relação ao seio da sociedade, como emergem naturalmente dela (ou não), como dependem (ou não) exclusivamente da boa vontade e do discernimento para tomarem as decisões certas1. Dos anos 60 pra cá, diversos filmes tentam compor um painel da sociedade americana e do nascimento do heroísmo dentro do seio dessa sociedade.

1. Deus Sabe Quanto Amei, de Vincente Minnelli (Some Came Running, 1959). Uma pequena digressão, antes de tudo. Se John Ford filmava os mavericks da nação americana para tentar descobrir como os Estados Unidos se formaram, Vincente Minnelli ignorava o épico para buscar nos dramas cotidianos um retrato instantâneo em polaróide da sociedade americana do século XX. Conseguiu, em Deus Sabe Quanto Amei, fazer para o cinema americano aquilo que a literatura americana tinha feito com Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway: o testemunho de uma América que abandonou seu papel pioneiro, sentou-se aconchegantemente em sua poltrona cheia de gadgets por todos os lados, trocando a coragem e o vigor pela segurança de um teto e pelo ideal comunitário dos suburbs, com seus casarões, jardins e crianças bem-alimentadas. A partilha das amizades em Deus Sabe Quanto Amei é impressionante a esse respeito: não há comunicação possível entre os dois estratos sociais. Frank Sinatra, Dean Martin e Shirley MacLaine, os únicos personagens do filme com um quê de pioneirismo ou talento dentro deles, só conseguem viver no bas-fonds, sendo presos, aviltados, bebendo compulsivamente e sendo olhados de esguelha pelo resto do vilarejo. A família de Sinatra, que representa a boa burguesia, pacata e hipócrita dessa vida de subúrbio americano, é filmada impiedosamente: o bom marido trai a esposa com a secretária, a mulher só pauta seus encontros visando o status social. Em 1959, Vincente Minnelli diagnostica na sociedade americana um racha fundamental: aqueles que desbravaram a América com seu ímpeto e coragem dividem-se agora entre vagabundos imprestáveis para a sociedade do conforto ou estão muito bem acomodados no seio dessa sociedade, mas tendo que viver uma vida de papelão (manter a boa imagem) para proteger os valores que sustentam suas vidas. Dentro de uma sociedade que já conquistou tudo que queria, qualquer gesto de contestação ou bravura é visto imediatamente do lado da insubordinação. Passa a ser caso de polícia. O artista, expulso da cidade em Platão, merece a prisão na América.

2. Impacto Fulminante, de Clint Eastwood (Sudden Impact, 1983). Se há um realizador que problematiza em toda a sua obra a relação entre alguns mavericks malditos e um seio de sociedade eminentemente passivo, indigno da posição que ocupa, esse é Clint Eastwood. Desde seus começos como ator na Itália, passando aos policiais e westerns de Don Siegel, Eastwood representa o homem que age por sua própria conta, com violência se preciso, para fazer aquilo que a justiça não consegue fazer por suas vias costumeiras. Basta lembrar o Coogan, xerifão do interior que procura um criminoso em Nova York em Meu Nome É Coogan (Coogan's Bluff, dir. Don Siegel, 1968), ou então Dirty Harry, o violento policial que ele primeiro interpretou nos filmes de Don Siegel e terminou por filmar ele próprio em Impacto Fulminante. A fábula é conhecida: a sociedade está tão repleta de marginais que a conduta sistemática e comedida da polícia não consegue resolver; então, é preciso apelar para um policial mais durão, que não se importe em quebrar certos ovos para que a omelete saia completa. Mas, bem sem vê, esse herói não nasce às custas da complacência da cidade. É um pária, um espírito de outros tempos, um "homem sem nome". Mas por mais questionáveis que sejam seus atos, ele nunca recebe "permissão" ou legitimidade moral para atacar. Ao contrário, seu desejo surge de puro senso de justiça, de raiva contra os infratores (uma raiva, aliás, muito pouco justificável para o senso comum americano, que condenou o filme). Em Impacto Fulminante, Dirty Harry é destacado para uma pequena cidade para investigar um assassino serial. Ele vai porque seu chefe está cansado de ouvir reclamações sobre seu comportamento explosivo, e acaba encontrando uma mulher (com a qual partilha também a cama, uma maneira de dizer "de certa forma somos iguais") que, tendo sido estuprada na adolescência junto com a irmã, volta para destruir os órgãos sexuais e depois assassinar cada um dos executores da curra. No fim, quando Harry-Clint descobre a identidade da assassina, deixa-a partir por acreditar que ela fez o que devia fazer. Embora o senso de justiça do filme seja um tanto distorcido para uma espécie de democracia universal em que até os condenados têm direito à vida, o protagonista do filme é menos um herói do que um anti-herói, defende mais o libertarianismo americano (o indivíduo livre para defender sua vida, mesmo que seja com um rifle) do que encarna os anseios da moderna sociedade familiar americana. Dirty Harry não nasce e não tem família. Sua ira é injustificável socialmente (o que o distingue, por exemplo, de um Charles Bronson na série Death Wish) e tem um significado mais ontológico – uma vontade de justiça que só pode ser resolvida fora dos expedientes costumeiros, tema que Eastwood perseguirá, dilapidará e purificará em sua carreira – do que existencial ou social.

