Milos
Forman no estranho
ninho da América


Jim Carrey é Andy Kaufman em O
Mundo de Andy de Milos Forman
Revoluções
e perplexidades
Durante a década de 60, o evento da
nouvelle vague detonou um crescimento do interesse pelos cinemas
nacionais oriundos dos mais diversos países. Os cineastas da Tchecoslováquia,
aproveitando um período de distensão e relativa liberalidade
no regime comunista de seu país, conhecido como "primavera
de Praga", passaram a ter um certo espaço para o exercício
de um cinema com um conteúdo de crítica social, fugindo
aos ditames do realismo socialista. A repercussão de tais filmes
no mercado internacional, em especial nos EUA, pode ser medida, além
de premiações em diversos festivais, por quatro indicações
consecutivas ao Oscar de melhor filme em língua estrangeira, que
acabaram por converter-se em vitória para A Pequena Loja da
Rua Principal, em 1965 e Trens Estreitamente Vigiados, em 1967.
Os dois filmes derrotados, Os Amores de
Uma Loura (em 1966) e O Baile do Bombeiro (em 1968) eram comédias
dirigidas por um jovem Milos Forman, que estreara em longa-metragens com
Black Peter (1963). Em 1968, tropas soviéticas invadiram
a Tchecoslováquia, reestabelecendo um regime de força. Forman
passa, então, a ser considerado persona non grata e perseguido,
principalmente devido às críticas ácidas à
burocracia estatal de O Baile do Bombeiro. Para continuar filmando,
foge de seu país e se radica nos EUA onde, mesmo sofrendo as barreiras
da língua, logo consegue emplacar um projeto extremamente pessoal:
Procura Insaciável (Taking Off).
Período extremamente rico em transformações,
a virada das décadas de 1960 e 1970 vê florescer em todos
os campos uma nova cara para o mundo, imposta pela juventude através
da música, da sexualidade, da utilização romântica
das drogas, das marchas pela paz, da contracultura. É’ em meio
a este turbilhão que Forman chega à América, constatando
a forma como esta revolução de costumes estaria sendo encarada
por membros da geração dos pais destes jovens, então
na casa dos 40 anos e que havia sido criada durante os conservadores anos
50, período de intensa paranóia anti-comunista e banhado
na valorização de tradições famíliares
e divulgação do american way of life. É deste
choque que trata Procura Insaciável, lançado em 1971
e que conta a história de um casal da classe média suburbana
novaiorquino (Buck Henry e Lynn Carlyn) em sua procura pela filha adolescente
que sai de casa, numa situação que logo nos traz à
mente a canção She’s Leaving Home, dos Beatles.
E a força da música sobre a
juventude não passa ao largo do olhar de Forman; as primeiras sequências
do filme mostram uma audição onde se apresentam diversas
moças aspirantes a cantoras, entre elas Carly Simon e uma jovem
e não tão gorda Kathy Bates (usando o nome Bobo Bates a
interpretando uma canção de sua autoria). É aí
que a filha do casal protagonista encontra um novo mundo e um novo amor,
enquanto seus pais começam a sentir que vivem em uma realidade
da qual pouco entendem, mas que aos poucos precisarão tentar absorver,
num primeiro momento através de formas mais tímidas, como
terapias de hipnose para parar de fumar ou na surpresa da esposa sobre
a intensa vida sexual do casal amigo. Quando a filha regressa à
casa pela primeira vez, após a audição, encontra
o pai completamente embriagado a inquirí-la sobre drogas, como
se ele próprio não fosse quém estava de fato drogado.
Sendo obrigados, ao tentar descobrir o paradeiro
da filha, a sair da segurança seu mundo suburbano, Henry e Lynn
passam a confrontar-se com personagens e situações através
dos quais Forman aproveita para exercitar todo o senso de crítica
social e o humor ácido que havia caracterizado seus filmes da fase
tcheca. Tamanha seria a quantidade de jovens que saía de casa para
um mundo que lhe oferecia novas opções de vida, que Procura
Insaciável retrata seus pais reunidos em associações
através das quais tentavam "não somente encontrá-los,
mas também entendê-los". Desta forma, nossos protagonistas
passam por uma reunião na qual, em uma hilária sequência,
o ator Vincent Schiavelli (uma marca registrada do diretor, aparecendo
em quase todos seus filmes desde então) ensina um grupo de pais
aparvalhados como confeccionar e fumar um baseado. Doidões, são
acompanhados por outro casal à sua casa, em um jogo de strip
poker que atalmente desembocaria em sexo grupal se não fosse
a chegada da filha chocada.
