Cinema
catástrofe, prazer
estético e política:
Os Estados Unidos
e a última possibilidade de utopia


Armageddon
de Michael Bay
Eu tinha dez anos quando meu avô me
levou para ver Meteoro, filme proibido para menores de 14. Mas
a excitação de ter burlado a censura se transformou numa
das experiências mais frustrantes da minha infância: lembro-me
perfeitamente da enorme decepção com o final feliz, a Terra
salva da destruição depois que o asteróide de oito
quilômetros se estilhaçava ainda no espaço, vitimado
por mísseis atômicos. Quando menino, eu era virtualmente
dividido entre o pânico do fim do mundo e uma enorme vontade de
vê-lo concretizado, pelo menos na fantasia do cinema. Por isso o
herói do filme (vivido por Sean Connery) tornou-se um vilão,
o chato que impediu aquela pedra gigante de cumprir sua missão
apocalíptica.
Meteoro é uma produção
de 1979 lançada no Brasil em 1980 (bem no finzinho, portanto, de
uma das épocas de ouro do filme-catástrofe). Era péssimo.
Muitos outros filmes o antecederam e outros viriam no futuro – todos com
o mesmo happy ending, ainda que cada vez mais difícil de
ser alcançado: os desastres descritos ficaram cada vez mais fantásticos
e realistas. Os filmes-catástrofes, enfim, resistiram bravamente
ao longo da história do cinema americano, preservando um certo
mistério que sempre me atraiu.
Antes que se falasse em "cinema-catástrofe",
André Bazin identificou essa tendência no que ele chamava
de "complexo de Nero". Fazendo referência ao imperador
que, supostamente, pôs músicos para tocar enquanto Roma ardia
em chamas, Bazin definiu de forma um tanto irônica esse prazer particular
do grande público de assistir a seqüências apocalípticas
e trágicas ao som de uma trilha sonora grandiloqüente.
Mas a identificação definitiva
do cinema-catástrofe como estética veio em um ensaio de
Susan Sontag de 1965, chamado The imagination of disaster (A
imaginação do desastre). Nele, a escritora mostrou como
parte fundamental da produção americana, principalmente
a partir dos anos 1950 (ou seja, passada a Segunda Guerra e consolidada
a Guerra Fria), se consolidou como um cinema da catástrofe.
Segundo Sontag, o gênero surge na ficção-cientítica
e nos filmes Bs dos anos 50, por intermédio de narrativas sobre
ameaças de destruição da Terra por Ets, monstros,
dinossauros, aranhas gigantes e toda sorte de criaturas (o exemplo máximo
teria sido A Guerra dos Mundos, adaptação da obra
de HG Wells realizada em 1953 por Byron Haskin). Filmes que eram, numa
primeira leitura, reflexos da corrida atômica e da questão
política central dos Estados Unidos na época, que basicamente
se resumia na instauração e propagação do
medo do comunismo, mas que para Sontag iam além do gênero,
constituindo um cinema que de fato repousava numa estética, por
sua vez baseada no prazer da contemplação do desastre.
Sontag escreveu esse ensaio pouco antes da
onda mais famosa dos filmes catastróficos: Aeroporto (1970),
O Destino do Poseidon (1972), Terremoto (1974) e Inferno
na Torre (1974). Os Estados Unidos já haviam passado pela sua
mais grave crise atômica, que durou 13 dias de outubro de 1962,
depois de a União Soviética ter instalado mísseis
em Cuba e a guerra quase ter começado para valer. A partir daí,
a mera paranóia comunista se transformou na paranóia bem
mais concreta de uma aniquilação atômica real, tão
incrivelmente satirizada, de forma seríssima, por Kubrick em Dr
Fantástico (1963). Depois dessa crise real, para o filme-catástrofe
dos anos 70 já não importava tanto a causa do desastre (incêndio,
terremoto ou o que fosse), mas o desastre em si.

Meteoro, de Ronald Neame (1979)
Mas eis que a guerra fria acabou, o muro
de Berlim caiu, a União Soviética se desintegrou e o filme-catástrofe
não morreu. A persistência do gênero é a confirmação
da tese de Sontag do desastre como estética. Uma tese que não
esvazia, como se poderia deduzir, o conteúdo político desse
cinema. Uma questão que voltou ao centro do debate após
os atentados de 11 de setembro de 2001.
Um dos grandes pensadores da atualidade, o
filósofo esloveno Slajov Zizek,
tem uma série de reflexões a respeito do ressurgimento do
filme-catástrofe depois que os Estados Unidos se consolidaram como
potência hegemônica mundial.