3. O Preço de um Resgate, de Ron Howard (Ransom, 1996). O mesmo não se pode dizer de Mel Gibson, figura que decidiu substituir nos anos 90 o herói em busca de justiça representado por Clint Eastwood nos anos 80. O Preço de um Resgate teve uma repercussão muito menor do que seus dois smash-hits (no duplo sentido do termo, e dá-lhe smash), Coração Valente e O Patriota. Mel Gibson, seja ele o diretor de seus filmes ou não, é sempre o autor deles. Uma evidência decisiva: em seus filmes de heroísmo, há sempre uma mesma história traumática a ser contada – homem pacífico que quer apenas viver em paz (às vezes inclusive passando por covarde e velhaco) tem sua tranqüilidade familiar aviltada (casa destruída, filhos ou esposas que lhe são roubados ou mortos) e só assim toma consciêcia de que para garantir a sua paz é necessário também ir à guerra. Em O Preço de um Resgate, candidato junto com Oito MIlímetros (dir. Joel Schumacher) a filme mais fascista da década de 90, Gibson é o bom pai de família que tem seu filho seqüestrado. Depois de recorrer a todos os expedientes possíveis (fazer o jogo dos seqüestradores, depois fazer o jogo da polícia), ele decide partir à cata dos criminosos ele mesmo, com sede sanguinária e senso de que só ele pode resolver os problemas dele. O herói que daí nasce é em tudo diferente do herói de Clint Eastwood nos anos 80: ele tem um nascimento que o transforma em justiceiro universal, com legitimidade idem (o que teria valor mais universal para o americano do que a defesa incondicional da paz familiar? A metáfora nacional, "segurança interna", é o discurso que embasa toda e qualquer hipótese de guerra do governo americano pós-11 de setembro), com direito de agir moralmente imune a críticas até que consiga seu objetivo. Existe maior metáfora ao governo de George W. Bush e à América pós-11 de setembro do que os filmes de Mel Gibson?

4. Coração Valente, de Mel Gibson (Braveheart, 1995). William Wallace foi um dos libertadores da Escócia no século XIII, lutando com um exército menor e não-profissional contra as opressoras forças da Inglaterra, em nome da liberdade de seu país. O que levaria Mel Gibson a realizar tal filme nos Estados Unidos, país que na década de 90 não tinha mais razão nenhuma para lutar por sua liberdade, não precisava garantir a ocupação de suas terras e muito menos tinha fronteiras sendo ameaçadas? Uma sinopse mínima da vida de William Wallace, aliás, serviria para repreender os americanos acerca dos ataques passados na Coréia e no Vietnã ou os vindouros no Afeganistão e no Iraque. Ou então, e mais ainda, a ocupação isrealense dos territórios palestinos, ocupação essa que os americanos defendem incondicionalmente. Mas o que faz de William Wallace um herói tipicamente americano? Sua origem. Vivendo num país ocupado, tendo tido sua comunidade e depois seu pai assassinados pelo exército de ocupação inglês, William Wallace cresce como um pacifista (apesar de exímio lutador) até que, querendo casar-se, a coroa inglesa reinstitui o direito de prima noctes – direito feudal em que a primeira noite de uma recém-esposa vassala deveria ser de posse de um nobre. Aviltando seu senso de justiça, é só a partir daí que Wallace passa a gritar seu famoso grito, que repercutirá até sua morte nas mãos do carrasco inglês: "Liberdade". Só que essa liberdade, no entanto, não tem valor universal: é sim uma liberdade contingente, que só vale quando o país opressor passa a acabar com a liberdade individual dos ocupantes, invadindo-lhes seu seio familiar para lhe roubar as esposas. Liberdade que não significa o direito de ter suas terras livres da invasão alheia, mas o direito de continuar tendo uma vida familiar intocada no seio de qualquer regime.