Transgressões versus tradições
Já neste primeiro filme americano
estariam esboçadas uma série de características que
se repetiriam ao longo de toda obra de Forman, como o retrato de situações
e personagens de alguma forma transgressores, mas cujas trangressões
acabarão por causar alguma forma de reação que acabaria
por sufocá-los. Uma espécie de confrontação
entre uma América criativa e/ou renovadora e seus valores mais
conservadores e tradicionais, que mesmo aceitando parcialmente a diversidade
quando esta se mantém dentro de certos limites, a rejeita quando
tais limites são ultrapassados, segregando e perseguindo de maneira
não muito diversa aos regimes totalitáros do leste europeu,
tão por ela execrados. E estas forças de transgressão
estariam explodindo durante a década de 70, a julgar pela presença
de uma geração de cineastas (Coppola, Scorsese, DePalma,
Cimino) que, nesta época, renovava o cinema americano, perdendo
força e independência a partir dos anos 80, por uma série
de fatores, tanto de ordem econômica como política. Forman,
em trabalhos posteriores demonstraria claramente seu fascínio pela
década de 70.
Já no filme seguinte, esta figura
transgressora estaria definida em sus forma mais emblemática, o
MacMurphy (Jack Nicholson) de Um Estranho no Ninho/One Flew Over the
Cuckoo’s Nest (1975). Adaptando um romance cultuado pela juventude
dos anos 60 sobre um presidiário que, fugindo à árdua
rotina da cadeia, faz passar-se por desequilibrado mental e vai para um
hospital psiquiátrico, retratado por Forman como um microcosmo
da sociedade americana. Os pacientes, uns mais outro menos loucos, formam
a princípio uma massa passiva, submissa ao comando da enfermeira
Ratchett (Louise Fletcher), representante de uma sociedade reguladora
e conservadora, com normas inflexíveis. Ao assumir aos poucos o
papel de líder e consciência de seus colegas de internação,
MacMurphy, um personagem de conduta marginal (preso por fazer sexo com
uma menor, figura de franca sexualidade e dotado de um incomum senso de
"malandragem", não característico da sociedade
americana), entra cada vez mais em choque com Ratchett, que não
aceita seu comportamento libertador, caracterzado como "certamente
não louco, mas perigoso", anulando-o de todas as formas possíveis.
Faz-se interessante a percepção
das formas através das quais MacMurphy vai aos poucos levando o
grupo à coesão, utilizando-se de atividades ligadas a uma
identidade do americano médio: apostas, pescaria, assistir basebol
na TV e, principalmente, jogar basquete. Mesmo contando com indivíduos
conformistas e medíocres, como Harding (William Redfeld), o grupo
vai aos poucos conscientizando-se de sua força e independência
como tal, daí o "perigo" detonado por MacMurphy, em especial
para Billy (Brad Dourif), espelho de uma juventude castrada e oprimida.
Igualmente interessante é a critica ao sistema eleitoral americano,
durante as votações para que a rotina do hospital seja alterada
para que os pacientes possam assistir jogos pela TV, sempre manipuladas
por Ratchett. Ou na forma como a estrutura do hospital reproduz de certa
forma a segregação étnica dos EUA, com os brancos
no comando, os negros em funções serviçais (vigias,
faxineiros, auxiliares) e os índios, como o Chefe (Will Sampson),
visivelmente anulados, sem espaço para manifestar-se como indivíduos.
Mas curiosa, mesmo, foi a aceitação de Forman pela América
oficial, com Um Estranho no Ninho conquistando Oscars em todas
categorias principais.
É, portanto, com a bola cheia que
Milos Forman retorna ao mundo das transformações e da contracultura
do final dos anos 60. E se Procura Insaciável apresentava
o ponto de vista de seus pais, Hair (1979) retrata, ainda que de
forma romântica e idealizada, os jovens de então, novamente
em confronto com uma nação conservadora e belicista. Assim
Claude (John Savage), convocado para a gurrra do Vietnã, parte
de um interior escuro e acinzentado, para uma Nova York musical e colorida,
onde os hippies liderados por Berger (Treat Williams) queimam cartas
de convocação, cantam músicas de sacanagem ("Sodomy,
fetatio, cunnilingus, pederasty, father...why do these words sound so
nasty?") para dondoquinhas que andam a cavalo, usam drogas e fazem
sexo sem culpa. Claude Hooper Bukovski, como caracterizado pela letra
da canção Manchester, seria um descendente dos fundadores
da nação e imigrantes (como Forman), dividido entre valores
tradicionais (" ...I belive in God!...") e uma modernidade ("...pretend
he’s Fellini and Antonioni..."). Esta divisão de ideais fica
também clara nos delírios nos quais o personagem, após
consumir LSD, imagina uma cerimônia de casamento com Sheila (Beverly
Dangelo).