Nos anos 1980 e 1990, o cinema-catástrofe
ressurgiu com força total na série Duro de matar
e em filmes como Independence Day, Titanic, Armageddon
e Impacto Profundo. Uma primeira hipótese levantada por
ele é a de que essa nova leva estaria ligada a uma parcela de culpa
americana em sua situação isolada do mundo, "por eles
estarem por cima e aproveitarem tanto a vida." Haveria, também,
motivos mais óbvios como a necessidade de construção
de um novo inimigo, a sustentação ideológica de um
poderio bélico que sempre foi constitutivo dos Estados Unidos como
nação, etc.
Mas a questão é bem mais complexa,
como mesmo frisa o próprio Zizek.
Na cultura americana imagem e realidade passaram a constituir um tecido
muito bem trançado, de fios praticamente imperceptíveis.
Para o filósofo o cinema em geral e os filmes americanos em particular
representaram, no século 20, "a mais significativa e direta
dramatização das fantasias sociais".
Fantasia num sentido radical, político:
"Quando digo que cinema é uma fantasia, não estou dizendo
que ela reflete puramente nossos desejos, mas sim, e principalmente, que
a fantasia é onde o elemento político se faz presente. O
espaço político também se constrói com enigmas
e inconsistências. Filmes devem ser vistos como participantes diretos
da realidade política."
O que Zizek
combate, de certa forma, é uma visão redutora de que o cinema
produzido por Hollywood foi a "premonição" do
que estava por vir em 11 de setembro de 2001. Essa visão, no fundo,
corrobora a visão oficial de que "a ameaça sempre existiu",
etc.
Num texto chamado Welcome to the desert
of the real (Bem-vindos ao deserto do real), Zizek
defende a polêmica idéia de que "o impensável
se concretizou e a América viveu o que sempre fantasiou".
Ele defende, ainda, a tão combatida provocação de
Karl-Heinz Stockhausen, segundo o qual os aviões que atingiram
o World Trade Center teriam sido "a última obra de arte",
pois "os terroristas não imaginaram o ataque para, simplesmente,
provocar danos humanos e materiais, mas pelo efeito espetacular do atentado."
Zizek afirma
que essa fantasia produzida pelo cinema americano não está
apenas em exemplos óbvios como Independence Day ou Nova
York Sitiada (tomado como o "filme-premonitório"
por excelência ao descrever uma série de atentados a bomba
em NY provocados por radicais islâmicos), mas também pode
ser vista em uma obra como Os Pássaros (que Hitchcock dirigiu
em 1963 e que, para mim, talvez o grande filme-catástrofe já
feito). Nesse filme, diz Zizek,
os ataques-surpresas das aves podem ser vistos como o melhor exemplo de
que os ataques de setembro de 2001 estavam, de fato, no imaginário
americano.
De forma alguma Zizek
pretende, com essas afirmações, transferir a responsabilidade
do terror para os Estados Unidos e, assim, culpar as vítimas. A
questão é bem outra, é a constatação
de que o cinema tem uma dimensão política e de que as imagens
do atentado tiveram um efeito simbólico mais forte que o real.
Para o filósofo, a vida americana
contemporânea estaria radicalmente baseada na experiência
artificial: na terra do café sem cafeína, do creme sem gordura,
e da cerveja sem álcool, a realidade virtual generalizou esse procedimento
do produto desprovido de sua substância, "oferecendo a própria
realidade sem a realidade". Ele cita como paranóia máxima
americana o "Show de Truman", a história de um sujeito
que descobre estar vivendo num seriado de TV. Nesse contexto, a artificialidade
só poderia ser rompida com algo violento e extremo, o que curiosamente
se deu por intermédio de uma imagem (a dos aviões se chocando
com o World Trade Center).
Zizek diz
ainda que o que mais o fascina a respeito dos filmes-catástrofe
é a maneira como as circunstâncias do desastre induzem, um
tanto abruptamente, à cooperação social. "Mesmo
as tensões raciais desaparecem. No fim de Independence Day
todos se juntam para derrotar os aliens: árabes e judeus, brancos
e negros. O cinema-catástrofe pode ser o único gênero
otimista do ponto de vista social que existe hoje, o que é um reflexo
do nosso estado de desespero. A única forma de imaginar uma utopia
de cooperação social é fabular uma situação
de catástrofe absoluta." Para Zizek,
enfim, o cinema catástrofe pode ser tudo o que resta de uma possibilidade
de utopia.
Pedro Butcher
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