5. O Patriota, de Roland Emmerich (The Patriot, 2000). Mas o que mais espanta, de todos os heróicos filmes de Mel Gibson, é o quanto o heroísmo na verdade merece receber um nome muito menos honroso de vingança. Nos grandes discursos de heroísmo, há primeiro uma sede de justiça individual que é transformada em vontade de justiça universal, na vontade de proteger quem quer que seja, porque a evolução natural do conceito de liberdade é estendê-la a todos, de forma que se possa viver numa comunidade livre. Se isso existia em alguma medida (mas pequena, não sendo de forma nenhuma o cerne do filme) em Coração Valente, essa dimensão está totalmente fora de O Patriota. Bem-visto, o filme não é senão o remake de O Preço de um Resgate no meio da Guerra de Independência americana. Mais uma vez os ingleses (agora exército britânico) são impiedosos e destróem tudo que vêem pela frente. Infelizmente para eles, destroem também a família e a casa de Mel Gibson, ex-herói de guerra aposentado. Tendo anteriormente se recusado a guerrear em nome do sentimento familiar (na ausência da esposa, morta, tinha uma família para cuidar), Gibson sente-se o próprio sentenciador de sua família quando um sanguinolento oficial inglês tira a vida de seu segundo filho mais velho e manda queimar a casa por ter dado guarida a feridos tanto dos Estados Unidos quanto da Inglaterra. Lição aprendida: pacifismo não vale de nada, só se defende a paz guerreando (e que possibilita um corolário: se pudermos realizar uma guerra preventiva para impedir a morte de nossos filhos, nós a faremos). Mais uma vez esse herói nasce a partir da quebra do direito da inviolabilidade da família (o mesmo tácito direito defendido pelo presidente americano quando defende a volta do último filho vivo em O Resgate do Soldado Ryan de Steven Spielberg), mas em O Patriota a questão não é mais a luta pela liberdade contra os ingleses. O que importa ao personagem de Mel Gibson é bem específico – dir-se-ia que é o único motivo que o levou a criar uma milícia, treinar seus homens e lutar contra os ingleses –: matar o homem que matou seu filho. A guerra deixa de defender territórios, idéias ou até estratégias: ela assume um caráter personalista, de vingança pessoal. Impossível não ver o eco de uma invasão ao Afeganistão com base no nome de uma pessoa (Osama Bin Laden) ou a invasão no Iraque ser feita com fins de derrubar também um só homem (Saddam Hussein). Os Estados Unidos, que uma vez cumpriram um fundamental papel jurídico e social na implementação de conceitos universais e na despersonalização – ou, em sentido positivo, universalização – dos conceitos de liberdade individual, agora repersonaliza todos os seus conceitos. "Guerra justa" é só mais uma forma de dizer "Guerra santa". Nos filmes de Mel Gibson, essa sede de vingança travestida de desejo de liberdade é defendida com tanta avidez quanto um fundamentalista defende seu deus. O Patriota é tão mais interessante quanto vamos percebendo, ao longo do filme, que não há propriamente patriotismo. O que há, e só o que há, é uma relação homem-homem baseada na vingança. Mas se o título fala "patriota", o que essa palavra quer dizer para seu realizador (seja ele Emmerich ou Gibson)?

intermezzo: O papel singular de Mel Gibson como o herói da violência e da individualidade fundamentalista americana foi notado por dois realizadores que tentaram utilizá-los, com resultados muito diversos, para dar uma outra visão de América. Em O Hotel de um Milhão de Dólares, Wim Wenders fez de Mel Gibson uma espécie de robocop em mau funcionamento, com funções ridículas de vigilância e uma esterilidade acachapante. Em Sinais, de M. Night Shyamalan, o terrível defensor do seio familiar revela ser antes de tudo uma pessoa temerária diante do ataque externo (de extraterrestres). Mesmo que no fim de Sinais a família prevaleça – o que faz o homem reagir é um chamado "das tumbas" de sua mulher e a ameaça à vida do filho –, ela prevalece como base da crença (elemento fundamental no cinema de Shyamalan), mas não existe de fato. A América de Shyamalan é mais sonho frustrado do que realidade vivida.