Mesmo em meio a números musicais,
a veia crítica de Forman manifesta-se de forma intensa, seja na
forma meio ridícula com que a pompa burguesa é apresentada
quando Claude, Berger e companhia penetram na festa da família
de Sheila, seja na apatia dos pais de Berger, seja nos militares homossexuais
durante o número Black Boys/White Boys. E de maneira ainda
mais forte quando o discurso de um oficial (interpretado pelo grande cineasta
Nicholas Ray) é interrompido por canções pacifistas
que saem clandestinamente de auto-falantes que serão literalmente
massacrados pelas armas militares.
Retrato de uma época
Talvez o momento mais ambicioso da obra de
Forman, Na Época do Ragtime/Ragtime (1981) faz um painel
da Nova York do início do século XX, nos anos que antecederam
à 1ª guerra mundial, adaptando fielmente o romance de
E. L. Doctorow. Um período, assim como os anos 60, de transformações
culturais marcantes, definido como "quando a América começa
a perder sua inocência". Planejado, inicialmente, para Robert
Altman, e abraçado com toda a força por Forman, temos uma
estrutura narrativa complexa, com diversos núcleos de personagens
gravitando em torno de uma quase anônima família de classe
média suburbana que vê seu cotidiano marcado, e aos poucos
desestruturado, através do contato com figuras representativas
de uma América em renovação e turbulência (de
certa forma, à semelhança de Procura Insaciável).
Reforçando este anonimato, tanto no romance como no filme, os membros
da família não têm nome, sendo apresentados apenas
como o Pai (James Olson), a Mãe (Mary Steenburgen) ou o Cunhado
(Brad Dourif). Como bom defensor dos valores de seus país, o Pai
é o dono de uma fábrica de "produtos patrióticos"
como bandeirinhas e fogos de artifício usados em manifestações
fetivas de cunho nacionalista, homem que preserva valores tradicionais
de religião (nas orações à mesa) e trabalho
árduo.
Na Época do Ragtime ilustra
um momento no qual o cinema começa a se apresentar como um produto
de massas, tanto como divulgador de notícias (o filme é
perpassado pela apresentação de cine-jornais), como também
produtor de entretenimento e novas fortunas (o pobre imigrante judeu que
desenhava silhuetas nas ruas, vivido por Mandy Patinkin, reaparece no
final como um cineasta em ascensão) e no qual a indústria
jornalística já se alimenta de escândalos sensacionalistas,
como o assassinato cometido pelo ciumento marido da jovem e bela Evelyn
Nesbitt (Elizabeth McGovern), que, da noite para o dia atinge um status
de celebridade. Momento não muito diverso do contemporâneo,
onde advogados maliciosos tramam artimanhas para manipular a legislação
e preservar a impunidade de clientes ricos enquanto um negro como Coalhouse
Walker Jr. (Howard E. Rollins) se vê humilhado e privado de acesso
à justiça.
Tão contundente em seu retrato de
um período banhado em uma realidade de violência que parece
praticamente não ter se modificado como Gangues de Nova York
de Martin Scorsese, Na Época do Ragtime tem em Coalhouse
Walker Jr. seu principal herói trangressor, na figura de um negro
que ascende financeiramente como músico, mas que, ao comprar um
carro (então um produto ainda raro), desperta a inveja de um grupo
de bombeiros brancos que acabam por depredá-lo. Mesmo que, a princípio,
sendo movido mais por forte orgulho e vaidade, após a morte de
sua noiva, é levado a cometer atos de terrorismo e violência
que culminam com a tomada por seu grupo de uma biblioteca com rico acervo
artístico e literário. Mas acima de tudo temos uma afiada
descrição de um quadro de ódio que, com o passar
dos anos, parece ter se intensificado, onde a polícia que atira
em Coalhouse quando este, após uma negociação, deixa
a biblioteca desarmado, não difere muito do exército que
investe contra civis iraquianos.
No resto da década de 80, Forman deixa
de utilzar os EUA como tema e cenários dos seus filmes, voltando-se
para a Europa de fins do século XVIII em duas produções
que alternam uma consagração absoluta (Amadeus, de
1984, e seu caminhão de Oscars) e um facasso imerecido (Valmont,
de 1989, adaptação de As Relações Perigosas
de Chordelos de Laclos, prejudicada por ter sido lançada um ano
após a versão de Stephen Frears para o mesmo livro). Mas
em ambos preserva-se a figura de um protegonista, a seu modo, transgressor.
Como o genial e infantil Mozart (Tom Hulce) em confronto à mediocridade
reacionária de Salieri (F. Murray Abraham). Ou o Visconde de Valmont
(Colin Firth), num registro diferente da composição maquiavélica
do mesmo personagem por John Malkovich para a fita de Frears.
Dois estudos de casos
Milos Forman volta à realidade americana,
na década de 1990, com dois filmes sobre personagens reais, sempre
com o perfil transgressor, que tanto lhe é caro, dando sequência
a uma trilogia escrita pelos roteiristas Scott Alexander e Larry Karaszewski
e iniciada com Ed Wood, de Tim Burton (1994). Aqui não mais
de forma simbólica, mas apossando-se de uma realidade tão
intensa que, por vezes, mais parece ficção. O primeiro deles
foi O Povo contra Larry Flint/The People versus Larry Flint (1996),
sobre o magnata da pornografia, editor da revista Hustler. O Larry
(Woody Harrelson) de Milos Forman mais parece uma versão ampliada
de MacMurphy, em sua cara-de-pau, sexualidade e malandragem, que até
chega a também ser internado num hospital psiquiátrico.
Mas, por outro lado, como o Pai de Na Época do Ragtime,
quer apenas ganhar seu dinheiro honestamente, só que, ao invés
das bandeirinhas americanas deste último, fabrica produtos não
aceitos de forma aberta pela puritana sociedade americana, como bebida
ilegal, prostituição e pornografia, mas consumidos amplamente
de maneira velada pelar mais diversas camadas desta sociedade. Típico
fruto dos anos 70, mesmo sendo notadamente uma figura de caráter
duvidoso, Larry Flint é alvo de injustiça semelhante à
praticada contra Coalhouse, já que, vítima de uma de uma
tentativa de homicídio que o deixa paralítico, jamais viu
as investigações sobre o caso concluídas ou algum
suspeito punido.
Flint se bate constantemente contra esta
justiça nada imparcial, reflexo de uma América hipócrita
e preconceituosa, que volta-se contra ele pelo fato deste não possuir
limites para exibir em suas publicações uma nudez exagerada
ou um humor grosseiro e escrachado. Mas Larry é osso duro de roer
e, sempre que é atacado pelas instituições oficiais
americanas, apropria-se de suas próprias armas, como seu discurso
de liberdade de empreendimento e expressão, ou mesmo da utilização
sensacionalista de símbolos religiosos ou da própria bandeira
americana, que veste como fralda em uma ida ao tribunal. Parece dizer
que o ideal americano não é uma exclusividade de um mundo
oficial e conservador, mas também de uma espécie de sociedade
marginal, que o tal mundo conservador tenta constantemente negar ou escamotear.
E o filme não deixa de constatar o contraste entre a liberalidade
dos anos 70 e a reação conservadora a partir da década
de 80, caracterizada pela era Reagan.
Mais singular ainda é o caso de Andy
Kaufman, figura central de O Mundo de Andy/Man on the Moon (1999).
Visto pelo público e pela indústria de entretenimento como
um cômico ou humorista, Andy (Jim Carrey) não se entendia
como tal, mas sim como um artista de vanguarda, sempre procurando ultrapassar
os limites entre realidade e representação. Seu principal
objetivo não era entreter ou fazer rir, mas "...causar uma
reação visceral", levando a platéia a vivenciar
a experiência: "Podem me amar, me odiar, ir embora, tudo bem...".
E é sobre esta faceta de artista tansgressor, e não sobre
sua vida pessoal, que Forman direciona seu foco neste seu trabalho mais
recente até o momento.
Numa indústria que espera que o artista
passe o resto da vida fazendo a mesma coisa que o consagrou, como o mecânico
estrangeiro Latka Gavras do popular seriado Taxi (que ele, por
sinal, detestava), a dublagem do Supermouse ou a imitação
de Elvis, a partir de certo momento Andy acredita que a audiência
espera que ele a choque o tempo todo e que precisa estar sempre um passo
a frente. Na verdade Andy é uma criança grande e o público
seu brinquedo preferido, mas, como os brinquedos vivos de Toy Story,
estes podem rejeitar o dono, quando este não lhes dá o que
desejam, e assim foi com o público americano, que passou a rejeitar
Kaufman. Não coincidentemente, esta rejeição se dá
no início dos anos 80, com a já citada e nefasta era Reagan,
o que, indiretamente, parece ter contribuído para a prematura morte
de Andy por câncer no pulmão, ocorrência rara em uma
pessoa, como ele, de hábitos saudáveis (vegetariano, não
fumante, praticante de meditação transcendental).
Resta agora aguardarmos qual será
o próximo passo de Milos Forman, um estrangeiro que desde que chegou
aos EUA, jamais deixou de pensar o país que adotou de forma reflexiva
e coerente. Ao contrário de seus personagens que vão sucessivamente
perecendo às pressões do sistema (McMurphy, Berger, Coalhouse,
Mozart, Valmont e Andy Kaufman morrem ao fim dos filmes; Larry Flint sobrevive,
mas aleijado, solitário e desencantado), Milos Forman persiste
a seu modo, perfeitamente integrado à imperfeita sociedade à
qual retrata.
Gilberto Silva Jr.
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