6. O Mensageiro, de Kevin Costner (The Postman, 1997). Com Kevin Costner, a idéia de heroísmo se reconfigura completamente. Junto com Mel Gibson a outra representação do herói americano nos anos 90, seus dois filmes sobre construção ou reconstrução dos Estados Unidos têm dois leitmotifs: a bandeira americana e a consolidação de seu solo, os grandes nacos de sua geografia. E, sobrevoando todos os dois filmes, a responsabilidade e o risco de ser herói (tema particularmente tocante em O Mensageiro, embora o resultado seja bastante irregular). O Mensageiro se passa em 2013, depois de um desastre que teria feito o mundo retornar à época das pequenas comunidades e bandos, com tecnologias apenas rudimentares, mecânicas, básicas. Nesse cenário em que os Estados Unidos tornaram-se apenas milhares de comunidades fragmentadas, uma horda bárbara tomará de assalto todas as comunidades, recrutando os jovens mais fortes e humilhando os líderes de cada comunidade. Kevin Costner passa por todos os percursos: vira soldado do espartano exército bárbaro, depois consegue escapar e, fantasiado de carteiro por motivos de sobrevivência, convence a comunidade de uma pequena cidade que os Estados Unidos voltaram como nação e que ele é um enviado especial do governo para fazer a união do povo americano através do correio. Sem mesmo querer, o novo carteiro acaba sendo o apóstolo de uma nova crença, de uma reunificação espiritual que acaba apaixonando os jovens de cada cidadezinha e reiniciando, em progressão geométrica, um serviço postal que serve para enviar cartas mas sobretudo esperança às mais diversas localidades. Mais uma vez, o que está em jogo não é a definição territorial dos Estados Unidos (esse problema eles já resolveram há séculos), mas antes a reconstrução simbólica de um país, o sentimento de patriotismo, de lutar pela sua unidade federativa. É só nessa chave, aliás, que o vacilante e sempre incrédulo herói que representa Kevin Costner (muito longe, precisa ser dito, da truculência vingativa de Mel Gibson) pode dizer, quando o vilão o provoca sobre não acreditar em nada: "Eu acredito nos Estados Unidos". Essa progressão de sentimento, implausível para quem já tinha visto duas horas e meia de heroísmo acidental e recusa de totalização, seria facilmente crível se nosso herói falasse: "Eu acredito no ideal desses meninos que me seguem" (pois poderia muito bem ser um razoável filme sobre contaminação de ideais). Como está, permanece apenas um ufanismo incoerente e estéril. O herói, mesmo que nasça como bufão, é orgânico (nasce no meio de uma sociedade que precisa de um) e positivo.


Dança Com Lobos, de Kevin Costner

7. Dança Com Lobos, de Kevin Costner (Dances With Wolves, 1990). Anos antes, Kevin Costner havia feito um retrato muito mais interessante da terra americana e dos valores dos antigos pioneiros que desbravaram o território. Novamente o relato iniciático de construção do herói se faz por meio de um acaso. Ferido de uma perna, prestes a vê-la amputada pelo médico da campanha, ele decide se fazer matar passando com um cavalo ao longo da cerca dos inimigos. Resultado: eles não conseguem alvejá-lo e incrivelmente sua ação dá início a um contra-ataque vencedor. De suicida a herói, o Tenente John Dunbar, finda a Guerra da Secessão que ele ajudou a ganhar, decide realocar-se para um posto do exército longe de tudo, na fronteira com os povos indígenas – "Porque é uma coisa que logo acabará", responde ele ao ser perguntado do porquê de tão estranha escolha –, e lá terá que reiniciar uma vida inteira, sozinho. Homem da natureza, em paz com o solo e com as intempéries, Dunbar é ao mesmo tempo um homem que pode representar o sonho americano do século XIX de Emerson ou de Whitman e o americano índio sioux, que faz da terra um não-território, uma presença móvel, faz do nomadismo uma casa. A socialização com os índios vem mais cedo ou mais tarde, assim como a lida com o novo ambiente: um cavalo que aparece, um lobo que aprende a ser seu amigo, os búfalos que não tardam a chegar. Dunbar, condecorado oficial do exército americano, se maravilha com os costumes sioux até, progressivamente como num filme de Polanski em que o personagem realmente se encontrasse, tornar-se um dos membros da tribo (ganha o nome-título de "Dança com lobos"). Nesse majestoso filme de interpenetração de culturas e de convívio pacífico entre diferentes, a bandeira americana é revirada ao contrário, e o colonizador torna-se assassino: invade sem pedir licença, atira antes para não precisar perguntar depois. Se há heroísmo à americana no filme, ele é utilizado contra a América, ou ao menos contra a América que venceu. Lançado pouco antes da Guerra do Golfo, Dança com Lobos mostra que a tão propalada liberdade americana não se soletra como os grandes homens parecem promover. História contra-corrente, exuberante (a cena da caça aos búfalos é inacreditável), Dança com Lobos será o único exemplo de filme contestatório da história e do direito americano a invadir território alheio a ser laureado na década com uma grande noite de prêmios da Academia.

8. Gladiador, de Ridley Scott (Gladiator, 2000). Dez anos depois, o foco muda completamente. Russell Crowe parece Mel Gibson renascido mais forte e truculento, e renasce mais poderoso ainda. O discurso, entretanto, permanece o mesmo: homem pacato, apesar de grande general do Império Romano, e respeitador, com um nome e uma família a zelar, é traído, tem sua família destruída (mãe e filho, numa seqüência particularmente sangrenta, splatter até). Russell Crowe então é vendido como escravo e, através de uma série de peripécias, acaba indo servir de espetáculo da morte no Coliseu. Para surpresa de todos, passa a ser um grande gladiador, e naturalmente consegue ganhar novamente sua liberdade ao vencer, em combate, o homem que mandou destruir sua família. Todos os excessos de sangue, acompanhados da filosofia do espetáculo à Ridley Scott – "I am an entertainer!", brada o promoter do Coliseu –, fazem de Gladiador um repugnante exemplo de justiça a qualquer preço, legitimidade do sangue, moral límpida (nenhum questionamento da parte do gladiador Crowe), amostras generosas de violência travestida de bravura (quando alguém como Scorsese, em sua carreira mas especialmente em Gangues de Nova York, filma somente a violência, e talvez por isso muita gente se espante com tanto sangue injustificado moralmente). Gladiador poderia tranqüilamente ser o filme que George W. Bush indicaria para os soldados americanos assistirem antes de atacar as tropas republicanas do Iraque. Até a dimensão de "circo de horrores" do filme conjuga-se com a idéia de "guerra de mídia" armada pela censura oficial, pelos ataques a jornalistas e pela imprensa propagandista americana (CNN e Fox News parecem informes estatais).

9. O Estranho Sem Nome, de Clint Eastwood (High Plains Drifter, 1984). Como saída a essa pasmaceira moral de achar que sempre têm a razão límpida e o direito moral de agirem em nome de algum valor universal, com legitimidade seja de nação ultrapotente ou nação defensora dos regimes democráticos (como vende à torta e à direita), com a idéia do herói orgânico americano criado por uma situação social e respaldado por essa mesma sociedade, respondem dois filmes de Clint Eastwood. No primeiro, O Estranho Sem Nome, Eastwood vive seu personagem mais mitológico: um fantasma que aparece do nada e volta ao nada, mas que faz sua aparição justamente para resolver uma situação de injustiça da qual são culpados todos os habitantes do vilarejo conjuntamente. Relato sobre a construção de uma cidade (ou um país, por extensão) sobre as cinzas da intolerância e da infâmia – que encontra ressonâncias inesperadas com A Bruma Assassina, de John Carpenter, filme também sobre uma comunidade construída sobre um ato de covardia – O Estranho Sem Nome faz do herói um constante pária, um homem inaceitável para a sociedade porque ele traz novamente à tona todos os podres de seus habitantes, revela todos os jogos de bastidores que constituem a essência da tomada de poder por cada grupo. Se justiça há, ela não pode ser realizada por um verdadeiro herói, muito menos por um herói orgânico nascido no seio dessa comunidade: ele precisa vir do exterior, não compactuar com os jogos de pose dos poderosos, e sentenciar sem piedade cada um ao lugar que merece, a partir de seu comportamento quando instaurada a situação de infâmia. Retrato do herói enquanto fantasma: a sociedade americana doente já não pode mais criar seus heróis.

10. Poder Absoluto, de Clint Eastwood (Absolute Power, 1997). Retrato do herói enquanto fora-da-lei. A outra costumeira figura de Clint Eastwood, o fora-da-lei – basta ver como em Um Mundo Perfeito o ladrão Kevin Costner incarna todo o lado positivo da paternidade (responsabilidade e educação) enquanto a polícia representa justamente o lado ceifador, incompreensivo e estúpido da tutela – será a única testemunha e o único homem capaz de salvar os Estados Unidos de uma situação de mentira. Qual seja: quando vai assaltar uma casa, nosso sofisticado ladrão-pintor (o próprio Eastwood, claro) presencia a morte de uma mulher em que o assassino é nada mais nada menos do que o presidente americano. No dia seguinte, pela televisão, ele assiste ao presidente americano abraçado com o viúvo, prometendo achar o criminoso e realizar justiça. O último estágio está atingido: o presidente americano não é alguém por quem se deva lutar, muito menos alguém que se deva ouvir sobre o que realmente acontece com o mundo. Como no excelente e curiosamente esquecido Our Gang, de Philip Roth, o que os chefes de gabinete americanos criam como versão oficial de um fato não é nada mais que uma mentira útil, límpida e pronta para atender as necessidades econômicas e bélicas do país (no livro de Roth, o assassinato do presidente americano é desculpa para achar o bode expiatório num ex-esportista que abandonou o baseball para viver na Dinamarca; o que não se imaginava é que, desde o 11 de setembro, o plano de atacar o Iraque ressurgira como pauta do exército americano mesmo antes de ser pesquisada a autoria do atentado). Mais uma vez, só um fora-da-lei, um ladrão artista, será capaz de restituir a justiça em uma determinada comunidade. mas se engana quem imagina que Eastwood faz disso o escândalo que outros cineastas fariam. Para Eastwood personagem tanto como para Eastwood artista, essa é provavelmente apenas uma das grandes séries de mentiras proporcionadas pelo marketing – oops, relações públicas – presidencial. A ponto de, ao final do filme, escolher para filmar não a derrocada do presidente, mas o reflorescimento da relação pai/filha, uma metáfora distante mas bela (sem a mentira, os laços comunitários podem voltar a se estabalecer novamente). Lição aprendida: talvez em algum momento tivesse havido nos Estados Unidos a possibilidade de um herói que representasse e defendesse os valores de sua sociedade; hoje, se há heroísmo possível, ele só pode surgir fora da sociedade, e contra ela (uma vez que todos, em alguma medida, parecem se aproveitar dessa infâmia originária para fazer seu pé-de-meia e se estabelecer).

Herói índio, herói fantasma ou herói fora-da-lei, as figuras heróicas dos grandes filmes americanos sobre bravura nos revelam uma sociedade cansada, necessitada de heróis mas ao mesmo tempo necessitando conjurá-los. Talvez a saída seja mesmo o heroísmo ficcional de brincar nos jardins alheios para dar impressão de segurança interna a sua sociedade. Mas até quando? E a que custo para os próprios americanos? Precisamos de mais fantasmas.

Ruy Gardnier


1. De certa forma, a crítica de Minority Report já elabora alguns dos temas do herói americano. Uma frase desse texto pauta e já serve de ponto de partida para investigar os heróis da América, em sua presunção de que são um país "certo" e como essa genealogia da certeza apoarece nos filmes americanos: "Os Estados Unidos são o país que, graças às liberdades individuais, pode traçar diferentemente o lugar que o destino lhe concedeu"